Veja, ilustre passageiro, a história do bonde

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Por Mariana Albanese em Overmundo –  

Infinitas são as representações do saudoso veículo em crônicas, músicas e poesias. Através de seus estribos, bancos, ou mais adiante, janelas, poetas e escritores viram o mundo. E o registraram. Uma imersão ao mundo dos bondes é uma viagem nos tempos e costumes de décadas não tão passadas. Percebamos, como Drummond, o bonde que passa cheio de pernas.

Meu diário bergantim, meu aeroplano,
minha casa particular aberta ao povo,
eu te saúdo, te agradeço; e em pé no estribo
agarrado ao balaústre,
de modesto que é, faço-te ilustre




Carlos Drummond de Andrade

Marc Ferrez
Arquedruto da Carioca, transformado em viaduto para bondes. Por Marc Ferrez.

Trabalho pra burro
No início eram a burros. Pobres burros, que puxavam o bonde, às vezes com um expediente de 18 horas. O primeiro veículo, por iniciativa de Thomas Cochrane, rodou no Rio de Janeiro em 1859. A “Companhia de Carris de Ferro da Cidade à Boa Vista” faliu em 1866, após implantar o sistema de bondes a vapor.
Dois anos depois, o serviço seria reinaugurado com grande pompa. Em 9 de outubro de 1868, com D. Pedro II como passageiro ilustre, a companhia “Botanical Garden Rail Road Company” fez a viagem inaugural.
Sistemas semelhantes foram sendo criados pelo país. São Paulo foi apenas a décima segunda a implantar, em 1872, atrás, por exemplo, de Belém do Pará, onde em 1868 um americano com o o incrível nome de James Bond inaugurou o sistema de bondes a vapor.

Onde não havia o vapor, sob chicotadas e berros, os animais faziam quatro viagens por dia. Terminado o expediente, eles se recusavam a continuar e eram substituídos por outra leva. Em subidas íngremes, um outro burro era atrelado. Ele ficava esperando na ladeira, e se juntava aos outros quando os via chegar. Terminada a jornada, descia sozinho e esperava no mesmo lugar.
Eles tinham lá suas particularidades. Só atendiam pelo nome, e chamado por um cocheiro conhecido. Sofrimento era para os novos funcionários.
Em São Paulo, a primeira empresa a explorar o bonde a burros chamava-se Companhia Viação Paulista, cuja sigla era CVP. Em homenagem aos constantes empaques e descarrilamentos (ocasião em que todo mundo descia para ajudar a colocar o carro nos trilhos de novo), o povo a apelidou de “Cada Vez Pior”.

Choque de gerações
Os bondes elétricos chegaram ao país em 1892, também no Rio de Janeiro, capital federal. Mudaram radicalmente o cotidiano das pessoas. Eram o passaporte para o mundo, mesmo nos limites do município. Foram vistos com medo e admiração:

“Eu tinha notícia pelo pretinho Lázaro, filho da cozinheira de minha tia, vinda do Rio, que era muito perigoso esse negócio de eletricidade. Quem pusesse os pés nos trilhos ficava ali grudado e seria esmagado facilmente pelo bonde. Precisava pular. (…) (Oswald de Andrade, em O Bonde e a cidade)“

Em crônica para A Semana, em 16 de outubro, Machado de Assis registrou suas primeiras impressões:

“O que me impressionou, antes da eletricidade, foi o gesto do cocheiro. Os olhos do homem passavam por cima da gente que ia no meu bond, com um grande ar de superioridade. (…) Sentia-se nele a convicção de que inventara, não só o bond elétrico, mas a própria eletricidade.”

Catorze, quinze anos depois, eles ainda eram vistos como uma ameaça, o “perigo amarelo”. Um exemplo é o que publicou o Correio da Manhã, em 11 de outubro de 1906: “Não é que a Light decidiu exterminar a honesta população desta cidade? (…) Os bondes elétricos continuam a esmagar e trucidar inocentes passageiros.” Em maio do ano seguinte, era a vez da revista Fon-Fon alertar: “Os estropiados aumentam e a população de tais lugares, se de todo não desaparecer, em breve ficará privada de braços e pernas”.

O bonde e as mulheres
O novo transporte deu liberdade para que as pessoas conhecessem a própria cidade. As mulheres puderam enfim sair de casa, acompanhadas. Causava reações. A opinião é do jornalista França Júnior, no fim do século 19: “Se o impulso dado pelo bonde à nossa sociedade for em escala sempre ascendente, havemos de ver em breve as nossas patrícias discutirem política (…), irem à praça do comércio ler os jornais do dia, ocuparem-se de tudo enfim, menos do arranjo da casa”.

Preconceitos à parte, elas deveriam se cuidar: “Anda a gente pelos bondes/ Sem poder se virar/ Porque logo grita um anjo:/ Este homem quer bolinar”
A letra cantada por Eduardo das Neves fala de um tipo oportunista: o “bolina”, assim descrito na revista Fon-Fon de julho de 1922: “tipo paradoxal que a cidade inteira conhece, o tal que só acha lugares vazios nos bancos onde viajam moças e meninas. (…) E enquanto o bonde corre, já uma perninha ameaça um assalto, depois a mão, logo em seguida o joelho, depois tudo … Se ela reage, ele se melindra, protesta e desce para esperar outro bonde e outra vítima. Se ela consente, ele só não se senta no colo porque os outros protestam”.
Já existiam, naquela época, as “maria-bonde”, meninas que esperavam o bonde passar para flertar. Ramos Cotoco, modista cearense, notou: “Numa rua onde passa o bonde/ Moça não pode engordar” e continua adiante: “Se o bonde passa está na janela /Se o bonde volta ainda está ela / Namora a todos, é um horror /Aos passageiros, ao condutor”.

“Um pra light, dois pra mim”
As passagens eram cobradas pelo condutor, que ao contrário do que o nome sugere, era o responsável por ir de passageiro em passageiro, pedindo o dinheiro. Às vezes, com a falta de fiscalização, o condutor “esquecia-se” de marcar no contador. O povo ironizava: “din, din, é um pra light, dois pra mim”.
Havia a mamata para os amigos, como confessa a música de Leonel Azevedo e J. Cascata, de 1937: “Não pago o bonde, Iaiá / Não pago o bonde, Ioiô / Não pago o bonde / Que eu conheço o condutor”.
No carnaval, quando os bondes ficavam apinhados de gente, era comum o não pagamento. Nessas ocasiões, muitas vezes o veículo vinha enfeitado pelo próprio motorneiro. Era o transporte para os desfiles.

“O motorneiro é cuidadoso, não conversa em serviço”
A plaqueta ficava à vista, e muitas vezes vinha acompanhada de um outro aviso: “prevenir acidentes é dever de todos”. Estes aconteciam com alguma freqüência. Descarrilamentos, colisões com outros veículos , e até mesmo as conseqüências de um pulo desastrado no bonde andando eram comuns.
Contra maiores estragos nos atropelamentos, os bondes possuíam um sistema interessante. Quando a pessoa ia parar de baixo do veículo, colidia com uma barra de madeira, que acionava uma pá. Ela arrastava a vítima, impedindo que ela fosse atingida pelas rodas. Mesmo assim, não foram raros os casos de quem perdeu algum membro por abusar da sorte.

Da onde vem o bonde?
A versão mais aceita para a origem da palavra bonde vem dos bilhetes emitidos pela Botanical Garden Railroad, no Rio de Janeiro. Era as passagens, chamadas “bond”.
Outros pesquisadores sugerem que ela é derivada de “Eletric Bond & Share”, nome de uma das empresas que explorava o serviço no Brasil.
Uma versão curiosa diz que a palavra originou-se a partir do sobrenome de um cônsul americano, que em 1868 tornou-se dono da primeira empresa de bondes de Belém do Pará. Seu nome: James Bond.

Reclames
A partir de 1908 os bondes passaram a circular com propagandas, ou reclames, como se dizia antigamente. Por uns tempos, valeu a regra: os anúncios não poderiam “causar distúrbios, manifestações hostis, em língua estrangeira, ofensivos à moral ou alusivos à moléstias secretas e repugnantes”
Mas não teve muito jeito. Farmacêuticas eram as maiores anunciantes. A mais conhecida de todas as propagandas é a do Rum Creosotado, cuja autoria é a atribuída ao poeta Bastos Tigre:

Veja, ilustre passageiro
O belo tipo faceiro
Que o senhor tem ao seu lado.
E no entanto, acredite.
Quase morreu de bronquite
Salvou-o o Rum Creosotado.

Mais um:

Esse nervoso irritante
Que não o larga um instante
Bem pode ser de sua vista
Por que a um oculista não corre
Da casa A Especialista?”

Estação final
Por cerca de 50 anos,os bondes dividiram as ruas com outros veículos. Estes, cada vez em maior número, nem sempre conviviam amigavelmente. Em São Paulo, ano de 1911, foi construído pelos irmãos Luiz e Fortunato Grassi o primeiro ônibus brasileiro. Por volta de 1920, com o petróleo mais barato que a eletricidade, o Brasil começa a importar jardineiras do Estados Unidos. Em 1930, só na capital paulista elas já passavam de 400 unidades.
A pressão das empresas de ônibus para o fim dos bondes foi aumentando. A Light queria desistir do serviço, mas um decreto de Getúlio Vargas, em 1937, a obrigou a prosseguir. São Paulo (1968) e Santos (1971) foram as últimas cidades a aposentarem seus bondes. O bonde de Santa Tereza, no Rio de Janeiro, foi a única linha urbana no País que nunca parou de circular.
A última viagem do bonde Camarão, que saiu da Vila Mariana em 26 de março de 1968, em direção à Santo Amaro, foi motivo de comoção nos paulistanos. Em marcha lenta, seguido por automóveis, ele fez o último percurso. “Para um despedida, até que foi um festa bonita, sentimental demais”, escreveu a revista O Cruzeiro. E relembrou: “O bond criou moda: motorneiro que se prezasse tinha quase a obrigação de deixar crescer o bigode, para combinar com o uniforme escuro; e o bonito era o rapaz pular do bonde andando, na ladeira da Augusta”.

CURIOSIDADES

Tipos de bonde elétrico

“Aqui em São Paulo o que mais me amola / São esses bondes que nem gaiola / Cheguei abrir uma portinhola/ Levei um tranco e quebrei a viola / Inda pus o dinheiro na caixa da esmola “ (Bonde Camarão – Cornélio Pires / Mariano)

Personagem querido da cidade, o bonde tinha as funções mais diversas, e apelidos curiosos.

Caradura (Taioba) – Inicialmente, os antigos bondes com tração animal foram atrelados ao bonde principal, para que as pessoas pudessem levar grandes volumes. Como custava a metade do preço, virou uma opção de transporte barato, mas que também era usado por quem tinha mais dinheiro. Daí a “caradura”.

Bonde de ceroulas – Assim os cariocas apelidaram o bonde de gala, que era forrado com um brim branco, para eventos sociais.

Bonde dos mortos (funerário) – No carro principal iam os parentes. No reboque, o morto.

Bonde do correio – carro de serviços, assim como o que carregava carne e o que fazia manutenção nas linhas elétricas.

Bonde de areia (reboque) – Os motoristas dos carros tinham o costume de andar sobre os trilhos. Isso fazia com que a borracha se acumulasse, e nos dias de chuva os bondes derrapavam nas ladeiras. Para evitar acidentes, de tempos em tempos passava esse reboque, jogando areia.

Bonde Camarão – Assim apelidado por sua cor vermelha. Fechado, circulou nas ruas de São Paulo. Tinha capacidade para 51 passageiros sentados. Último bonde a circular na cidade.

Bonde Centex (Gilda) – O mais luxuoso bonde que circulou em São Paulo. Foi assim apelidado em homenagem à personagem de Rita Hayworth no cinema americano. Tinha calefação automática. Teve seus similares. Em Olinda, havia o bonde Zeppelin. Em Vitória, o bonde Tobias (todo revestido de espelhos, nele não entrava homem sem gravata).

Bonde-salão – Entrou em operação na cidade de Salvador, em 1911. Era reservado para eventos de autoridades, casamentos e batizados. São Paulo também tinha o seu. O luxuoso Ipiranga adquirido pela Ligth em 1905. Abençoado pelo Cardeal Arcoverde, era alugado para eventos, e festas no próprio bonde.

Bonde ambulância – Construído a pedido do governo do Rio de Janeiro, ajudou a cuidar dos feridos da revolta do forte de Copacabana em 1922.

As regras de Machado
É curioso ver como os problemas que enfrentamos hoje em ônibus e metrôs eram quase os mesmos de um séculos atrás. A constatação fica clara a lermos as 10 regras de comportamento para andar de bonde, sugeridas por Machado de Assis. A primeira, vai abaixo.

Art. I – Dos Encatarrhoados – Os encatarrhoados podem entrar nos bonds, com a condição de não tossirem mais de trez vezes dentro de uma hora, e no caso de pigarro, quatro.
Quando a tosse for tão teimosa que não permita esta limitação, os encatarrhoados têem dous alvitres: – ou irem a pé, que é bom exercicio, ou metterem-se na cama. Também podem ir tossir para o diabo que os carregue.
Os encatarrhoados que estiverem nas extremidades dos bancos devem escarrar para o lado da rua, em vez de o fazerem no proprio bond, salvo caso de aposta, preceito religioso ou maçonico, vocação etc., etc.

Dicionário do bonde

Almofadinha – virou sinônimo de frescura, excesso de arrumação. Como os bancos do bonde eram de madeira, alguns levavam sua almofadinha para ter uma viagem mais tranqüila.

Andar na linha (do bonde) – Ser correto e sincero nos negócios.

Balastro – areia, saibro ou cascalho que se lança nas vias.

Comprar um bonde – Cair no conto do vigário. Fazer um mal negócio.

Condutor – Cobrador

Mortorneiro – Motorista do bonde

Pegar o bonde andando – Entrar no meio de uma situação ou conversa em andamento.

Perder o bonde da história – Perder-se no contexto de algo.

Pongar – (e despongar) subir (ou descer) no bonde sem que este pare.

Tocar o bonde – Levar algo adiante.

Tomar o bonde errado – Ver frustrado seus intentos.

Trombada – Na São Paulo dos anos vinte, um elefante fugiu do circo e derrubou um bonde com a tromba. Virou sinônimo de colisão.

PARA ANDAR DE BONDE

Restam poucos bondes em circulação no Brasil, a maioria deles em São Paulo, turístico, e com circulação reduzida. Aos poucos, cidades como Santos vão dando nova vida aos trilhos. Belo Horizonte estuda a implantação de uma linha. Belém está prestes a inaugurar um trajeto, e Manaus também projeta a reativação. As duas últimas com assistência da empresa santista Clinimaq, a única no país com licença para restaurar e construir bondes.

Linhas atuais

São Paulo – SP
Um pequeno trajeto saindo do Museu do Imigrante, no Brás, relembra a história dos bondes na cidade. Bonde aberto, movido à gasolina.

Campos do Jordão – SP
Linha turística com oito quilômetros de extensão. Através das janelas, uma bela visão do centro da cidade. O bonde é fechado, condição providencial em dias mais frios.

Campinas – SP
Trajeto turístico, de quatro quilômetros dentro do Parque Portugal. Bonde aberto.

Belém – PA
A linha está pronta. O bonde, restaurado. Mas no meio do caminho estão 180 ambulantes, que não permitem a passagem pelo centro. A previsão da prefeitura de Belém era que no início de 2007 ele já estaria rodando, assim que os comerciantes fossem realocados. A cidade de Santos prestou assessoria para a implantação e escolha do roteiro.

Santos – SP
Em 2000 a cidade do litoral paulista reinaugurou a linha de bondes. Hoje, três deles fazem um circuito de 1.700 metros pelo centro histórico. Guias acompanham o trajeto. Dentro do programa “vovô sabe tudo”, antigos motorneiros organizam o embarque e contam histórias do tempo áureo dos bondes. A previsão é que o trajeto seja ampliado para 5 quilômetros.
Santos tornou-se referência em restauração de bondes, e hoje presta assessoria para outras cidades que desejam seguir o exemplo.
Mais sobre os bondes de Santos:http://www.novomilenio.inf.br/santos/obondex.htm

Santa Teresa enfrenta o verdadeiro perigo amarelo

“Mas inauguram-se os bondes. Agora é que Santa Tereza vai ficar à moda.”

Machado de Assis não se enganou. O bonde de Santa Tereza esteve sempre “à moda”, nunca deixou de circular, desde 1896, quando foi inaugurado. Hoje é um dos símbolos da cidade, deslizando sobre os arcos da Lapa.
As crianças adoram. Vão se pendurando, sem ligar muito para os riscos. Turistas se empolgam e realizam o sonho de “pegar o bonde andando”. O motorneiro e o cobrador são sempre atenciosos, caraterística histórica do transporte. O passeio de bonde pelo bairro histórico, com casas do tempo de Machado de Assis, é um imersão no passado.
Mas o bom e velho bonde sofre com a falta de investimentos estatais. Dos 14 bondes, apenas quatro estão rodando. A passagem, de R$ 0,60, não sofre reajuste há dez anos. O valor, comparado ao do bondinho do Pão de Açúcar (R$ 35) ou do trem do Corcovado (R$ 36) é mínimo.
O trajeto que vai de Santa Tereza ao Silvestre, na junção com a Estrada de Ferro do Corcovado, teve sua fiação roubada, e não há planos de ser reposta. Segundo a Central, que administra a linha de bondes, lugar é ermo e não “vale a pena” o investimento. Já os moradores e motorneiros consideram o trecho mais bonito de todos.

Todos os sábados, às 10h e às 14h, o bonde realiza um percurso cultural de duas horas, passando pelos diversos museus do bairro, com acompanhamento de uma guia. Uma das paradas é no Museu do Bonde, que funciona junto à oficina de restauração.

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