Por André Biernath, compartilhado de BBC News –
Disponibilidade de novos lotes, falta de campanhas de comunicação, excesso de burocracia, baixa procura dos grupos prioritários e equívocos nos critérios das filas de espera são alguns dos fatores que ajudam a explicar a antecipação da vacinação contra a covid-19 feita por prefeituras e governos estaduais nos últimos dias.
O anúncio mais notório aconteceu no domingo (13/06), quando o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), disse que o calendário de imunização do Estado seria adiantado em 30 dias.
Com isso, ele assegurou que todos os cidadãos paulistas com mais de 18 anos receberão ao menos uma dose da vacina contra o coronavírus até o dia 15 de setembro.
“Tenho confiança que, neste Natal, as famílias estarão reunidas, os amigos poderão se abraçar, as pessoas poderão voltar a viver com cautela, com cuidado”, discursou.
Doria não foi o único a fazer promessas do tipo: na manhã seguinte (14/06), o prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes (PSD), compartilhou uma mensagem no Twitter dizendo que também acelerará a aplicação de doses em terras cariocas:
Outro a se pronunciar sobre o tema foi o governador de Goiás, Ronaldo Caiado (DEM):
O final de semana mais recente também foi marcado por dois grandes mutirões de vacinação, que aconteceram em Manaus (AM) e nas cidades de São José de Ribamar, Paço do Lumiar, Raposa e São Luís, todas no Maranhão.
A iniciativa maranhense, que recebeu o nome de “Arraial da Vacinação”, funcionou ininterruptamente por 41 horas e contou até com atrações musicais típicas de festas juninas e distribuição de mingau de milho para os participantes.
Embora todas essas declarações e anúncios representem uma boa notícia e tragam uma perspectiva otimista para o enfrentamento da pandemia, especialistas se questionam sobre o que elas representam na prática e como isso pode afetar o andamento da vacinação contra a covid-19 no país.
Maior intervalo entre as doses permitiu acelerar
A partir do mês de maio, o Brasil viu aumentar consideravelmente a chegada de novas doses das vacinas já aprovadas pela Anvisa.
Nos primeiros meses do ano, o país dependeu basicamente das remessas da CoronaVac, que são envasadas e distribuídas pelo Instituto Butantan com insumos enviados pela farmacêutica chinesa Sinovac.
Em março, por exemplo, quase 9 em cada 10 imunizantes entregues ao Ministério da Saúde vinham do Butantan.
Mais recentemente, porém, essa situação se inverteu: a estabilidade na produção da AZD1222 (AstraZeneca, Universidade de Oxford e Fundação Oswaldo Cruz) e a chegada das primeiras remessas da Comirnaty (Pfizer/BioNTech) ampliaram o leque da vacinação contra a covid-19 no Brasil.
E há uma diferença fundamental entre esses dois momentos: o tempo de espera entre a primeira e a segunda doses de acordo com o produto.
A CoronaVac exige um intervalo de 14 a 28 dias entre as aplicações. Já na AZD1222 e na Comirnaty, esse período é de quase três meses, seguindo as diretrizes adotadas no país.
Na prática, isso traz implicações claras no planejamento das campanhas: os lotes do imunizante produzido por Butantan e Sinovac exigem mais cautela no ritmo de uso, pois as pessoas precisarão tomar o reforço em poucas semanas.
Os gestores de saúde, portanto, são mais conservadores e só costumam utilizar metade das doses disponíveis. Assim, eles garantem que a outra parcela fique estocada e seja usada nesses mesmos indivíduos, para completar o esquema vacinal deles.
Já no caso da AZD1222 e da Comirnaty, governadores e prefeitos podem arriscar um pouquinho mais e utilizar como primeira dose praticamente 100% das remessas que receberam.
Essa, inclusive, tem sido a orientação do próprio Ministério da saúde: “gastar” os lotes entregues desses dois imunizantes como primeira dose no maior número de pessoas.
Afinal, como há esse espaço de 90 dias para a segunda aplicação, dá tempo suficiente de esperar o envio de novas remessas dos fornecedores nacionais ou estrangeiros, conforme o planejamento estabelecido pelas autoridades federais.
“Assim que recebemos as vacinas, nós já aplicamos. Nunca as guardamos em estoque e estamos sempre no limite para acabar as doses”, diz o médico Daniel Soranz, secretário municipal da Saúde do Rio de Janeiro.
Vai ter segunda dose de vacina pra todo mundo?
Atualmente, os gestores públicos estão num dilema constante e precisam fazer muitos cálculos para garantir o bom ritmo das campanhas de vacinação.
Afinal, a maioria dos adultos que serão imunizados até setembro precisarão voltar ao posto de saúde para receber a segunda dose em algum momento entre outubro e dezembro de 2021.
E aí vem a grande pergunta: se Estados e municípios estão usando todo o estoque disponível agora, será que teremos vacinas para completar a imunização dos brasileiros no final do ano?
A epidemiologista Regiane de Paula, coordenadora do Programa Estadual de Imunização (PEI) contra a Covid-19 do Estado de São Paulo, admite que essa é uma preocupação, mas aponta que todo o planejamento foi feito de acordo com as projeções de compras e entregas divulgadas pelo Ministério da Saúde.
“Nós temos os quantitativos que virão do Instituto Butantan e dos demais fornecedores. E estamos trabalhando para levar os imunizantes à rede pública de saúde e permitir que os municípios façam a vacinação”, descreve.
O especialista em imunização José Cássio de Moraes, que integra a Comissão de Epidemiologia da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), entende que Estados e municípios deveriam agir com mais prudência e guardar ao menos uma parcela das doses.
“O abastecimento de vacinas ainda está muito irregular no país e já acompanhamos os atrasos por uma série de fatores, como a demora para a liberação do insumo farmacêutico ativo, o IFA, na China”, aponta.
Um exemplo recente dessa imprevisibilidade é a vacina da Janssen: as primeiras 3 milhões de doses estavam programadas para chegar ao Brasil nesta terça-feira (15/06), mas isso não vai acontecer.
O Ministério da Saúde espera que as remessas desembarquem ainda esta semana, mas não informou uma data exata de quando a farmacêutica irá efetivamente realizar a entrega.
Portanto, Estados e municípios que estavam contando com essas doses da Janssen para os próximos dias terão que esperar mais um pouco — e isso, claro, se reflete no planejamento e no andamento das campanhas locais.
Moraes, que também é professor da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, entende que essas escolhas da saúde pública são realmente muito complicadas
“É um dilema difícil de resolver: os gestores podem ampliar a cobertura e vacinar mais gente com a primeira dose, mesmo sabendo do risco de sofrer atrasos com a segunda dose? Ou devem segurar os lotes no depósito quando ainda temos muita gente vulnerável?”, questiona.
Até o momento, 55,7 milhões de brasileiros, ou 26,3% da população, já tomaram a primeira dose da vacina.
Por ora, a segunda dose foi aplicada em 23,7 milhões de indivíduos (11% do total de habitantes do país).
Baixa procura e falta de organização
Os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil também chamam a atenção para os possíveis “buracos” que estão ficando pelo caminho na campanha de vacinação contra a covid-19 no país.
Em alguns grupos prioritários, como os idosos, há uma parcela considerável de pessoas que não recebeu sequer a primeira dose.
Uma reportagem da Folha de S.Paulo revelou que, até o dia 30 de maio, 1 milhão de brasileiros com mais de 70 anos ainda não haviam sido imunizados.
Há diversos fatores diretos e indiretos que podem explicar esse grupo expressivo de desprotegidos.
Eles podem estar sendo influenciados por notícias falsas, que espalham desinformação sobre supostos efeitos colaterais graves das vacinas, por exemplo.
Não dá pra ignorar também a acessibilidade às unidades básicas de saúde: muitas vezes, os locais ficam longe de casa e esses indivíduos precisam do auxílio de filhos, netos e amigos, que estão em horário de trabalho durante o período de funcionamento dos postos de vacinação.
“Para completar, nós não vemos uma comunicação efetiva e uma coordenação feita pelo Governo Federal. Cada cidade ou Estado cria as próprias estratégias e fica tudo desorganizado e sem critérios claros”, critica Moraes.
E esse problema se torna ainda mais grave em relação à segunda dose: segundo essa mesma matéria da Folha, 2,6 milhões de idosos que foram até o posto para receber a primeira vacina não completaram o esquema no prazo estipulado.
E não faltam motivos para explicar essa “desistência” no meio do caminho: muitos podem achar que já têm uma proteção suficiente com uma dose (o que não é verdade), ou simplesmente não se lembram mais da data de retorno.
Paula, que coordena o PEI de São Paulo, revela que 300 mil paulistas não voltaram para tomar a segunda dose.
“Esse número já foi maior. Mas estamos pensando em ações grandes para diminuir a taxa de faltosos, como os famosos ‘dias D’ da vacinação”, analisa.
Já na cidade do Rio de Janeiro, Soranz aponta que 4% daqueles que receberam a primeira dose não retornaram para o reforço
“Apesar de o número não ser alto, consideramos essa situação preocupante. Pelo que sabemos, o principal motivo é o esquecimento da data para a segunda aplicação”, detalha.
“Nós vamos fazer a busca ativa desses casos para lembrá-los da importância de completar o esquema vacinal”, finaliza o médico.
Se a evasão e a recusa aos imunizantes seguir parecida ou aumentar nas demais faixas etárias que serão contempladas a partir de agora, ao menos a estratégia de antecipação de prefeitos e governadores permitirá que mais pessoas interessadas em receber as doses possam fazê-lo, independentemente de serem jovens ou mais velhos.
Isso, por sua vez, ampliará a porcentagem de vacinados no Brasil, o que certamente contribuirá para alcançarmos futuramente a imunidade coletiva contra a covid-19, ou pelo menos para que a situação dos hospitais e enfermarias fique um pouco mais tranquila.
Falta campanha de vacinação
Os especialistas também chamam a atenção para a falta de campanhas públicas que conscientizem a população sobre a necessidade de tomar a segunda dose no prazo estipulado.
“Precisamos que o governo faça mais propagandas e leve informações claras e precisas sobre a vacinação”, pede Moraes.
Em alguns lugares do mundo, por exemplo, os cidadãos são avisados por e-mail, mensagem de texto e telefone quando precisam fazer o retorno — e isso já reduz o risco de esquecimentos e confusões.
Outra boa ideia é o “Dia D”, que ficou muito famoso nas campanhas de poliomielite a partir das décadas de 1980 e 1990: a proposta é estipular uma data de mobilização nacional, geralmente um sábado, para as pessoas irem em massa até os postos de saúde.
Bagunça burocrática e falta de busca ativa
O médico Paulo Lotufo, professor da Universidade de São Paulo, também critica as escolhas que foram feitas para determinar a ordem da vacinação.
“Foi um equívoco total desde o início. O Ministério da Saúde deveria ter focado nos locais com o maior número de casos ou com grande vulnerabilidade, como Manaus. Eles poderiam ter vacinado toda a população desses lugares que estavam com a situação mais preocupante”, raciocina.
Após avançar na proteção de profissionais da saúde, idosos e indígenas, várias cidades e Estados partiram para a imunização de indivíduos com comorbidades, como doenças cardíacas e diabetes, de acordo com faixas etárias pré-determinadas.
Muitos locais exigiam não apenas atestado médico, mas também comprovante de residência para liberar a aplicação da vacina. E isso aumentou ainda mais a confusão.
O especialista entende que as comorbidades configuram um critério socialmente injusto: enquanto pessoas mais ricas podem pagar uma consulta particular para obter um atestado, os mais pobres não conseguem esse tipo de comprovação e acabam ficando para trás.
Essa burocracia, portanto, pode ter criado disparidades importantes e dificultado o trabalho dos profissionais que atuam nos postos de saúde.
“Isso só retardou a campanha. As pessoas demoraram para chegar aos postos, tinham que levar uma série de documentos…”, observa Lotufo.
Para completar, enfermeiros e auxiliares precisaram gastar seu tempo checando e organizando toda a documentação das pessoas, enquanto poderiam estar aplicando mais vacinas ou realizando a busca ativa daqueles indivíduos que não retornaram para tomar a segunda dose.
Mais recentemente, governadores e prefeitos parecem ter abandonado essa ideia e estão estipulando a idade como único critério para a imunização.
Já Regiane de Paula entende que o foco inicial nas comorbidades era importante para proteger as pessoas com mais riscos de sofrer complicações ou morrer por causa da covid-19.
“Essa determinação veio do próprio Programa Nacional de Imunizações, do Ministério da Saúde, e os Estados seguiram as diretrizes. Agora que cumprimos o que foi preconizado, nós decidimos focar nas faixas etárias”, conta.
Os calendários divulgados nos últimos dias confirmam essa tendência: São Paulo, por exemplo, vai contemplar todo mundo de 50 a 59 anos entre os dias 16 e 22 de junho, para depois partir para a população com 43 a 49 anos nas semanas seguintes e assim por diante.
De acordo com anúncios recentes, outros Estados devem seguir esse mesmo ritmo, com pequenas alterações nas datas e nos recortes das faixas etárias.
Uma estratégia comunitária
Por fim, é preciso levar em conta que o benefício da vacinação é coletivo e supera (e muito) a proteção individual dos indivíduos que já receberam suas doses.
“Vacinação é isso: quanto mais gente imunizada, melhor para todo mundo”, resume Lotufo.
Em outras palavras, a sociedade inteira fica mais protegida de determinada doença infecciosa quando uma parcela considerável da população está imunizada.
Isso fica claro quando a gente analisa o estudo de Serrana, cidade no interior paulista em que todos os adultos tomaram duas doses da CoronaVac: foi só quando 75% dos moradores estavam efetivamente vacinados que os casos, as internações e as mortes por covid-19 começaram a cair por lá.
E o tempo é um fator-chave para nos livrarmos dessa pandemia: enquanto tivermos uma parcela considerável de pessoas vulneráveis, o risco de colapso do sistema de saúde e de surgimento de novas variantes mais transmissíveis e letais é considerável.
O lado bom dessa história é que o Brasil tem estrutura e capacidade para botar o pé no acelerador.
“Nós temos 36 mil postos de vacinação e muitos profissionais capacitados, então não é exagero pensar que conseguimos aplicar 2 milhões de doses por dia”, projeta Moraes.
Por ora, o número de brasileiros imunizados a cada 24 horas variou entre 600 e 800 mil nos últimos meses — foram poucos os dias em que o país ultrapassou a marca de 1 milhão de vacinas utilizadas.
Enquanto esse cenário não vira realidade e não temos uma boa porcentagem de cidadãos devidamente resguardados contra a covid-19, é importante que todos (vacinados ou não) continuem fazendo a sua parte.
“Máscaras, distanciamento social e lavagem de mãos seguem como atitudes essenciais neste momento”, resume Paula.
E, claro, quando chegar a sua vez, vá até o posto de saúde mais próximo para tomar a sua dose — e não se esqueça de retornar ao mesmo local na data estipulada para completar o esquema vacinal que protege sua própria saúde e todo mundo ao redor.