Por Breiller Pires, publicado em El País –
Embora não tenha sido o primeiro a contar com jogadores negros, time se tornou símbolo de luta contra o racismo depois da ‘Resposta Histórica’ redigida há 95 anos
“Para nós, de fato, esse documento é como um troféu”, afirma João Ernesto Ferreira, vice-presidente de relações especializadas do Vasco, ao justificar a exibição de uma réplica da carta na nobre galeria de taças. Consolidado no remo, o clube só começou a se destacar pelos gramados no início da década de 1920.
Sem a mesma tradição dos times da zona Sul do Rio na modalidade, a estratégia era montar elencos com jogadores das classes sociais menos favorecidas. A equipe campeã da segunda divisão em 1922 tinha como craques operários, choferes, pintores e faxineiros. Assim, assegurou o direito de disputar, no ano seguinte, a primeira divisão ao lado dos já consagrados América, Botafogo, Flamengo e Fluminense.
Com a base de trabalhadores braçais mantida no plantel, o Vasco desbancou favoritos, arrebatou 11 vitórias em 14 jogos e faturou o título do campeonato organizado pela Liga Metropolitana de Desportos Terrestres (LMDT). Incomodados pela ascensão meteórica dos vascaínos, rivais decidiram criar uma nova liga, a Associação Metropolitana de Esportes Athleticos (AMEA), impondo ao clube apelidado de Camisas Negras, pela cor de seu uniforme, a exigência de excluir 12 jogadores que, de acordo com os cartolas, não apresentavam “condições sociais apropriadas para o convívio esportivo”. O analfabetismo foi uma das razões enumeradas pela liga para desqualificar parte do elenco campeão.
Por unanimidade, a diretoria cruzmaltina desistiu de integrar a AMEA e, então, endereçou a carta à liga esclarecendo por que rechaçava a ordem para abrir mão de jogadores negros e pobres. “O ato público que pode maculá-los nunca será praticado com a solidariedade dos que dirigem a casa que os acolheu, nem sob o pavilhão que eles, com tanta galhardia, cobriram de glórias”, detalha o quinto parágrafo da Resposta Histórica.
Enquanto os grandes clubes institucionalizavam o elitismo do futebol com a criação de um torneio paralelo, o Vasco via sua popularidade aumentar, sobretudo entre as camadas suburbanas da sociedade carioca, lotava estádios a cada jogo e, em 1924, voltou a sagrar-se campeão, dessa vez de forma invicta, do campeonato regido pela LMDT.
Pinto dos Santos, que trabalhou por seis anos no Vasco e ajudou a fundar o Centro de Memória em São Januário, argumenta que os dirigentes da época foram hábeis ao capitalizar a ampla divulgação da carta. Embora não tenha sido o primeiro a contar com jogadores negros no Brasil, o clube ganhou fama de pioneirismo pela maneira como afrontou a discriminação da AMEA.
Antes, em 1905, o Bangu, time fabril do subúrbio carioca, já havia integrado o jovem Francisco Carregal, de 16 anos, à sua equipe. No fim daquela década, o clube se afastaria da LMDT por causa da restrição explícita a “pessoas de cor” entre os participantes da liga. A diferença para o Vasco, porém, é que o time alvirrubro só foi chamar a atenção por seus bons resultados em 1933, quando conquistou o Campeonato Carioca. “O primeiro campeão a ter negros no time foi o Vasco”, afirma João Ernesto Ferreira. “A classe social ou etnia dos jogadores não importava para o clube.”
O Vasco também foi o primeiro clube esportivo brasileiro a ter um presidente negro, Cândido José de Araújo, que ficou no cargo entre 1904 e 1906. No entanto, depois de Araújo, as esferas de poder vascaínas são marcadas pelo predomínio dos brancos.
Atualmente, entre membros da diretoria e da cúpula de conselheiros, apenas dois negros ocupam posições estratégicas em São Januário: Edmílson Valentim, presidente do Conselho Fiscal, e o vice-presidente Elói Ferreira, ex-secretário especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República.
A baixa representatividade de negros e pobres no comando é reforçada por barreiras como a cobrança de taxa de admissão a novos sócios, exigência de tempo mínimo de 10 anos no quadro associativo para candidatos a presidente e a manutenção de eleições indiretas.
“O Vasco não pode viver apenas de celebrar o passado”, diz Ricardo Pinto dos Santos. “Para manter a representação de clube comprometido com a luta contra o racismo, é preciso se engajar no presente. O futebol, como um todo, ainda reproduz as estruturas racistas da sociedade. Isso demanda um posicionamento mais enfático, um enfrentamento contínuo ao preconceito.” Há 95 anos, a Resposta Histórica contribuiu para ampliar o alcance de um esporte elitizado a negros e pobres e foi um marco para a era do profissionalismo no futebol.
Até hoje, a torcida vascaína reverencia a carta com os versos de um cântico aclamado nas arquibancadas: “Eu já lutei por negros e operários… Camisas Negras que guardo na memória”. Mas o enfrentamento ao racismo ainda é uma página incompleta na história do clube que deve boa parte de suas glórias ao heroísmo dos ídolos negros.
Foto da capa: Camisas Negras: o time do Vasco campeão carioca em 1923. ARQUIVO CRVG