Pacote de governo trabalhista inclui impostos sobre ganhos de capital e heranças e também aumenta contribuição das empresas para seguro social
Por Ticiana Azevedo, compartilhado de Projeto Colabora
na foto: A chanceler do Tesouro do Reino Unido, Rachel Reeves, com a pasta vermelha do Orçamento em frente à sua residência oficial, em Londres: taxação dos mais ricos e das empresas (Foto: Justin Tallis / AFP)
A gritaria foi intensa, tanto a favor quanto contra, e continua repercutindo. O primeiro orçamento do novo governo do Partido Trabalhista, anunciado em 30 de outubro pela chanceler do Tesouro do Reino Unido, Rachel Reeves, cumpriu as promessas de campanha e apontou para uma mudança de rumo na política social do país. A recuperação do sistema nacional de saúde, o maior beneficiado no orçamento, e a expansão dos benefícios sociais serão financiadas por uma maior taxação sobre os mais ricos e sobre os empregadores. Em essência, este orçamento é uma reforma tributária que injeta £40 bilhões (cerca de R$ 300 bilhões de reais) em investimentos, especialmente nas áreas de saúde, educação e sustentabilidade.
Um dos pontos mais aplaudidos foi a nova taxa de 50% para os passageiros de jatos particulares, chegando a £450 por cabeça. Não que essa medida faça cócegas no bolso dos milionários, que poderão continuar voando despreocupadamente pelo mundo, nem que represente uma grande parcela no orçamento — mas ela tem um valor simbólico e marca uma mudança de paradigma.
A chanceler não perdeu a oportunidade para fazer uma piadinha com o ex-primeiro-ministro conservador Rishi Sunak, que faz parte da elite dos jatinhos e possui várias mansões, inclusive na Califórnia. Reeves sugeriu que essa taxação “cairia bem” para quem costuma voar para… “digamos, Califórnia?”, arrancando risadas da plateia. O aumento também afetará o cidadão comum: o transporte público subirá cerca de 5%, e até os voos comerciais de classe econômica de curta distância terão um acréscimo de £2 por passageiro.
Em relação à agenda ambiental, os veículos elétricos no Reino Unido estão isentos de impostos até 2030, enquanto a taxação sobre veículos a combustão permanece, incentivando a transição gradual da frota para modelos mais sustentáveis. Essa decisão representa uma ruptura com as políticas conservadoras anteriores, que priorizavam cortes de impostos para combustíveis fósseis e favoreciam o uso de veículos convencionais.
A proposta trabalhista inclui várias novas taxações, como sobre ganhos de capital, heranças e mensalidades de escolas particulares, ampliando a arrecadação de impostos de quem tem maior capacidade econômica. O aumento sobre ganhos de capital — de 10% para 18% na faixa mais baixa e de 20% para 24% na mais alta — visa alinhar o Reino Unido a países europeus e deve arrecadar £2,5 bilhões (R$ 18,75 bilhões) até 2029. O limite de isenção do imposto sobre heranças foi mantido em £325.000 (cerca de R$ 2,5 milhões). Como esse valor não é reajustado pela inflação, espera-se que mais heranças passem a ser taxadas nos próximos anos. A perda de isenção para propriedades agrícolas, uma brecha antes explorada, significa que grandes herdeiros, como donos de fazendas e terras históricas, enfrentarão custos mais altos para manter seu patrimônio.
No Brasil, a resistência a um imposto sobre grandes heranças é polêmico, especialmente dentro do contexto da reforma tributária. O fato de que o Brasil ainda não tem um imposto sobre grandes fortunas, enquanto a maioria dos países desenvolvidos já o implementou, demosntra claramente a resistência à justiça social. Atualmente, o país possui uma alíquota de ITCMD (Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação) que varia entre 4% e 8% enquanto nos países desenvolvidos os impostos sobre heranças podem ultrapassar 40%. Na França, por exemplo, o acervo do Museu Picasso em Paris foi constituído através de um pagamento realizado pelos herdeiros do artista, que ofereceram suas obras como forma de quitar o imposto sobre herança.
O NHS, considerado um dos melhores serviços de saúde do mundo e um dos fatores cruciais para a vitória trabalhista, será o maior beneficiado com um aumento de £22,6 bilhões (R$ 169,5 bilhões) no orçamento operacional, parte de um plano de 10 anos que será revelado na primavera (outono no Brasil), com a meta de crescimento da produtividade de 2% já no próximo ano. O NHS, especialmente após a pandemia, vem acumulando filas de espera em seus serviços, mas ainda assim tem um padrão altissimo se comparado aos nosso SUS.
A educação de qualidade também e prioridade, com um aumento de 19% em termos reais no sistema educacional do Reino Unido, que receberá uma injeção de £6,7 bilhões (R$ 50,2 bilhões) no próximo ano. Parte desses recursos virá de uma nova taxa de 20% sobre as mensalidades das escolas particulares, a ser implementada em janeiro de 2025. Enquanto o Reino Unido destina £2,3 bilhões (R$ 17,25 bilhões) para a contratação de professores, £2,1 bilhões (R$ 15,75 bilhões) para a manutenção de escolas e £1 bilhão (R$ 7,5 bilhões) para necessidades especiais, no Brasil o abismo social continua aumentando com a precriedade do ensino publico. A proposta do novo Fundeb, criada para financiar a educação básica, ainda esbarra em incertezas para sua plena implementação, com muitos estados lutando para cumprir o mínimo constitucional exigido para a educação.
Outro ponto central é o aumento da contribuição das empresas para o seguro social, que passará de 13,8% para 15% em 2025, adicionando £25 bilhões (R$ 187,5 bilhões) anuais ao orçamento. Para aprovar essa medida, o governo precisa da maioria no Parlamento. Ainda que conte com o apoio da Câmara dos Comuns, a Câmara dos Lordes pode exigir ajustes, devido à pressão do empresariado. Embora a taxação atinja empresas de todos os tamanhos, as grandes corporações serão as mais impactadas. Esse aspecto enfrenta as maiores críticas, com previsões catastróficas sobre a pressão no mercado de trabalho e o aumento da inflação.
No Reino Unido, mudanças tributárias, embora menos burocráticas que no Brasil, também precisam de aprovação parlamentar. Os trabalhistas, com cerca de 60% dos assentos na Câmara dos Comuns, possuem a maioria necessária para aprovar o orçamento. Após a aprovação, ele segue para a Câmara dos Lordes, que pode sugerir revisões e pressionar por ajustes, mas raramente bloqueia diretamente um orçamento devido à tradição britânica de respeito ao mandato governamental. Mesmo assim, a resistência nos Lordes, alimentada pelo setor empresarial e por críticas à alta carga tributária, pode se tornar um obstáculo para o governo.
Produtos considerados prejudiciais à saúde pública, como tabaco, vapes e bebidas alcoólicas, o governo também foram alvo do aumento de impostos. Esses impostos crescerão 2% acima da inflação para tabaco e 10% para tabaco de enrolar, enquanto o imposto sobre bebidas alcoólicas acompanhará a inflação. Num país em que um maço de cigarros custa o equivalente a mais de R$ 100, vai ficar difícil continuar fumando. Um gesto cultural foi a redução simbólica de 1p na taxa de chope vendido em pubs, em reconhecimento ao valor histórico dessa instituição para os britânicos.
O desafio britânico de equilibrar arrecadação e crescimento serve como um espelho das dificuldades brasileiras, onde a luta por um sistema tributário mais equitativo continua, repleta de tensões e dilemas políticos.