Por Vitor Nuzzi, publicado em RBA –
Professor organizou em sua terra natal aquela que é considerada a maior biblioteca comunitária em comunidade rural no mundo. E promove encontros anuais sobre leitura e inclusão social
São Paulo – Zé do Bode estacionou seu caminhão com o primeiro carregamento para a Biblioteca do Paiaiá, povoado do município de Nova Soure, no sertão da Bahia, a quase 250 quilômetros de Salvador. Acontece que tinham roubado livros raros do acervo do Itamaraty, no Rio de Janeiro, e a televisão divulgou. Uma senhora viu o noticiário, viu o caminhão, e achou que os livros roubados estavam lá. Quase deu confusão, mas ajudou a divulgar. Assim, com os primeiros 12 mil títulos, que não cabiam em casa, começou a ser formada, 15 anos atrás, a biblioteca de Geraldo Moreira Prado, o Alagoinhas, que saiu pequeno de São José do Paiaiá e voltou para formar aquela que seria considerada a maior biblioteca em comunidade rural do mundo: hoje, são 120 mil volumes em um lugarejo de 600 pessoas.
Geraldo ia “dando aula e comprando livro”, conta. Mas a história começa lá atrás. Ele deixou o Paiaiá no início de 1960. “Eu não tinha plano, tinha vontade.” Só tinha feito o primário, em escola rural, uma caminhada diária de três quilômetros. Em São Paulo, arrumou vaga de faxineiro, na Rua Santa Ifigênia, região central, depois foi office-boy em companhia de seguros, passou a vender apólices de automóveis, chegou a uma metalúrgica em Osasco, na região metropolitana. Pensou em fazer Medicina, cursou Letras, mas não entendeu nem o chinês do curso e nem o inglês usado para dar aulas. Acertou-se, enfim, com a História.
Geraldo teve aula com gente como Sérgio Buarque de Holanda, Eduardo d´Oliveira França. Morando no Conjunto Residencial da Universidade de São Paulo (Crusp), foi um dos inúmeros estudantes retirados de lá à força pelo Exército, dias depois do AI-5, em 1968. O apelido veio daquele tempo. “Ali na (rua) Maria Antônia tinha dois botecos, o universitário e o do Zé, que tem até hoje. Depois da aula, a gente ficava tomando cerveja”, lembra. Um jovem recém-chegado, “discípulo de Glauber Rocha”, perguntou se ele era nordestino. Depois da resposta óbvia, emendou: “Paiaiá não existe, existe Alagoinhas, que é a terra do meu pai”. E assim ficou. O “apelidador” era o futuro sociólogo Gilberto Felisberto Vasconcelos.
“Passei a vida juntando livro”, diz Geraldo, de 77 anos. Os do Crusp não sobreviveram, porque a polícia levou. “Naquela época, você sabe como era, né?”, comenta o professor, que militou no movimento estudantil e mais de uma vez foi preso. Em 1972, detido por mais de uma semana pela Operação Bandeirante (Oban), topou com Carlos Alberto Brilhante Ustra e Romeu Tuma na saída, em um domingo. “Estavam conversando no portão, o Tuma tirou uma nota que não me lembro de quanto era e me deu (para a condução). Peguei a nota, joguei no chão e disse que não pegava em dinheiro de torturador.” Resultado: mais dois dias de prisão.
Em 1976, ele foi para o Rio: “Aí comecei a juntar mesmo. Dando aula e comprando livro”. A professora emérita da USP Walnice Nogueira Galvão escreveu um texto em que lembra da trajetória de Geraldo, que também frequentou aulas de Antonio Candido, que morreu em maio. Quando a biblioteca já era realidade, ela decidiu contar ao mestre sobre o ex-aluno, que se encantou: “Essa obra é o coroamento de uma vida”. Walnice e Antonio Candido estão entre os muitos doadores de livros para a Biblioteca do Paiaiá. Em 2004, Geraldo comprou uma casa por R$ 2 mil, depois comprou a vizinha, depois fez uma reforma para ampliar. E assim criou, como diz, o Paiaiá Empire State.
A Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) doou, a Pontifícia Universidade Católica (PUC), a Fundação Oswaldo Cruz, o Ibase, ONGs diversas, muita gente doou. A biblioteca leva o nome de Maria das Neves, tia de Geraldo, “primeira alfabetizadora da região”. Ele conta que, fazendo estudos autodidatas em biblioteconomia, descobriu um autor indiano que diz que “a biblioteca é um órgão vivo”, tem de crescer. “Gostei disso, e fui alimentando.”
Foi em uma conversa com José Arivaldo, seu sobrinho, que nasceu a ideia da biblioteca. Vadinho, como é conhecido, formou-se em Letras e agora estuda Biblioteconomia na Federal de Sergipe, conta o geógrafo e jornalista Mouzar Benedito, amigo de Geraldo e admirador da empreitada do Paiaiá, que desde 2014 passou a incluir um encontro sobre livros, leitura e inclusão social. O deste ano, o terceiro, foi realizado de 3 a 5 de agosto, com ampla programação. “Realizado à revelia de um contexto nacional anticultura, anti tudo que preste, houve muitas palestras, debates, lançamentos de livros, rodas de conversa, minicursos e muitas atividades específicas para crianças”, diz Mouzar, que foi lá como representante da Sociedade dos Observadores de Saci (Sosaci) e falou sobre personagens do imaginário brasileiro na literatura.
Leitura
Geraldo lamenta que no Brasil não haja prática de leitura (“Eles acham que a internet resolve tudo”) e que o país conte com tão poucas bibliotecas em comparação com os vizinhos da América Latina. Por isso, anima-se com seu projeto, que ajudou a estimular o interesse por livros. “Isso, para mim, foi a coisa mais satisfatória. Contribuí para crescer um pouco mais”, diz, lembrando que só leitura não basta – por isso, o projeto inclui capacitação de professores. Segundo ele, aos poucos a comunidade começou a se aproximar da biblioteca. “Pela primeira vez, teve uma participação muita ativa, a o ponto de oferecer as casas para hospedar as pessoas (no encontro deste ano).”
Teve também muita criança, conta Mouzar. “Só num dia que tive a pachorra de calcular, com base nos ônibus vindos de Nova Soure e cidades vizinhas, chegaram mais de 400 crianças. Eu olhava nos rostos delas e achava que tinham a sensação de descobertas, seja enquanto participavam das atividades do evento ou enquanto remexiam livremente nas estantes da biblioteca. Imagino que pelo menos algumas delas estejam ‘contaminadas’ pela literatura”, narra. “Voltei de lá com uma alegria imensa, com a sensação de que a inércia que os vampiros do poder tentam nos fazer aceitar não é tão aceita assim.”
Depois que se aposentou, o paiaiaense, que mora no Rio, vai de duas a quatro vezes por ano para a sua região. Segundo o IBGE, Nova Soure contava 26 mil habitantes no ano passado. Na economia, predomina a pequena produção de animais (cavalo, gado, ovelha,) e produtos como feijão, milhão, mandioca. “É quase subsistência”, diz Geraldo.
Quem toma conta da biblioteca, entre outros, é o sobrinho Vadinho. “É tudo na base do trabalho voluntário, porque não tem recursos.” A biblioteca já atraiu muita gente de fora – argentinos, norte-americanos, até dinamarqueses – Geraldo é casado com uma. E ele continua gostando muito de ler, até onde a vista permitir.