Por Luiz Sugimoto, Antonio Scarpinetti e Paulo Cavalheri, no Portal da Unicamp –
Falecido em 20 de julho do ano passado, Marco Aurélio Garcia, professor do Departamento de História da Unicamp e figura central nos estudos da esquerda do Brasil e de outros países, já havia manifestado um desejo que gostaria de ter concretizado em vida: a doação de seu acervo pessoal para o Arquivo Edgard Leuenroth (AEL), do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH). A documentação reflete a trajetória do militante político, fundador do PT, acadêmico, estudioso das organizações de esquerda e assessor especial dos governos Lula e Dilma para Assuntos Internacionais – e está organizada com o esmero de alguém consciente da importância que ela viria a ter como fonte de pesquisa. O desejo de MAG, como era conhecido, concretizou-se nesta segunda-feira, 7 de maio, quando um caminhão estacionou no AEL, mas ainda não há previsão de quando o acervo estará disponível.
“Foi uma decisão que o professor Marco Aurélio tomou em vida. Seu filho, Leon, foi muito generoso ao mostrar tudo o que o pai havia acumulado em um apartamento na Praça da República, que creio ter sido destinado explicitamente para reunir esse material”, afirma o professor Aldair Carlos Rodrigues, diretor adjunto do AEL. “A documentação está bem organizada, vendo-se um norte no sistema de classificação dos documentos. Com sua entrada no governo Lula, o material fica um pouco fragmentado, mas há uma ordem mesmo no caos aparente, pois ele sabia que tudo se tornaria parte de um acervo institucional. Percebemos essa intenção no uso de etiquetas ao guardar documentos diversos, no modo como compilava notícias, rascunhava projetos, etc.”
Claudio Henrique de Moraes Batalha, ex-diretor do AEL e uma das pessoas mais próximas a Marco Aurélio, lembra que o colega de departamento foi o primeiro diretor efetivo do arquivo criado a partir da coleção de Edgard Leuenroth. “Na época, ainda sob a ditadura militar, o AEL era um órgão quase clandestino dentro da estrutura da Universidade, até por questões de segurança. Posteriormente, e em grande parte pela atuação de Marco Aurélio, vão sendo incorporados outros acervos, vários deles ligados a militantes de esquerda. Ele foi responsável por um dos mais ambiciosos projetos para centros de documentação apresentados à Fapesp, na década de 1980, inaugurando na instituição a máxima de que ‘o céu é o limite’, que o AEL deveria ser tão grande quanto sua capacidade de preservar a memória e que as limitações prediais e técnicas não podiam conter o seu crescimento.”
Ricardo Antunes, do Departamento de Sociologia, passou no concurso para docente da Unicamp em 1986 e, uma semana depois de tomar posse, foi surpreendido por um telefonema de Marco Aurélio convidando-o para ser seu diretor adjunto no AEL. “Tínhamos tido apenas um contato rápido em um seminário na Unesp de Araraquara. Fiquei surpreso porque não era alguém com quem eu convivia; embora em campos próximos, as diferenças na época eram muito acentuadas. Ele justificou que eu era um dos que mais conhecia o arquivo, que vasculhei para o meu mestrado. Marco Aurélio tinha uma afetividade pessoal extasiante, eu não tinha qualquer motivo para dizer não – e a partir daquele momento selamos uma amizade espetacular.”
Dentre tantas coisas que fizeram juntos, Antunes se lembra da organização de enormes arquivos que estavam na Unicamp e precisavam ser estruturados, e da vinda de coleções como do Centro Pastoral Vergueiro e do Teatro Oficina. “Certa vez, quando fomos formalizar a doação do arquivo de Miguel Costa com o filho dele, em Osasco, um caminhão perdeu o freio na avenida principal da cidade e passou triscando o meu carro, com Marco Aurélio no banco do passageiro. Mas ele nunca perdia seu grande humor. Sua atuação como historiador da classe operária e da esquerda, inclusive a armada, está marcada na historiografia brasileira dos anos 70 para cá. Pena que não tenha escrito mais.”
Claudio Batalha recorda que Marco Aurélio Garcia ajudou a fundar um grupo de trabalho sobre a esquerda dentro da Anpocs (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais), de onde surgiu História do Marxismo no Brasil, publicado pela Editora da Unicamp. “Seu vasto conhecimento sobre a história da esquerda já havia ficado patente com a publicação no Em Tempo, um dos jornais alternativos do final da ditadura, de uma série de artigos sobre as organizações, organogramas e divisões da esquerda. Vejam que sua trajetória política é anterior ao PT, começando no movimento estudantil do início dos 60, inicialmente pelo PCB e depois pelo POC (Partido Operário Comunista).”
Batalha acrescenta que as ligações de Marco Aurélio com a esquerda se aprofundaram fora do Brasil durante seu período de exílio, primeiramente no Chile a partir dos 70 e depois na França, após golpe de Pinochet em 73. “No Chile ele teve relações próximas com várias organizações, em particular com o MIR (Movimento da Esquerda Revolucionária). Mais tarde, ainda no exterior, estabeleceu ligações com a esquerda europeia. Seu acervo, portanto, reflete esses aspectos do militante político, do estudioso da esquerda e depois do integrante do governo como assessor especial da Presidência da República ligado às relações internacionais.”
A partir do momento em que abraçou a causa do PT, afirma Ricardo Antunes, Marco Aurélio foi ganhando a intimidade de Lula. “Era o homem de confiança do presidente nas viagens ao exterior, até por ser poliglota, falando francês como um francês, muito bem o espanhol e tendo aprimorado seu inglês. Como assessor para assuntos internacionais, devo fazer um depoimento a seu favor: mesmo sendo um crítico do regime cubano, adotou uma política generosa de aproximação com aquele país, assim como em relação a Venezuela e Bolívia, por acreditar que era preciso caminhar para uma integração latino-americana.”
Aldair Rodrigues também destaca a dimensão internacional da atuação de Marco Aurélio Garcia como assessor especial nos governos Lula e no início do governo de Dilma Rousseff. “A história das relações internacionais do Brasil nos anos 2000 passa necessariamente por ele, que procurou pensar o lugar do país no mundo, principalmente nas relações Sul-Sul (África e países da América Latina) como alternativa em relação aos alinhamentos tradicionais com as potências hegemônicas do Atlântico Norte. Essa atuação na política externa foi primordial para a consolidação dos Brics [Brasil-Rússia-Índia-China-África do Sul], por exemplo.”
Atuação no PT
Humberto Celeste Innarelli, diretor técnico do AEL, informa que o acervo do intelectual reúne um conjunto bastante significativo sobre sua atuação dentro do PT, visto ter sido frequentemente um dos redatores dos programas de governo em campanhas presidenciais, desde a década de 90 até as vitoriosas nos anos 2000. “A partir de suas anotações, vemos que ele estava sempre pensando projetos de governo, estratégias de campanha e analisando pesquisas de opinião, inclusive internas ao partido. Essa documentação relacionada ao PT também interessou à Fundação Perseu Abramo, que a retirou do acervo para digitalização e já a devolveu.”
O fato de Marco Aurélio ter guardado inclusive demonstrativos de pagamentos da Unicamp, juntamente com informações sobre os cursos que ministrava, indica que ele pretendia organizar também uma memória da dimensão acadêmica em sua vida, observa Innarelli. “Estimamos que o acervo possui 130 metros lineares de documentos bibliográficos (10 mil livros e periódicos diversos), 35 metros lineares de documentos pessoais e vários objetos tridimensionais, como placas em sua homenagem. Também há grande quantidade de CDs, DVDs, fitas VHS e fotografias impressas pela assessoria de imprensa da Presidência. Também li correspondências muito interessantes e notei que, para ele, e-mails não funcionavam eletronicamente: precisava imprimi-los.”
Já o professor Christiano Key Tambascia, diretor AEL, considera o acervo pessoal de Marco Aurélio Garcia sui generis, por refletir uma confluência de trajetória de vida, da pesquisa e da atuação política, fundamental para entender os debates da esquerda não só nos anos 80 como recentemente. “Também devemos destacar o esforço do IFCH, nessa época de poucos recursos, ao disponibilizar a verba para trazer esse acervo. É um esforço que ganha importância sobretudo pelo professor Marco Aurélio, que saía de carro ao lado de companheiros do AEL e voltava com o porta-malas cheio de documentos.”
Para Ricardo Antunes, a história do AEL traz pelo menos quatro personagens decisivos. “Marisa Zanatta, então jovem diretora técnica e que por décadas guardou os documentos como preciosidades (um arquivo não existe sem o trabalho cotidiano de preservação); Paulo Sérgio Pinheiro e Michael Hall, que evitaram, em plena ditadura, que a coleção original Edgard Leuenroth saísse do país para os Estados Unidos; e Marco Aurélio Garcia, que tem nesse arquivo a sua fotografia multifacetada, rica e colorida.”