Veja quem grita, por Fernando Horta

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Por Fernando Hortapublicado no Jornal GGN

Quando começo a escrever, tenho por costume um ritual. Abro o editor de texto vazio e deixo ideias que estão me incomodando aflorarem, sem, contudo, escrever uma linha. A dualidade entre a tela branca, vazia e inerte, e o brainstorm de argumentos dentro da minha cabeça formam uma das forças necessárias à composição do texto. A outra é o pensar sobre a necessidade e a validade do que será escrito. Liberdade de expressão não é apenas um direito discricionário a ser usado ao bel prazer do sujeito, obedecendo unicamente ao desígnios voluntaristas e não raro, egocêntricos e vaidosos do escritor. Liberdade de expressão é uma ferramenta social que se pode usar – seguindo Gramsci – de forma mantenedora ou transformadora. Antes de nos perguntarmos o que diz uma mensagem é preciso perguntar quem fala, de onde fala, por que fala, como fala, a quem fala … então e somente então a interpretação do texto se torna fundamentada.

Não é à toa, que no momento de maior acirramento das disputas políticas dos últimos quatro ou cinco anos a Folha de São Paulo abra espaço para nomes “dissidentes” de uma intelectualidade que se define “de esquerda”, para atacar Lula e já pensarem no “momento pós-Lula”. No dia 29 de dezembro último, Freixo deu sua famigerada entrevista dizendo basicamente três coisas: (1) que não aceita composição de esquerda; (2) que ele, juntamente com o Think Tank Paula Lavigne, criaram a candidatura Boulos e que (3) é preciso já trabalhar pelo momento “pós-Lula” que, segundo Freixo, ocorre de imediato por condenação ou porque “vai se dar” … como contingência do final de vida do líder petista.




No dia 06 de janeiro, Rudá Ricci, desta vez falando para a Revista Fórum, escreve sobre a “conveniência da candidatura Boulos”. Ricci diz basicamente três coisas: (1) que defende e enxerga Boulos como “uma candidatura de renovação das esquerdas”; (2) que o PSOL se coloca como carro-chefe desta “renovação” que “não se faz sem vítimas” e que (3) “o ciclo Lula está terminando” e, segundo Ricci, ele não foi “público nem generoso” quanto ao “preparo de sua sucessão”.

No dia 05 de janeiro, novamente na Folha de São Paulo, Vladimir Safatle escreve sobre A “alternativa da esquerda” (sem plurais) e afirma basicamente três coisas: (1) as respostas da “esquerda” à entrevista de Freixo são “estereótipos falhos” de argumentos “hegemônicos” históricos de grupos de esquerda; (2) que o cerne do problema brasileiro é o “conflito distributivo” que, segundo Safatle, não teria sido atacado pelo PT e (3) que o “Lulismo” é tão vil quanto as “coalizões populistas” da Era Vargas e este seria “o problema do Brasil”.

Não pode passar despercebido ao leitor o fato de que sejam os três discursos extremamente semelhantes, ventilados por meios semelhantes em datas extremamente próximas entre si e próximas do apoteótico momento do dia 24/01, em que cinco anos de cafajestagens institucionais serão colocadas à prova por sobre qualquer ideia de democracia no Brasil. Não pode deixar de ser notado que todos os comentadores afirmam, direta ou subliminarmente, que “o maior problema do Brasil” é Lula e este argumento é EXATAMENTE o que move os desembargadores do TRF4, a mídia hegemônica no Brasil, os grupos que sustentam o golpe, Moro, o MBL e etc. Para os escritores desta “dissidente esquerda”, o maior problema do Brasil não são os direitos diariamente suprimidos da população. O maior problema não é um governo ilegítimo, identificado e direcionado com interesses contrários aos nacionais a vender e entregar tudo o que pode. O maior problema do Brasil não é um protofascismo que surge vigorosamente em todos os locais do país e que conta com forte candidato à presidência, apoio em altos cargos institucionais e certa simpatia nas fileiras verde-oliva.

Não. O maior problema é Lula e sua sucessão.

Pensam eles com seus umbigos, seus projetos de poder, seus espaços públicos e seu mundo Leblon-Vila Madalena, que falam pelas “esquerdas”, pelo “país”, pela “intelectualidade” e – até – pelo “povo”.

Safatle chega ao cúmulo da desinformação deliberada ao dizer que “a esquerda brasileira demonstrou unidade exemplar na luta contra o impeachment de Dilma”. Parece que o filósofo folheano esquece que o PSOL se ombreou com os que diziam “fora todos eles” e que foi apenas quando o bravo Deputado Jean Wyllys, em silenciosa auto-crítica, veio à público dizer que não apoiaria o impeachment de Dilma que o PSOL, muito lentamente, foi tornando esta postura sua[1]. Luciana Genro, por exemplo, apenas ontem deu declaração inconteste pelo apoio ao direito de Lula concorrer em 2018. Apenas ontem.

Ao contrário, o PSOL flerta abertamente com os desmandos e inconstitucionalidades da Lava Jato, seja apoiando Moro ou Bretas. O PSOL se uniu em diversas votações com a direita no Congresso para barrar projetos e posicionamentos do PT entre 2012 e 2014. O PSOL aceita de bom grado os espaços midiáticos que lhe são oferecidos e os usa sempre com textos abertos ou meta-textos críticos ao PT dando a esta mídia hegemônica, conservadora, antidemocrática e monopolista um respaldo de “neutralidade” cujo único efetivo resultado é o ataque a qualquer tentativa de mudança do país, haja vista que sequer a prefeitura do RJ o PSOL conseguiu – mesmo com extensivo apoio da Globo RJ a Freixo. Freixo qualifica, por exemplo, Bolsonaro como “corajoso e honesto” reforçando um argumento que ele “ouviria sempre” de eleitores que votavam “nos dois”.

É visível que o PSOL busca num momento tão perigoso para o país fazer seu “projeto de poder”, para usar uma expressão que comumente o partido usa como crítica ao PT. É visível que criam o discurso do “fim da era Lula” e o ligam narrativamente ao “fim do ciclo do PT” e até mesmo ao “fim do PT”, como se todas as afirmações fossem de valor semelhante. Ao mesmo tempo, usam expressões pejorativas – semelhantes às usadas pela direita e mídia – como “neointelectualidade petista” ou o completamente impróprio “populismo” ou “neopopulismo do PT”. Quem fala em “populismo” para atacar Lula, Chavez, Correa, Morales e etc., mostra que não tem qualquer qualificação intelectual para manejar tais conceitos. A ressignificação do conceito de populismo, feita inicialmente por intelectuais norte-americanos, é de uma pobreza teórica impressionante e serve apenas de arma política contra governos que tiveram sim (por mais que alguns não gostem) apoio na parte mais pobre da população. O PSOL encampa a crítica e a faz parecer “legítima”, eis que vinda de uma parte da “esquerda”. Obviamente que o poder legitima a quem lhe interessa.

Ora, qual nome se dá a uma “dissidência” da esquerda que passa a usar os léxicos que as direitas usam para desqualificar os movimentos e líderes históricos também de esquerda? Qual nome que a história deu aos grupos que, mesmo se dizendo de esquerda, usavam espaços, financiamentos, armas, instituições oferecidas pela direita para bombardear as oposições ao poder constituído? Qual o nome que a história deu para aqueles que pensam que o “maior problema” de um sistema político é quem está à frente nas pesquisas para o próximo pleito e não aqueles milhões que estão sendo diariamente vilipendiados pelo exercício do poder atual? Qual o nome que a História deu para aqueles que se aproximam até mesmo de ideias e práticas fascistas em nome de um “combate” à esquerda, cujo cerne é um “purismo ideológico” que muito se aproxima da retórica do Mein Kampf.

Se é verdade que uma das técnicas para se descobrir os caminhos de poder na política atual é o “follow the Money”, uma outra é o “veja quem grita”. Veja quem grita quando Lula fala e quando Freixo fala. Veja que espaços Lula e Safatle têm nos meios da mídia que, clara e indiscutivelmente, defende o status quo político. Veja a quem incomodam aqueles que se dizem como “alternativa”, e a quem incomodam os que são rotulados como estando em “fim de ciclo”. A técnica do “veja quem grita” serve muito bem para que os trabalhadores entendam efetivamente quais os papéis são dados a quais grupos na atual política. Veja quem grita. Veja a quem o poder dá a palavra e a quem tenta calar. Veja quem o poder incita a concorrer “democraticamente” e quem ele tenta eliminar. Veja que memórias o poder mantém vivas do passado e quais eles tentam apagar.

Veja quem grita, e verás contra quem determinado discurso realmente se volta. E isto ocorre a despeito de qualquer linguagem empolada, pseudoacadêmica, quase democrática ou sedizente “de luta”. Deve ser exatamente por isto que o PSOL não consegue ter base popular ou mesmo proletária. Me atrevo a dizer que se somadas todas as horas gastas em vigília nas madrugadas frias na frente de fábricas que Lula fez para falar aos trabalhadores desde a década de 70, é muito mais do que o tempo em redes sociais que a “nova esquerda” tem. E esta é toda a diferença.


[1] Não vou retomar 2013, momento em que Ricci (em sua página pessoal) diz que “anarquistas e autonomistas” controlaram o movimento e a direita foi majoritária “apenas” em Brasília e SP. Anarquistas e autonomistas (seja lá o que quer dizer por autonomistas) – infelizmente – juntos dão duas “Kombi” cheias, mas não conseguem, nem de perto perfazer o 2013.

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