Sócia de hidrelétrica no rio Doce e da mineradora Samarco, Vale se vê em guerra interna por danos causados pela lama
Por André Borges, compartilhado de A Pública
BRASÍLIA – A lista de milhares de vítimas que, ainda hoje, cobram indenizações da Vale e da BHP pela tragédia que causaram em Mariana (MG) passou a incluir o nome nada trivial de uma empresa indignada com o comportamento dos donos da barragem de rejeito que rompeu em Minas Gerais em 2015: a própria Vale.
O que faz a Vale sentir hoje o peso dos 56 milhões de metros cúbicos de lama de minério de ferro e sílica que ela própria despejou sobre a região e o curso do rio Doce, matando 19 pessoas, é reflexo direto dos negócios que a companhia possui na região.
Reconhecida como uma das maiores mineradoras do mundo, a Vale é dona de metade da Samarco – a empresa que controlava a barragem que rompeu em Mariana – em sociedade com a anglo-australiana BHP Billiton. Paralelamente, a Vale também é sócia majoritária da usina hidrelétrica Risoleta Neves, erguida no rio Doce em 2004 e também atingida pela lama. Por trás do nome fantasia de “Consórcio Candonga” está a Vale, que controla 77,5% da hidrelétrica, em sociedade com a Cemig, que detém 22,5% do negócio.
Passados mais de oito anos desde aquele fatídico 5 de novembro de 2015 – quando se deu o rompimento da barragem de rejeitos do Fundão, a Vale se vê, hoje, dragada por um processo judicial que, na prática, ela mesma moveu, uma vez que está dos dois lados do balcão, como causadora e vítima da tragédia. E, na Justiça, a batalha é pesada.
A Agência Pública teve acesso exclusivo a detalhes do processo judicial e das acusações que o Consórcio Candonga (Vale e Cemig) impõe à Samarco (Vale e BHP), uma disputa que envolve desde a cobrança de multas milionárias até medidas impositivas contra os donos da barragem de rejeitos.
POR QUE ISSO IMPORTA?
- Rompimento da barragem do Fundão, em 2015, despejou 56 milhões de metros cúbicos de lama de minério de ferro na região, matou 19 pessoas e atingiu o rio Doce, chegando até o oceano Atlântico
- No meio do rio, há uma usina hidrelétrica que também foi atingida e teve suas atividades paralisadas. Tanto a usina quanto a mineradora têm como sócia a Vale, que agora briga consigo mesma
Nos processos judicial e administrativo – pilhas de papéis que correm na Justiça Federal de Minas Gerais e na Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) –, os donos da hidrelétrica expõem sua indignação contra a Samarco e acusam a empresa de ser omissa.
“A verdadeira causadora do dano se furta a cumprir com suas obrigações”, dispara a dona da hidrelétrica contra a Samarco, por causa do descumprimento de vários compromissos. “Por diversas vezes, a Samarco demonstrou seu descontentamento com a obrigação que assumiu”, continua.
Os desentendimentos remontam a novembro de 2015, quando a hidrelétrica Risoleta Neves, com suas três turbinas e potência de 140 megawatts, teve sua operação completamente inviabilizada ao ter seu reservatório invadido pela lama que varreu 40 municípios entre Minas e o Espírito Santo, até chegar ao oceano Atlântico. A energia gerada pela usina é capaz de abastecer cerca de 180 mil residências.
Em março de 2016 – há exatamente oito anos –, a Samarco assinou um Termo de Transação e de Ajuste de Conduta (TTAC), assumindo uma série de compromissos, reparações e indenizações às vítimas do desastre. Entre os contemplados estava a usina Risoleta Neves, com a promessa de ver retirado cada metro cúbico de lama que entupia seu reservatório. Nada disso, porém, foi feito e, com a usina paralisada, o plano de recuperação passou a ser alvo de disputa na Justiça.
Em dezembro de 2022, uma decisão judicial determinou que o Consórcio Candonga tinha que religar a usina, visto que continuava recebendo pagamento mensal pela geração de energia que não existia – uma conta salgada que foi bancada por anos pelos consumidores, por meio da conta de luz. A determinação foi atendida e, em maio de 2023, a hidrelétrica voltou a funcionar. Ocorre que a retirada de lama pela Samarco simplesmente não aconteceu como previsto. E a mineradora lavou as mãos.
“Desde a data do rompimento da barragem de Fundão [5 de novembro de 2015], ela [Samarco] só conseguiu retirar cerca de 5% do montante total de rejeitos do reservatório. Ou seja, no reservatório da usina permanecem mais de 9,2 milhões de m³ de rejeitos”, acusa o consórcio da Vale e da Cemig.
Sem meias palavras, as sócias afirmam que há “absoluta falta de compromisso da Samarco com o efetivo retorno operacional e com a continuidade da operação, uma vez que estão fechando os olhos para os impactos que a presença de rejeitos no reservatório causa”.
Em junho de 2023, um relatório técnico elaborado logo após a retomada das operações comprovou que a lama já estava causando estragos nos equipamentos da hidrelétrica, com efeito abrasivo acelerado nos metais e redução da capacidade de carga da usina.
Tentativas para fazer com que a Vale e a BHP cumprissem seus deveres não faltaram. O Consórcio Candonga menciona pelo menos 19 ocasiões, entre junho de 2020 e setembro de 2023 – todas registradas em documentos –, em que buscou formas de fazer a Samarco cumprir a obrigação de retirar a lama. Não teve jeito.
“A Samarco se comprometeu a retirar mais de 9,6 milhões de metros cúbicos de rejeito do reservatório da usina. Até o momento, tirou aproximadamente 500 mil metros cúbicos”, declarou o Consórcio Candonga, em documento de novembro do ano passado. “É patente que o concessionário não mediu esforços para que as condições originais do empreendimento fossem retomadas. Não obstante, em vista da desídia [comportamento negligente] da Samarco, tem-se que, até o momento, isto não foi possível.”
A concessionária formada por Vale e Cemig acentuou as queixas contra a mineradora, que se limitou a retirar o mínimo necessário de sua lama. “A Samarco, enquanto responsável pelo desastre, vem se furtando ao cumprimento de suas obrigações, sustentando a tese de que, com o retorno da operação comercial da usina, a sua obrigação já restaria cumprida. Nada mais errático”, afirma o Consórcio Candonga.
Briga na Justiça
A lama dos sócios foi parar na Justiça e a confusão se intensificou ainda mais. Enquanto donas da barragem de rejeitos, a Vale e a BHP não apenas deixaram de fazer a retirada integral dos rejeitos como buscaram os tribunais para tentar escapar dessa obrigação que elas próprias haviam assumido de fazer a dragagem e desassoreamento integral dos 9,6 milhões de metros cúbicos de lama parados no reservatório da usina.
Logo depois de ser emitida a licença ambiental que autorizava a remoção, a Samarco informou no âmbito judicial que a Fundação Renova, organização criada para reparar os danos da tragédia, apresentou um recurso administrativo para rever a exigência. A partir daquele momento, os planos da Vale e BHP passaram a definir que a remoção de rejeitos só seria feita na “hipótese de ser futuramente constatada, sob o aspecto técnico, a necessidade de adoção de tal medida”.
A postura revoltou os donos da hidrelétrica. “A Samarco tem tratado a continuidade da retirada de rejeitos do reservatório da usina como se fosse uma medida [obrigação] ainda duvidosa, hipotética, não obrigatória, restrita à manutenção do status atual do reservatório”, acusou o Candonga. “Com base unicamente na retomada da operação em um cenário precário e experimental, [a Samarco] busca induzir, de forma açodada, o entendimento de que cumpriu integralmente com sua obrigação.”
- Hidrelétrica Risoleta Neves teve sua operação completamente inviabilizada ao ter seu reservatório invadido pela lama do desastre em Mariana
- Hidrelétrica Risoleta Neves teve sua operação completamente inviabilizada ao ter seu reservatório invadido pela lama do desastre em Mariana
Ato contínuo, o consórcio da Vale e Cemig acionou a 4ª Vara Federal de Belo Horizonte pela “recalcitrante postura da Samarco”. Na Justiça, o Candonga cobrou providências para a retirada integral dos resíduos e pediu, ainda, que fosse arbitrada uma multa diária de R$ 1 milhão contra a Samarco até que atendesse o cumprimento integral da decisão judicial.
O caso segue em aberto. Em 2022, os donos da hidrelétrica já perderam um primeiro round, quando a Aneel e a Justiça decidiram que o Consórcio Candonga é o responsável imediato pela operação da usina e que deveria não só retomar as operações da hidrelétrica, como também buscar seus direitos diretamente com a Samarco. É Vale contra a Vale.
A hidrelétrica não aceita o argumento e chega a comparar a tragédia de Mariana com a pandemia de covid-19, sob a justificativa de que foi vítima de algo de que não tinha controle. Logo, não poderia ter responsabilidade por isso.
“O desastre de Mariana, sob o aspecto do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos de concessão, deve ser tratado sob a ótica da teoria da imprevisão, tal como se operou com a pandemia provocada pelo novo coronavírus”, afirmou, no processo que tramita na Aneel. “A própria pandemia do covid-19 foi considerada pela Aneel como causa hábil para isentar o concessionário de penalidades por descumprimento contratual.”
A bronca sobrou também para o poder público. “Quem autorizou a Samarco a construir a barragem de Fundão e nela depositar rejeitos foi o poder público, que também sempre foi o responsável pela fiscalização da segurança do barramento”, argumentou o consórcio. “Não há como se imputar a responsabilidade à concessionária, sendo que o próprio poder público autorizou a construção da barragem.”
A Pública questionou cada um dos envolvidos na celeuma jurídica a respeito das informações contidas nesta reportagem. O Consórcio Candonga limitou-se a declarar que “não se manifesta a respeito de assuntos sobre os quais haja ações judiciais em andamento”.
A Aneel não se posicionou até o fechamento desta reportagem. A Samarco se esquivou de detalhar as razões de não cumprir o acordo de retirada integral da lama. Por meio de nota, informou que “está totalmente comprometida com a retomada das operações e com a segurança da usina”.
Da mesma forma como fez na Justiça, disse que tem cumprido sua parte no acordo. “A empresa retirou rejeitos por meio de dragagem para o retorno da usina, realizou reforços na estrutura do barramento, bem como executou as manutenções necessárias para a sua retomada, realizada no primeiro semestre de 2023.”
A Vale, sócia da hidrelétrica e da mineradora, não quis se manifestar. “A Vale não comenta ações judiciais em curso”, declarou.
A participação majoritária da Vale no Consórcio Candonga deve-se ao arranjo societário da empresa. A mineradora é dona de 50% da concessionária, enquanto a empresa Aliança Energia detém os demais 50%. Ocorre que a Vale também detém 55% da Aliança, em parceria com a Cemig, dona de 45%. Na prática, portanto, a fatia real da Vale dentro da hidrelétrica Risoleta Neves chega a 77,5%, com os demais 22,5% da Cemig. No ano passado, houve movimentação de mercado da Vale para comprar a fatia da companhia mineira na Aliança Energia.
Se o cronograma original de retirada da lama for levado adiante, tudo indica que a guerra judicial ainda está longe do fim. A Samarco, conforme plano oficial, admitiu a obrigação de retirada integral dos rejeitos em um prazo de 27 anos. Hoje, o cenário é de incógnita.
Os alertas foram feitos. “Há também o iminente risco da necessidade de interrupção da operação da usina, em vista do acúmulo de rejeitos atingir a tomada d’água da usina”, reclamou a hidrelétrica à agência reguladora. “É viável a continuidade da operação, desde que a Samarco cumpra efetivamente com sua obrigação de remoção dos rejeitos do reservatório da usina.”
Dentro do Consórcio Candonga, a Vale renova sua indignação e aguarda os próximos passos da Justiça. Dentro da Samarco, a Vale silencia.
Edição: Giovana Girardi