Por Djeff Amadeus, Justificando –
Em 2 de Abril de 1964, o Jornal o Globo noticiou: “Ressurge a Democracia”. “Vive a Nação dias gloriosos. Porque souberam unir-se todos os patriotas, independentemente de vinculações políticas, simpatias ou opinião sobre problemas isolados, para salvar o que é essencial: a democracia, a lei e a ordem. Graças à decisão e ao heroísmo (…) o Brasil livrou-se do Governo irresponsável, que insistia em arrastá-lo para rumos contrários à sua vocação e tradições.” O que acaba de ser dito parece uma ironia (quem dera!); mas não era; afinal, era ela, sempre ela, a Globo; e o pior: contou com o apoio da Ordem dos Advogados do Brasil; sim, a OAB também apoiou o Golpe de 1964.
Relembremos como a OAB se comportou em 1964: “No dia 7 de abril de 1964, o Conselho Federal da OAB realizou uma sessão ordinária. Era a primeira após o golpe de estado que depusera alguns dias antes o Presidente João Goulart. A euforia transborda das páginas da ata que registrou o encontro. A euforia da vitória, de estar ao lado das forças justas, vencedoras. A euforia do alívio. Alívio de salvar a nação dos inimigos, do abismo, do mal”. Definindo todos os Conselheiros como “cruzados valorosos do respeito à ordem jurídica e à Constituição”, o então Presidente da Ordem dos Advogados do Brasil/OAB, Carlos Povina Cavalcanti, orgulhoso, se dizia “em paz com a nossa consciência”. [1]
É preciso, pois, ser duro com isso, e não olvidar jamais porque, segundo Geraldo Prado, desconhecer a história é um pecado imperdoável! Então não esqueçamos que a OAB foi, ali, além do mais, muito desonesta para com o seu – verdadeiro – papel.
Se isto foi assim – e foi mesmo – então é de bom alvitre rememorar, também, que o Judiciário pode(ria) ter evitado Hitler; mas não o fez. A história mostrou que Hitler tentou dar um golpe: o famigerado Putsch da Cervejaria ou Putsch de Munique. A pena pelo crime: expulsão do país. Por quê? Porque Hitler era estrangeiro (austríaco) e, nestes casos, a pena era a expulsão. Mas o que fez o Tribunal? Deu o drible da vaca na clareza da lei. Embora devessem ter expulsado Hitler, disseram que os ditames dos termos da seção 9, alínea II da Lei de proteção da República não podiam ser aplicados a um homem que se considera e se sente tão alemão como Hitler. [2] Dito de outro modo: para o Tribunal, quem poderia conhecer melhor os valores daquela Alemanha melhor do que… Hitler? Para eles: ninguém; logo, Hitler não dever ser considerado um estrangeiro. Bem, o resultado – sabemos todos – foi desalentador para não dizer: desastroso. Em suma: a maior tragédia da história!
Antes que mencionem Gustav Radbruch e a fórmula – “o injusto não é direito”–, antecipo-me, para dizer-lhes o seguinte: a mim não interessa, neste texto, discutir se a pena de expulsão é justa ou injusta. Com efeito, a questão que pretendo levantar é outra. Interessa-me, pois, o ativismo judicial – ou de como o Tribunal achava interessante as idéias de Hitler e, valendo-se da jurisprudência dos interesses, foi brando com ele. É este o ponto.
Para desenvolver esta afirmação – e demonstrar o quão importante é não olvidarmos da história – permitam-me fazer um comparativo entre tudo o que foi dito até aqui e o atual momento brasileiro. Pois bem, como vimos, em 1964, o golpe militar teve o apoio da Globo e da OAB; agora, em 2016, a história parece querer se repetir. E os militares? – alguém poderia indagar? Como a história estaria se repetindo se eles, os militares, não estão aí? Aparentemente, diria eu. Por quê? Porque os militares da censura e do autoritarismo tornaram-se desnecessários na medida em que, segundo Bauman, as pessoas os internalizaram (os adeptos do Bolsonaro estão aí – vivos – para demonstrar).
Mas, o que tem a ver a postura do Tribunal no caso do julgamento de Hitler com uma parcela dos juízes brasileiros e a OAB?– é a pergunta que, aqui, pareceria mais natural. Muito – para não dizer: quase tudo! –, na medida em que os juízes (e, inacreditavelmente, até advogados) – por compartilharem a ideologia da repressão adotada pelo juiz Moro –, resolveram compactuar seus ideais; a saída adotada, para tanto, tem sido a “manipulação retórica”. Claro: afinal, somente assim uma interceptação ilícita poderia ser utilizada – por um órgão fiscal da lei – para embasar um pedido de impeachment! Isto, por evidente, pode até consagrar nomes (será que Moro e Lamachia se consagrarão mesmo?), mas põe de joelhos a República e a Democracia. Numa palavra: o que uma parcela dos juízes, do Ministério Público e a OAB (ao protocolar um pedido de Impeachment baseado numa prova ilícita) têm feito não é só um vilipêndio ao sistema de leis, mas, mais do que isso, o que eles têm feito é destruir àquilo que é mais caro ao Estado Democrático de Direito: a Constituição!
Basta lembrar, por todos, o “drible hermenêutico” que o STF aplicou na presunção de inocência. Serviu, diria Jacinto Coutinho, “ao ‘deus’ da repressão”a qualquer custo e, portanto, como argumento de gente que se sente “responsável” (o problema só pode ser psicnalítico ou, quem sabe, psiquiátrico) pela “limpeza do país do mal do crime e dos criminosos”, como ‘justiceiros’, sem que para tanto tenha havido qualquer autorização constitucional. [3] Dito de outro modo: assim como a Constituição de Weimar era “driblada” pelos Tribunais com o apoio da jurisprudência dos interesses, os nossos Tribunais e o STF tem driblado a presunção da inocência com a proporcionalidade, razoabilidade e a ponderação (que, no Brasil, não tem sido outra coisa senão uma forma de incorporar os valores de cada juiz em suas decisões).
A título de encerramento do texto, permitam-me fazer duas observações derradeiras. Amiúde me perguntam se o ativismo não teria sido bom, caso fosse descoberto, com o passar dos anos, que as pessoas envolvidas na operação Lava-Jato cometeram aqueles supostos crimes. Sem titubear, respondo que não. Por quê? Porque acredito, com Lenio Streck, que não existe ativismo bom, isto é, ativismo será sempre ruim, mormente em se tratando de processo penal.
Minha tese, então, é a seguinte: o juiz ativista é, sempre e sempre, um herói. Por quê? Porque o lugar do herói, segundo Warat, é – sempre e sempre – “o lugar do canalha”. [4] Palavras do Mestre Warat!
Numa palavra: sou contra o ativismo judicial, seja ele bom ou ruim porque, “se durante o regime autoritário, buscávamos as brechas da lei e lutávamos a partir dessa frágil institucionalidade apostando em um antidedutivismo e em posturas que fizessem com que aquele direito fosse arrazado pela faticidade, agora, em plena produção democrática do direito, não parece ter muito sentido continuarmos a apostar em um protagonismo vencido pelos acontecimentos que culminaram na elaboração de um novo texto constitucional. Em outras palavras, antes não tínhamos constituição (e tampouco democracia) e éramos obrigados – os juristas críticos – a ser “realistas” ou “pragmatistas”; hoje, temos um constituição que deve ser o alfa e o ômega da conduta dos juristas e, por isso, a tarefa de qualquer teoria do direito preocupada com a democracia e os direitos fundamentais deve ser concretizar a Constituição.”[5]
Um adendo necessário e final: ainda existem Juízes em Berlim; este texto, além de ser, antes de tudo, uma homenagem aos queridos mestres que me ensinaram a importância de levarmos a sério o Direito, Filosofia, Psicanálise e a História, é, também, uma homenagem aos verdadeiros Juízes (com J maiúsculo) Rubens Casara, Marcos Peixoto, Marcelo Semer, Valois, Bizzotto, Isabel, Cristiana Cordeiro, Kenarik Boujikian, Paulo Baldes, Paulo Rangel, Simone e outros.
Outro adendo: o apoio da OAB ao impeachment não tem o apoio da maioria dos advogados no Brasil. E o motivo é simples: acima de tudo – e todos – está a Constituição!
Djefferson Amadeus é mestrando em Direito e Hermenêutica Filosófica (UNESA-RJ), bolsista Capes, pós-graduado em filosofia (PUC-RJ), Ciências Criminais (Uerj) e Processo Penal (ABDCONST).