E não é que o doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista, na coluna “A César o que é de Cícero”, resolveu nos fazer inveja? Pelo menos a mim. O cronista resolveu tirar onda de que viveu em Vila Isabel, a terra de Noel. Não que o nosso artista das letras queira abafar alguém, mas mostrou que a infância dele foi boa também. Vejam como:
“De relance na memória, vejo Bimba, o rei da Praça Sete, a de Vila Isabel, empreendendo fuga após ter roubado um espeto de frangos com frangos e tudo da padaria. Estava de shorts, sem camisa e sapatos Vulcabrás sem meias. Foi por ali, em direção ao Campo do América, que já é Andaraí.
Se Bimba morreu não sei. Se trocou tiros com a polícia, foi preso, regenerou-se e está vivinho da silva também não. Eu só me lembro dele assim: correndo, rindo loucamente como quem tivesse feito a melhor das travessuras.
Bimba tinha um irmão, o Toddy, apelido que lhe foi dado provavelmente devido ao tom de pele marrom. Toddy era mais velho, intimidava com o olhar. Tinha alguma coisa de ruim nele, não sei. Ele gostava de se vestir com camisa da Adidas e com Rainha Iate. Nunca vi nem Toddy nem Bimba nem nenhum capitão de areia da Vila Isabel vestindo Docksides da Samello. Isso era coisa de playboy. Eu cheguei a ter Rainha Iate. Para variar, furava lá no dedão. “Pé dentro, pé fora, quem tiver pé pequeno vai embora”.
Além disso tudo, tinha o cordão pesado de prata, é claro. E cabelos do tipo capacete que nem o Júnior, lateral do Flamengo. E pra pentear, pente de aço de tirar piolho. Ou um garfo.
Tinha o Tiquinho, o Bujão, o Beto, o Vandeca Meleca, o Damião, o que cheirava cola e benzina. Damião era o boa praça da Praça Sete, apesar de tudo.
Dessa patota aí eu só vi o Bujão frequentar escola, e ainda assim por pouquíssimo tempo. Ele estava bem atrasado, estava na turma das crianças do primeiro ou segundo ano. No futebol, o Beto, irmão do Bujão, era bom goleiro. O Wanderley também era bom de bola. Não confundir Wanderley com Vandeca Meleca.
Faz tempo isso. Imagens confusas vão e vem. Mão Branca, nas capas dos jornais da imprensa marrom, mata dez e mutila a língua portuguesa com seus garranchos. O disquinho de plástico do Chico Buarque com “Passaredo” na banca de jornais, que já se foi. A enciclopédia “Conhecer”, também vendida nas bancas – a primeira edição veio com um estojo índigo blue. Confesso que fiz meu pai comprar o primeiro fascículo da enciclopédia devido ao estojo.
Faz tempo isso. O leite era vendido em sacos plásticos na padaria. Quem tinha mais grana comprava leite em embalagem do tipo Longa Vida, coisa de gente rica. Iogurte. Pão com queijo, playboy.
Lembro do pai do meu amigo aboletado com outros homens negros num boteco ao pé do morro dos Macacos. Uma imagem perfeita para quem sabe desenhar. Para quem sabe viver. Bebi, deixei de beber e jamais encontrei a alegria de beber do jeito que imaginei que aquele pessoal tivesse.
Quando dá, lembro-me de Vila Isabel. Das badaladas dos sinos às seis horas. Lembro-me do cheiro de podre da minha rua depois da feira de sábado. Lembro-me do futebol jogado na calçada ou na mesma rua mesmo. Quem conhece a modalidade de futebol chamada de “Cascudinho”? Um goleiro só para os dois times. E o gol era um portão de grade de ferro. E não valia de bico nem estourar o goleiro. Eram muitas as restrições.
Como moleque do morro costuma usar os shorts mais baixos do que a linha de cintura e minha mãe insistia para que eu usasse os shorts mais altos (quase acima do umbigo), os meninos com quem joguei bola na praça logo me apelidaram de holandês. A turma do seu Cruyff ainda estava em evidência. Eu era um branco amarelo podre no meio dos diamantes negros.
Uma partida de futebol na Praça Sete. O carro passando por cima da bola de couro (na verdade, corina, um material mais barato). O moleque me prometendo me comprar outra bola. Eu levando a bola pra casa como quem leva um passarinho morto. Furou.
E os carrinhos de feira? Os moleques carregavam as coisas para os mais velhos em troca de alguns trocados. Acho que não tinha mais na praça aquela moeda grande cuja efígie eu pensava que fosse a cara da lua.
Na capoeira meu apelido era Macarrão sem molho. Eu todo desengonçado em uma apresentação. “Marinheiro só, quem te ensinou a nadar?” Meu pai foi pra ver que eu não levava jeito. O apelido do mestre? Tigrão. E não é que ele parecia com o tigre da Esso?
A Vila Isabel por dentro e por fora. A fábrica de tecidos que virou supermercado. Acho que Disco, depois foi outro nome. A Avenida 28 de Setembro, as calçadas de pedras portuguesas com as partituras de canções de Noel Rosa. A garagem da CTC – com seus ônibus azuis, depois brancos, sempre muito velhos. Agora a CTC é Detran.
Ao longe, as batucadas, os batuques, as rezas, os cânticos, as tinturarias, os armarinhos, a loja de animais. E aonde sai o diacho do túnel Noel Rosa? “Eu não sei, eu nunca passei por lá”.
A Vila Isabel do Colégio Martins – com o uniforme de calças marrons. O Barão de Lucena. A Escola Municipal Equador, cujo lema era: “Entra burro e sai doutor”. Eu não saí de lá doutor, mas cheguei a sê-lo. Eu cumpri o meu destino. Cumpri?
Além do futebol, havia o volêi na escola. Geração de prata, né? As meninas gostavam do esporte. Alguns meninos também. Mas eu era holandês, só poderia jogar futebol mesmo. E a bola era uma tal de Dente de Leite. Quanto mais cacarecada melhor para o controle.
Quem sabe eu não deva procurar o Bimba para a gente finalmente acertar um jogo contra. Dois capitães de areia de times de futebol. Dois veteranos. Um tímido. Um temido. Pode chamar quem você quiser, cumpade. Pode fazer sua panelinha. Valendo o Refri e o frango. Pênalti roubado não entra.”
Sobre o autor
Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.
Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019), Circo (de Bolso) Gilci e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.