Aos 50 anos, Ponte Rio-Niterói, obra-emblema da ditadura, clama por planejamento que racionalize seu trânsito apocalíptico
Por Aydano André Motta, compartilhado de Projeto Colabora
Sob a moldura das mais belas luzes do dia – o amanhecer e o entardecer – que o inferno se instala: a apocalíptica serpente de metal, vidro e borracha arrastando-se morosamente sobre o mar, a perder de vista. Inexiste poesia no cenário cotidiano da Ponte Rio-Niterói e os engarrafamentos que atestam a exaustão da via de 13 quilômetros, inaugurada meio século atrás. Desde sempre, um monumento ao equívoco da opção brasileira pelo transporte rodoviário.
O suplício se repete dia sim, outro também, de manhã cedo, de Niterói para o Rio, e no fim da tarde, na volta. Com o mau tempo ou algum acidente, só piora – mas nem precisa. O volume de 150 mil veículos diários dá e sobra para materializar os congestionamentos. A saturação altera aspectos improváveis da vida naquele lado da Região Metropolitana e se estende muito além, no mapa fluminense.
Regiões antes desvalorizadas de Niterói, como o Bairro de Fátima e a Ponta da Areia, nas franjas do Centro, transformaram-se em ninhos da classe média apenas pela proximidade da Ponte, encurtando os engarrafamentos que, muitas vezes, se estendem município adentro. A via sobre a Baía de Guanabara ainda acentuou a vocação de cidade-dormitório da antiga capital fluminense e de São Gonçalo, Itaboraí e Maricá, atravancando o aumento da atividade econômica dessas comunidades.
A Ponte sufoca até a economia de municípios ao norte do estado, de forte perfil agrícola. A produção, por lá, não pode crescer, porque não haverá caminho para escoá-la até a capital. Desde dezembro de 2020, o transporte de carga obedece a restrições. Caminhões de dois eixos não podem passar, no sentido Rio, entre 4h e 10h, nos dias úteis; de três ou mais eixos são proibidos de 4h às 12h. Afora esperar a hora certa, a alternativa seria dar a volta na Baía de Guanabara, trajeto mais longo e perigoso – logo, inviavelmente mais caro.
O bundalelê na mobilidade urbana, de tão surrealista, transforma a Ponte em solução, ao invés de problema. “Seria muito pior sem ela”, avalia Glaydston Mattos Ribeiro, professor do Programa de Engenharia de Transporte da Coppe/UFRJ. “É a única alternativa segura, e está sendo cada vez mais utilizada”, aponta.
Em estudo sobre o padrão de deslocamento na Região Metropolitana após o fim do isolamento social da pandemia de covid-19, o pesquisador aferiu que 14,25% das pessoas mudaram hábitos – e a grande maioria delas passou a utilizar transporte por aplicativo. “A alteração na composição modal aumenta o fluxo de automóveis e a sobrecarga”, constata Ribeiro.
Para completar, 70% das viagens em transportes coletivos na Região Metropolitana do Rio são feitas por ônibus – que também passam pela Ponte. Enquanto isso, as barcas, a outra grande opção para os municípios da Baía, jazem à beira da falência. A CCR, concessionária do transporte marítimo, tentou várias vezes devolvê-lo ao governo do estado, numa crise sem fim.
O professor da Coppe observa que até a nova configuração da Praça 15 (destino dos passageiros que chegam de Niterói), sem terminais de ônibus e muito mais deserta, afugenta as pessoas, que, sem opção, se rendem aos transportes rodoviários. “A queda na demanda das barcas está ligada também à dificuldade na integração com outros modais”, pondera.
A travessia pelo mar é a única alternativa viável – porque o delírio da Linha 3 do metrô, que ligaria Itaboraí ao Centro do Rio, atravessando São Gonçalo e Niterói, vive apenas na parolagem dos candidatos em tempos de eleição. Obra inviavelmente cara e criminosa contra o meio ambiente, simplesmente não vai acontecer. Só existirá nas patranhas dos postulantes a cargos públicos. Cai quem quer.
A solução sobre trilhos, à semelhança das pontes que conectam, por exemplo, a ilha de Manhattan ao continente, nos EUA, precisaria ter sido criada na origem. Mas aí, o Brasil seria outro. Somos mesmo o país de cabeça, tronco e rodas, dependente dos caminhões e viciado em carros de passeio.
Ribeiro acrescenta que sequer faz sentido cogitar um trajeto concebido mais de 50 anos atrás, quando as cidades e a dinâmica de suas populações eram totalmente diferentes. Ele defende o planejamento do transporte público na perspectiva de vetor de prosperidade, criando alternativas econômicas mais próximas de onde as pessoas vivem. O desenvolvimento local como panaceia para diminuir as viagens mais longas. “Ninguém merece amargar duas, três, quatro horas na condução”, arremata.
Nos 50º aniversário da Ponte, resta mesmo celebrar a engenharia vigorosa da obra-emblema (ao lado da Hidrelétrica de Itaipu) do regime militar, no sonho tresloucado do Brasil grande da primeira metade dos anos 1970. Ganhou nome de ditador especialmente infame – Costa e Silva, o marechal do AI-5 e da fase mais assassina do arbítrio – e passou por tentativas de ser rebatizada, que infelizmente não prosperaram.
Como o Brasil nunca deixa de surpreender, sua inauguração, na ensolarada manhã da segunda-feira 4 de março de 1974, foi precedida por um culto ecumênico que teve a presença dos sacerdotes das religiões próximas do poder e de um pai de santo. Tata Tancredo, pioneiro da umbanda, participou da celebração, num momento de tolerância em pleno atoleiro da ditadura.
Mas hoje, atravessar aqueles 13 quilômetros, na hora do rush, em velocidade de cruzeiro está na conta dos milagres mais improváveis.