Por Ulisses Capozzoli, jornalista, no Facebook –
Pego um táxi, do aeroporto para casa, ao final de uma longa e cansativa viagem. O carro desliza sob a noite chuvosa, com motor que lembra o ronronar de um gato mecânico. Um grande e esguio gato negro. O motorista, Wanderley, também é negro e antes do primeiro quilômetro rodado faz uma pergunta que indica onde quer chegar: meu voto neste domingo. Abro o jogo e isso faz com que ele também tenha que expor as cartas: o candidato da extrema direita.
Respiro fundo, no traseiro daquele gato mecânico. Wanderley é negro e o candidato da extrema direita já disse, com todas as letras, que não gosta de negros. Não só de negros. Não gosta de um amplo espectro de pessoas com quem ele supostamente não se identifica. O candidato da extrema direita é só mais um exemplo histórico de um desvairado que por aqui é levado a serio pelo baixo nível de exigência da população.
Wanderley se esforça para ignorar que dirige seu gato negro para a boca do lobo, que baba à espera do Chapeuzinho Vermelho. Eu, claro, desço antes do interior de seu gato negro mecânico que nos conduz sob árvores e avenidas encharcadas de chuva.
Quem leu “Fahrenheit 451”, de Ray Bradbury (1920-2012) sabe onde isso vai dar. Mas Wanderley, o motorista que me conduz sob a noite molhada, não tem ideia de quem seja esse homem de nome estranho: Ray Bradbury. Fahrenheit 451 é uma distopia, a negação de uma utopia, a ideia de que os melhores sonhos um dia tomarão a forma de realidade.
Fahrenheit é uma unidade de medida de temperatura em países de língua inglesa, como o Celsius é para nós. E 451 graus Fahrenheit (233 graus Celsius) é a temperatura de combustão do papel. A obra de Bradbury, de 1953, é um relato de um futuro, alienado pela manipulação da informação, em que os bombeiros, ao contrário de apagar incêndios, são, eles mesmos os incendiários.
Especializados na queima de livros, quando os livros se tornaram objetos de ódio por parte de uma sociedade alijada de todo o conhecimento e toda capacidade crítica. Apenas as regras importam. Pensar é um ato de criminalidade. O candidato da extrema direita nas eleições de amanhã, 28 de outubro, já mostrou os dentes para os livros durante essa semana.
Simpatizantes dele, ocupando cargos no judiciário, mandaram invadir universidades e impedir manifestações políticas absolutamente democráticas. Os insuspeitos Supremo Tribunal Federal (STF) e Procuradoria Geral da União (PGR) estão condenando esse comportamento, o que é suficiente para demonstrar o ponto em que estamos. O homem da extrema direita é afeito a armas e mais de uma vez foi visto ensinando crianças que ainda não aprenderam a falar, a imitar o disparo de uma arma. É preciso dizer mais, para identificar de quem se trata?
Cheguei de Sinop, no Mato Grosso, cidade assentada onde há poucos anos antes era terra indígena, abrigo de onças, coberta por árvores centenárias. Um tapete verde que parecia não ter fim. Fui fazer a palestra de abertura (“O outro lado do rio – uma descoberta fascinante”) na abertura do IV Simpósio de Medicina organizado pela Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Mato Grosso.
Não entendo de saúde médica, mas não era isso que eles queriam de mim. Queriam um relato sobre a condição dos índios na Amazônia, o que inclui o Parque Indígena do Xingu. O tema é infinito, mas os anos que dediquei a viagens pela região e contatos com inúmeros povos indígenas me permitem ter uma ideia clara de como as coisas estão. E estão profundamente ameaçadas pelo candidato da extrema direita, sem a mais remota ideia do que seja um índio.
Foi um encontro maravilhoso, em Sinop, com uma equipe de especialistas de primeira qualidade e participação ativa de 250 alunos. Sinop é terra do agronegócio, mas isso não significa que por ali todos pensem da mesma maneira. E o Parque Indígena do Xingu, ali ao lado, é evidência disso.
No primeiro turno das eleições, o candidato da extrema direita recebeu apenas 108 dos 8.500 votos válidos. Fernando Haddad, candidato do PT, ficou com 7.445, 87% dos votos validos dos índios xinguanos. Índios pensam antes de tomar uma atitude e quem convive com eles sabe bem disso. Ao longo de 500 anos, aprenderam a pensar como forma de não morrer, as mais variadas formas da morte na floresta profunda.
Os 250 estudantes de medicina da UFMT estão entusiasmados em trabalhar no Xingu e a maior parte deles aprendeu a lição dada pelo médico Douglas Rodrigues, da Universidade Federal de São Paulo, um dos veteranos na região. Inteligente, lúcido e consciente de que a medicina branca e pele-vermelha pode e deve andar de mãos dadas. São conhecimentos que ampliam e não restringem os espaços de saber.
Os índios do Xingu estão conscientes do que vem por aí e a prova disso é a votação no primeiro turno. Eles sentiram no ar a ameaça da extrema direita. E os estudantes para quem falei, entusiasmados com o trabalho que devem fazer.
Em São Paulo, Wanderley ignora que os bombeiros se tornaram incendiários, como anunciou o romance de Bradbury, de 1953. Quando se der conta disso, ele e seu gato negro mecânico serão apenas cinzas. Restos carbonizados do que foram um homem e seu instrumento de trabalho.
Festa índigena no Xingu. Foto: Renato Soares