Do Portal Geledés –
Obra sobre escravidão está em vias de ser traduzida por um pernambucano. Saiba também o que há na cidade para lembrar o Dia da Consciência Negra
Tércio Amaral – Página Global
É dele o único registro de um ex-escravo sobre as atrocidades da escravidão no Brasil. O livro de memórias An interesting narrative. Biography of Mahommah G. Baquaqua (Uma interessante narrativa. Biografia de Mahommah G. Baquaqua, em tradução livre), publicado em 1854, nos EUA, revela detalhes da passagem por Olinda e só agora é alvo de um estudo inédita feito por um pesquisador pernambucano.
A história, exposta pelo Viver no Dia da Consciência Negra, lembra a do norte-americano Solomon Northup, contada em 2013 no filme 12 anos de escravidão, adaptada da biografia homônima de um homem livre vendido como escravo. O enredo de Baquaqua, no entanto, se passa em solo brasileiro. Mesmo com “direito à liberdade”, ele foi vítima do tráfico de escravos para o Brasil, em 1845, quando o traslado já era proibido no país desde 1831. Filho de um próspero comerciante da cidade de Djougou (hoje o Norte de Benin), no continente africano, ele foi trazido à força ao Litoral Norte de Pernambuco.
“Ele foi escravizado por um senhor que era padeiro (em Olinda) e brutalmente castigado. Trabalhou, como escreveu na autobiografia, na construção de casas, carregando pedras”, revela o historiador e consultor de estudos afro-brasileiros da Unesco Bruno Véras, de 26 anos. O livro escrito por Baquaqua é alvo da pesquisa, apoiada pelo Ministério da Educação do Brasil e Consulado do Canadá. O objetivo é divulgar na internet a tradução das memórias e dos locais por onde o ex-escravo passou. O pesquisador viajou aos EUA atrás de vestígios do escravo.
A conexão com os Estados Unidos e o Canadá não é por acaso. Baquaqua foi vendido, depois, para um dono de escravos no Rio de Janeiro. De lá, teve uma missão de trabalho na cidade de Nova York, em 1846, numa entrega de café das empresas do “novo dono”. Foi lá, no norte do país, onde a escravidão não era mais permitida, que fugiu em busca de liberdade. “Abolicionistas o ajudaram a escapar da prisão. Não fica claro no relato o método usado para libertá-lo. Provavelmente, uma bebida e um papo descontraído com o carcereiro o fizeram cochilar”, analisa Bruno Véras.
Uma vida em quatro atos:
A bebida
Fugido da prisão em Nova York, conseguiu refúgio no círculo abolicionista de base religiosa protestante batista no Haiti. Na ilha independente por ação dos ex-escravos, passou os anos 1847 a 1849 deslocado socialmente. Não falava o francês nem o crioulo. Voltou a beber até se converter ao cristianismo batista. Fugiu para não ser alistado no exército da ilha.
O aprendizado
De volta aos EUA, entra nos círculos críticos à escravidão ligados à rede Batista da Livre Vontade de caráter Abolicionista. Entre 1850 e 1853, frequenta o Central College na cidade de MacGrawville. Aprende o inglês e mantém contatos por cartas com nomes importantes do abolicionismo dos EUA, como o reverendo William L. Judd e Gerrit Smith. Em 1854, está no Canadá, em Chatham. Ainda fala em viagem à Inglaterra e retorno à África.
O navio
Ele relata trecho da viagem em navio negreiro até Pernambuco, durante o Império Brasileiro (1822-1889). “Chegamos a Pernambuco, América do Sul, de manhã cedo, e o navio ficou zanzando, sem lançar âncora. Ficamos sem comida e bebida o dia inteiro, e nos foi dado a entender que deveríamos permanecer em silêncio, sem clamor, senão nossas vidas estariam em perigo”.
A escravidão
Na biografia, provoca quem defendia a escravidão. “Que aqueles ‘indivíduos humanitários’ que são a favor da escravidão coloquem-se no lugar do escravo no porão barulhento de um navio negreiro, apenas por uma viagem da África à América, sem sequer experimentarem mais que isso dos horrores da escravidão: se não saírem abolicionistas convictos, então não tenho mais nada a dizer a favor da abolição.”
Crédito da imagem: Bruno Véras/Divulgação