Compartilhado de DW Deutsche Welle –
Além da realização de pesquisas para acompanhar o avanço do vírus Sars-Cov-2, especialistas de diferentes áreas atuam também para produzir testes, álcool antisséptico, máscaras e ventiladores pulmonares.
É um esforço de guerra – mesmo que o inimigo seja invisível e não carregue nenhuma bandeira. No combate à pandemia da doença respiratória covid-19, causada pelo coronavírus Sars-Cov-2, universidades brasileiras se transformaram em quartéis-generais, organizando forças-tarefas e agindo em várias frentes: da pesquisa, ofício inerente à natureza da instituição, à produção de equipamentos como máscaras e respiradores.
Em entrevista à DW Brasil, o biomédico Marcelo Alves da Silva Mori disse que “99% do meu tempo hoje é operacional, é institucional, não é científico”. Mori é coordenador da Articulação, uma das oito frentes de trabalho instituídas pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) para lutar contra a pandemia. “A ciência está acontecendo. Mas está acontecendo porque a gente está organizando os trabalhos e articulando as tarefas”, explicou.
Conforme conta o biólogo imunologista Alessandro dos Santos Farias, a articulação da universidade começou no início de março, quando um professor do Instituto de Biologia da instituição atentou para a necessidade de aprimorar a oferta de diagnósticos, dada a chegada do novo coronavírus ao Brasil.
A ideia ecoou no campus, a reitoria decidiu fazer do esforço algo institucional, e um edital foi publicado internamente convocando voluntários. Em dois dias, mais de 400 pesquisadores, entre professores e alunos de diversas áreas decidiram integrar a empreitada. Há desde cientistas focados em realizar modelagens para entender o avanço da pandemia a pesquisadores que se dedicam a produzir emergencialmente álcool em gel.
“O problema inicial era que só tínhamos uma máquina [para a realização do exame de detecção]. Hoje, já temos mais de 40 equipamentos”, aponta Farias, que se tornou o coordenador da frente de Diagnósticos. “Ao agregarmos gente de todos os institutos, pudemos criar várias frentes de trabalho. Hoje trabalhamos em conjunto com pessoal da química, da física médica, da computação – todos estão fazendo coisas em prol da força-tarefa.”
No caso dele, também o trabalho se tornou mais operacional do que científico. “Eu leciono imunologia. Apesar de ter alguma relação, não tem nada a ver com biologia molecular e diagnóstico”, conta. “Mas [esse tipo de exame] é algo bastante trivial para a gente, então implantar isso foi tranquilo. Só que acabei deixando minha própria pesquisa de lado para botar minhas forças 100% nisso.”
Com a doação de R$ 2,6 milhões do Ministério Público do Trabalho, a universidade conseguiu ampliar a estrutura. A ideia é atender não só ao hospital universitário como também a hospitais públicos de Campinas e região.
Máscaras e respiradores
Reconhecida como a mais importante instituição de ensino superior do país, a Universidade de São Paulo (USP) também trabalha em soluções para a pandemia. Um projeto coordenado pelo Centro de Inovação da USP deve produzir 1 milhão de máscaras de proteção, suprimento que será direcionado a 8 mil profissionais de saúde do estado.
Pesquisadores do Instituto de Física e da Escola Politécnica estão realizando testes de material em busca de algo que seja ao mesmo tempo eficiente para reter o vírus e de fácil obtenção em uma época de escassas matérias-primas.
Em paralelo, há outras frentes. “Nosso foco é o desenvolvimento de um ventilador pulmonar de contingência”, diz à DW Brasil o engenheiro Marcelo Knörich Zuffo, professor da Politécnica. “Estamos em fase de testes. Participam mais de 40 pesquisadores, entre alunos, especialistas e professores”, enumera.
A expectativa é que a produção seja iniciada ainda neste mês. Todo projetado com peças nacionais, o equipamento teria um custo final estimado em R$ 1 mil – ao contrário dos R$ 15 mil convencionais. E o desenvolvimento seguirá princípios open source, ou seja, qualquer um poderá seguir as instruções e fabricar sem ter de pagar royalties aos inventores.
A Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) também criou ações para a luta contra a covid-19. Conforme a assessoria do Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia (Coppe) da instituição, pesquisadores estão desenvolvendo “um protótipo de ventilador pulmonar mecânico para ser reproduzido em massa, de forma simples, rápida e barata, com recursos disponíveis no mercado nacional”.
“Uma rede de empresas está sendo montada para iniciar a produção imediata, após a aprovação dos testes com pacientes e adequação às normas de segurança”, afirma o órgão, em nota.
Outros cientistas da UFRJ estão trabalhando num teste alternativo que facilitaria o diagnóstico em massa da covid-19. Há ainda uma frente se dedicando à produção de álcool antisséptico. “Com início há cerca de duas semanas, a produção já atingiu a média diária de mil litros de álcool 70%”, informa a UFRJ.
Pesquisas e alteração de rotina
A produção científica também foi fortemente alterada neste período de exceção. Levantamento realizado pela Agência Bori, plataforma de divulgação científica, indica que já são 20 os trabalhos publicados em periódicos científicos brasileiros desde o surgimento do novo coronavírus.
Nesta semana, um relatório publicado pela Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical apontou o isolamento horizontal como a estratégia mais eficaz a ser adotada no momento. “Se o distanciamento social for eficaz limitando o acesso do público apenas a serviços essenciais, o impacto econômico pode ser mitigado enquanto a epidemia é controlada”, enfatizou o texto, assinado por pesquisadores de diversas instituições, em conjunto com o médico Luiz Henrique Mandetta, atual ministro da Saúde. Cientistas brasileiros também são coautores de seis estudos sobre o tema publicados em periódicos internacionais até o momento.
O imunologista Gustavo Cabral de Miranda, por exemplo, alterou toda a sua rotina em busca de uma solução para a pandemia. Depois de trabalhar com o desenvolvimento de vacinas na Inglaterra e na Suíça, ele havia retornado ao Brasil para trabalhar em um laboratório do Instituto do Coração (Incor) da Faculdade de Medicina da USP. “Com minha experiência em novas tecnologias do setor, a ideia era desenvolver vacinas contra estreptococos e chikungunya”, relata.
Com a pandemia, tudo mudou. “Acabei aceitando a missão. Tivemos de adaptar todo o projeto, usando até os recursos financeiros, já aprovados para o outro projeto, neste trabalho do coronavírus”, explica.
Para Sabine Righetti, coordenadora da Bori, o engajamento da ciência brasileira no combate à pandemia pode ser um legado positivo do difícil momento. “As universidades estão respondendo muito rapidamente, de várias maneiras, tanto em ações de grupos de pesquisa como de maneira institucional”, avalia. “Esse tipo de atitude poderia ser recorrente. Os próprios governos poderiam demandar, em casos de problemas, como tivemos recentemente a contaminação do mar por óleo e os incêndios da Amazônia, que cientistas se organizassem em grupos de trabalho.”
Righetti também espera que todo esse trabalho contribua para que a ciência brasileira seja valorizada. “Temos instituições e cientistas de nível mundial; o que muitas vezes falta são recursos. Realmente espero que este momento traga uma nova força para a ciência nacional”, comenta. “Que seja recuperada a credibilidade, tanto por parte do governo como por parte da opinião pública.”
Coordenador do Programa de Engenharia de Sistemas e Computação da Coppe da UFRJ, o engenheiro Guilherme Travassos acredita que o “diferencial da universidade” seja a capacidade de “unir pessoas com perfis diferentes de competência”.
“Nosso espírito de trabalho está acima de qualquer vaidade. O problema é nosso, de todos nós. Aprendemos a confiar uns nos outros. Enfrentamos o problema pragmaticamente, assumindo responsabilidades”, diz.
Sobre a atual pandemia, ele lembra que, por se tratar de “um desafio novo”, não houve tempo para um planejamento antecipado. “O planejamento está sendo feito concomitantemente com a execução. Estamos trocando o pneu do carro com ele em movimento. Trata-se de uma situação de guerra e o inimigo é invisível”, afirma. “Como enfrentá-lo? Com racionalidade, cooperação, e ação antecipada”, acrescenta.