Por Paulo Donizetti de Souza, Rede Brasil Atual –
“Geraldo Vandré – Uma Canção Interrompida” foi a primeira biografia do polêmico compositor. Produção independente do jornalista Vitor Nuzzi ganha reedição e lançamento pela Kuarup
São Paulo – O trabalho jornalístico e literário obstinado de quase uma década do jornalista Vitor Nuzzi acabou sendo recompensado por três importantes acontecimentos neste ano de 2015. O primeiro deles, a decisão do autor de lançar sua obra, Geraldo Vandré – Uma Canção Interrompida, de maneira independente. A primeira biografia do compositor foi lançada em maio, quatro meses antes de o artista completar 80 anos, no último 12 de setembro. Nuzzi partiu para a empreitada mesmo desautorizado pelo personagem e desestimulado por várias editoras – que ora não viam potencial comercial no assunto, ora temiam a proibição, então vigente, de biografias não autorizadas.
Superado o primeiro desafio, finalizar e imprimir o trabalho – 100 exemplares que já nasceram esgotados –, no mês seguinte deu-se a segunda boa notícia, quando o pleno do Supremo Tribunal Federal (STF), numa histórica decisão unânime, derrubou a proibição às biografias.
Quando este redator teve acesso a uma das primeiras versões da obra, ainda na década passada, deu ao autor o seguinte parecer: este livro entrará para o rol das grandes biografias da MPB, dessas que radiografam não apenas o perfil do biografado, mas retratam com precisão o universo político e cultural de um dos momentos mais efervescentes do país, a ponto de surpreender até mesmo quem achava que já sabia tudo. Essa convicção se reafirma.
Densamente jornalístico, o livro de Nuzzi “organiza” mais de uma centena de entrevistas e documentos pinçados de livros, jornais e revistas para montar um quebra-cabeças nítido e bem-acabado. Percorreu o país, distribuiu telefonemas, cartas, recados em portarias de prédios, ouviu vários “nãos” – a maioria deles respeitosamente, em decorrência do fato de Vandré ter escolhido o anonimato – e também muitos “sins”, em sinal de respeito e confiança aos propósitos do autor.
“Algumas foram certamente mais trabalhosas, como a do (cineasta) Leon Cakoff, que levou mais ou menos uns dois anos para se concretizar, no escritório dele, perto da rua Augusta. O Carlos Lyra também demorou um pouco, porque ele estava meio irritado com a reticência do Geraldo de autorizar a publicação de uma foto em seu songbook. Dos músicos do Quarteto Novo, Theo de Barros e Hermeto Pascoal falaram sem problemas, Heraldo do Monte foi muito educado ao declinar, dizendo-se não à vontade já que o livro não era autorizado, e Airto Moreira concordou em um primeiro momento e depois desistiu”, conta o jornalista.
Quem sabe a importância desses nomes a que Vitor Nuzzi se refere na cena musical mundial já tem aí um aperitivo do que vai encontrar – e quem não os conhece, entenda-os como pelés, garrinchas, zicos e sócrates e craques afins da música.
O resultado é um livro complexo, mas construído por narrativa fluente, objetiva, sem firulas, com rigor jornalístico e sem ambição de enaltecer nem desconstruir o mito. Apenas de oferecer ao leitor elementos para desvendá-lo. A descrição dos processos conceituais e criativos de Disparada, Pra Não Dizer que Não Falei das Flores e do último disco, Das Terra de Benvirá, produzido no exílio, já “valeriam o ingresso”.
Para sorte dos leitores, o trabalho de Nuzzi foi premiado pelo terceiro dos acontecimentos citados na abertura deste texto. Depois da decisão do STF de liberar as biografias não autorizadas, fato este aliado à ótima repercussão do livro lançado às próprias custas, a Editora Kuarup, especializada na literatura musical brasileira, abraçou o projeto.
Geraldo Vandré – Uma Canção Interrompida terá evento de lançamento hoje (11) na Livraria da Vila da Rua Fradique Coutinho, na Vila Madalena, zona oeste de São Paulo. E estará, enfim, ao alcance dos interessados na vida e na obra desse personagem da MPB, intrigante desde que partiu para o exílio no final dos anos 1960 e para o qual, pelo menos no cenário musical em que surgiu, nunca mais voltou.
Depois de retornar ao Brasil em 1973, ele escolheu manter o mito Vandré exilado na vida do cidadão Geraldo Pedrosa de Araújo Dias. O trabalho de Vitor Nuzzi, de certa forma, abre aos leitores as portas para este mundo a desvendar.
Parte dele está num dos episódios mais emocionantes da era dos festivais, a final do Festival Internacional da Canção de 1968 que pôs Sabiá, de Tom Jobim e Chico Buarque, à frente de Caminhando – algo que só poderia mesmo ser melhor compreendido com o desenrolar da história, a do Brasil e sua música.
Embora tenha se constituído num símbolo da resistência à ditadura que ainda se formatava, Caminhando, com seu dois contundentes acordes, revelou-se uma canção impactante, perfeita, porém datada. Sabiá, por sua vez, universalizou e eternizou-se. Uma obra-prima dedicada aos exílios da humanidade, seja o de Gonçalves Dias e as palmeiras de sua terra, seja o de Vandré, o de Pedrosa e outros geraldos vitimizados pelo regime de terror.
Um regime que interrompeu a obra de um artista enigmático e promissor, e também a história de um país.