Por Tatiana Dias, Rafael Moro Martins, Andrew Fishman, Paula Bianchi, publicado em The Intercept –
O Intercept começa a publicar nesta segunda-feira uma série de reportagens sobre o maior vazamento de documentos da história sobre o funcionamento das organizações de espionagem do Irã.
Uma fonte anônima enviou ao Intercept um arquivo com mais de 700 páginas de telegramas do Ministério da Inteligênca e Segurança do Irã, o MOIS, na sigla em inglês, que revelam detalhes sobre ações de espionagem e interferência política no Iraque e outros países da região. Os documentos foram traduzidos do persa para o inglês e compartilhados com o New York Times.
Em 2003, em busca de um suposto arsenal de “armas de destruição em massa” que nunca se materializou, uma coalizão liderada pelos EUA e pela Grã-Bretanha invadiu o Iraque, depôs o ditador Saddam Hussein – que foi perseguido e morto – e deixou um rastro de destruição e vácuo de poder que se espalhou pela região. Desde então, o país luta para se reconstruir, destruído por guerras sectárias e a influência de organizações como o Estado Islâmico e o governo do vizinho e adversário histórico, o Irã.
“De certa forma, os documentos vazados da espionagem iraniana são uma prestação de contas definitiva da invasão americana ao Iraque. E a ideia de que Washington entregou o controle do país ao Irã hoje em dia é amplamente aceita até mesmo no Exército americano”, relata a reportagem do Intercept.
Os documentos se referem ao período de 2014 e 2015, um momento em que o Irã se aproveitava do vácuo criado pela saída da maioria das forças americanas do Iraque, o Estado Islâmico estava em ascensão, a guerra civil já devastava a Síria e a Arábia Saudita estava às portas da sua guerra catastrófica no Iêmen.
A influência real do Irã sobre o Iraque depois da invasão é massiva e conhecida, mas o arquivo revela detalhes importantes até hoje ocultos. Nos recentes protestos que tomaram conta do Iraque desde outubro, cidadãos pedem melhores condições de vida, o fim da corrupção e a saída do primeiro ministro Adil Abdul-Mahdi.
Também querem o fim da influência do Irã sobre a política local. Mas essa relação, revelam agora os documentos obtidos com exclusividade pelo Intercept, é muito mais profunda e complexa do que se imaginava – e envolve aparelhamento de instituições e cargos políticos, propinas e muita espionagem.
Os documentos mostram, por exemplo, que em 2014 o atual primeiro-ministro do Iraque, Adil Abdul-Mahdi – à época ministro do Petróleo –, teve um “relacionamento especial com a República Islâmica do Irã” e que muitos dos seus ministros também tiveram. É um termo vago para designar vários tipos de relações em que a soberania iraquiana foi deixada de lado por seus próprios políticos em favor dos interesses de Teerã.
O Irã vive sob um governo fundamentalista islâmico do ramo xiita desde 1979, quando a revolução liderada pelo Aiatolá Khomeini depôs o impopular regime monárquico do Xá Reza Pahlavi, à época um dos mais abertos ao modo de vida ocidental do Golfo Pérsico. Nos anos 1980, o Irã e o Iraque lutaram pelo domínio do Golfo na mais longa guerra convencional do século. Hoje, a balança parece pender de forma irreversível para o lado iraniano, em um cenário agravado pelas guerras internas, disputas de poder e desolação herdada de anos de invasão e ocupação dos EUA.
O Intercept e o New York Times conseguiram comprovar a autenticidade dos documentos, mas não sabem quem os vazou. Segundo as reportagens, a fonte que enviou o material por meio de canais criptografados disse apenas que queria que “o mundo soubesse o que o Irã está fazendo no meu país, o Iraque”.
Espionagem turbinada pelos EUA
Os documentos vazados do MOIS mostram como o Irã tirou proveito das oportunidades que os EUA criaram no Iraque, da falta de estrutura básica à uma complexa rede de informantes. Quando os americanos deixaram o país em 2011, deixaram também vários espiões desempregados. Atrás de dinheiro e com medo de serem mortos por terem cooperado com Washington, eles começaram a oferecer seus serviços para o Irã.
Os documentos revelam em detalhes como isso acontecia. Em novembro de 2014, um ex-espião iraquiano dos EUA decidiu mudar de lado em troca de proteção de Teerã. “Donnie Brasco”, como era conhecido pela CIA, virou a “fonte 134992″ para o Irã. Ele contou aos iranianos tudo o que sabia: a localização de casas consideradas seguras pela CIA, os hotéis onde as reuniões aconteciam, detalhes sobre armamentos e treinamentos e os nomes de outros espiões. Tudo isso em troca de um salário de US$ 3 mil por mês, um adiantamento de US$ 20 mil e um carro.
Irã se apossou da inteligência americana no Iraque, inclusive softwares e escutas telefônicas.
“Eu enviarei a vocês todos os documentos e vídeos que eu tenho do meu treinamento”, ele disse ao seu contratante iranianino, segundo um relatório de inteligência de 2014 descrito nas reportagens. “Inclusive fotos e características dos meus colegas e subordinados.”
Os telegramas revelam a rotina dos espiões – que incluem reuniões disfarçadas de excursões e festas de aniversário – e a maneira como eles monitoravam toda a movimentação dos americanos, tirando fotos de soldados e ficando à espreita nos aeroportos. E mostram que o Irã se apossou da inteligência americana no local, inclusive softwares e um sistema de escutas telefônicas.
Um vizinho aparelhado
As reportagens também revelam, em detalhes, como a política dos EUA para o Iraque foi catastrófica – e tem consequências que duram até hoje. “Realmente, o Irã é o único real vitorioso da guerra do Iraque”, diz Frank Sobchak, coronel aposentado do Exército dos EUA e um dos editores de “História da Guerra do Iraque”, livro publicado pelo próprio Pentágono.
Depois que Hussein caiu, o Iraque viveu um período de caos, sem segurança e serviços básicos. Para piorar, os EUA promoveram a chamada “desbaathificação” – a remoção de todos os antigos membros do partido do ditador, o Baath, do poder – e isso criou uma legião de homens sunitas marginalizados, ressentidos e desempregados. A guerra sectária entre xiitas e sunitas emergiu daí – e o Irã despontou como protetor da população xiita, que é preponderante nos dois países. Os sunitas, por sua vez, ficaram privados de direitos e sob ataque, e esperavam que outros grupos, como o Estado Islâmico, os protegessem.
As reportagens revelam que o Irã soube aproveitar essa influência. Apesar da resistência de boa parte do povo iraquiano, os iranianos enxergaram a cúpula do poder no país vizinho como subserviente a eles. Segundo os documentos vazados, o regime iraniano considera aliados não apenas o primeiro ministro Abdul Mahdi, mas também muitos ministros e funcionários do governo do Iraque.
Os telegramas mostram que os ministros de Relações Exteriores, do Petróleo, Cidades, Comunicação, Direitos Humanos, Educação e Transporte do Iraque estavam alinhados com o regime iraniano. Este último, Bayan Jabr, comandava o ministério do Interior iraquiano quando centenas de prisioneiros foram torturados até a morte ou executados sumariamente por tropas xiitas. Ele foi classificado como “muito próximo” ao Irã.
Os telegramas detalham um episódio de 2014 que deixa claro o tamanho da influência dos iranianos. Na época, a guerra civil da Síria estava em seu auge, e de lá o Estado Islâmico montou uma invasão ao norte do Iraque. Ao mesmo tempo, os EUA tentavam fazer com que o país fechasse seu espaço aéreo para os iranianos. O Irã apoiava o regime de Bashar Al-Assad na Síria contra os rebeldes apoiados pelos americanos.
Naquele ano, o general-major Qassim Suleimani, líder da poderosa Força Quds, pediu a Jabr acesso ao espaço aéreo do país para enviar suprimentos e armas para Assad. Os telegramas revelam do lado de quem o Iraque ficou: “cara a cara com Suleimani, o ministro dos Transportes do Iraque achou impossível recusar o pedido”, diz a reportagem do Intercept.
Segundo um dos arquivos, Jabr relatou que o general iraniano “veio até mim e solicitou que permitíssemos que aviões iranianos usassem o espaço aéreo iraquiano para passar para a Síria”. O ministro dos transportes não hesitou e o general Suleimani pareceu satisfeito. “Eu coloco as minhas mãos sobre os meus olhos e digo, ‘pelos meus olhos, como você quiser!’”
Estado Islâmico, um inimigo comum
No fim de 2014, os EUA voltaram à região em nome do combate ao Estado Islâmico, o ISIS. O Irã também via a organização como inimiga. Alguns americanos e iranianos defenderam que os dois país juntassem esforços contra o inimigo, mas os telegramas vazados mostram que, embora o Irã se preocupasse com o ISIS, o crescimento da presença americana da região também era uma ameaça. “O que está acontecendo no céu sobre o Iraque mostra o grau massivo de atividade da coalizão”, escreveu um agente iraniano em um telegrama.
Mesmo assim, os dois países acabaram trabalhando juntos-mas-separados. Por exemplo, na batalha contra o ISIS em Makhmour, uma pequena cidade no norte do Iraque defendida por forças curdas, os iranianos chegaram primeiro com conselheiros para apoiar os curdos. Dias depois, os americanos começaram uma campanha de ataques aéreos que foi decisiva na vitória contra ISIS.
Os documentos mostram que, além das batalhas, o esforço iraniano contra o ISIS também se deu no campo da espionagem. Os iranianos rapidamente conseguiram ter informantes de dentro do Estado Islâmico, mas a organização estava ciente das traições. Eles cortaram todas as comunicações de suas forças de linha de frente para impedir que os seus próprios comandantes revelassem informações estratégicas a seus inimigos em troca de uma chance de desertar com segurança.
Havia, no entanto, divisões internas. Segundo os telegramas, o MOIS via Suleimani como um perigoso oportunista que usava a campanha anti-Estado Islâmico como propulsão para uma carreira política. O general Suleimani foi o responsável, por meio de espionagem e ações militares secretas, por garantir que o poder xiita alinhado com o Irã crescesse em Bagdá. Mas o MOIS não concordava com o patrocínio de milícias xiitas pela Força Quds, liderada por Suleimani, e preferiu uma estratégia mais focada no soft power, como mandar médicos iranianos para vilas no Iraque.
Um relatório do MOIS critica pessoalmente Suleimani por fazer propaganda de seu papel de liderança na campanha militar contra o Estado Islâmico no Iraque em redes sociais. Na avaliação dos oficiais, isso deixava claro que o Irã está no controle da milícia xiita, um presente em potencial para os rivais do país – EUA e Israel, por exemplo, que podem usar o fato como gatilho para atacar o país. “Essa política do Irã no Iraque permitiu que os americanos retornassem ao Iraque com grande legitimidade. E grupos e indivíduos que estiveram lutando contra os americanos entre os sunitas estão agora desejando que não só os Estados Unidos, mas também Israel, entrem no Iraque e os salvem das garras iranianas”, diz um documento.
Uma aliança com a Irmandade Muçulmana contra a Arábia Saudita
Os documentos também revelam os detalhes íntimos de uma reunião sigilosa entre as lideranças da Força Quds e a Irmandade Muçulmana que aconteceu na Turquia em abril de 2014. O encontro é improvável: a Irmandade Muçulmana é uma importante entidade sunita e as forças Quds patrocinam milícias e esquadrões da morte xiitas. Os dois grupos, no entanto, acreditaram que tinham um inimigo comum: a Arábia Saudita.
O MOIS não foi convidado, mas um dos seus oficiais presenciou e até ajudou a organizar o evento. Na reunião, os grupos discutiram a possibilidade de trabalhar juntos no Iêmen para enfrentar a Arábia Saudita, que estava preste de iniciar a guerra com o seu país vizinho. A Irmandade também queria “desarmar” o conflito entre os xiitas e sunitas no Iraque. Cooperações na Síria, onde a guerra civil era complexa demais, e no Egito, onde Mohamed Morsi, membro da Irmandade, havia sido deposto num golpe de estado, foram descartadas.
A parceria, no entanto, acabou não acontecendo. Os telegramas mostram que “amigos da Força Quds, presentes nesta reunião, discordavam que deveria haver uma aliança entre xiitas e sunitas”. Mais reuniões foram sugeridas, mas não está claro se aconteceram.