Verbas cortadas ontem dificultam combate à Covid-19 hoje

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Por Agostinho Vieira, compartilhado de Projeto Colabora – 

Faltam reagentes, equipamentos e até pesquisadores, muitos foram para o exterior em busca de novas oportunidades

O Instituto Bio-Manguinhos já produziu 100 mil testes para a Covid-19 e espera chegar a uma produção de 250 mil testes por semana. Foto Divulgação

Não há mais dúvida hoje de que o combate ao coronavírus é uma prova de longa distância. Uma maratona mundial que exige paciência, solidariedade e muitos, muitos recursos. A metáfora da corrida vale também para a pesquisa científica, no Brasil e no mundo. É preciso ter paciência na espera pelos resultados, solidariedade entre os pesquisadores de todas as partes e muitos recursos, é claro. Só que aqui essa competição já vem sendo perdida há vários anos, no mínimo desde 2014. Hoje, o orçamento do país destinado à pesquisa, o que inclui a compra de insumos, equipamentos e a remuneração de doutores e doutorandos representa um terço do que já foi dez anos atrás. Dinheiro que faz falta nestes tempos de Covid-19.




Pesquisadores jovens e pós-doutores têm migrado para outros países em busca de oportunidades profissionais. O Brasil está dando uma contribuição enorme para os países do primeiro mundo promovendo essa diáspora, exportando nossos talentosos jovens para os Estados Unidos, a França e a Inglaterra

Renato Cordeiro
Pesquisador emérito da Fiocruz

“Nos últimos anos, o governo brasileiro vem navegando na contramão da história. Cortando e contingenciando seguidamente o orçamento para a pesquisa, a educação e a proteção ao meio ambiente, com grande impacto na performance científica no país. O cenário para 2020 é desolador: as verbas provenientes da Finep, do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico foram dramaticamente reduzidas antes dessa crise da Covid-19. O CNPq até terá dinheiro para as bolsas, mas as verbas de fomento foram pulverizadas, causando grande prejuízo às lideranças cientificas e aos laboratórios das universidades e institutos de pesquisa. A Capes também teve uma grande redução nas suas verbas e tem cortado bolsas dos programas de pós-graduação”, explica o professor Renato Cordeiro, pesquisador emérito da Fiocruz e membro da Academia Brasileira de Ciências.

Enquanto isso, a Alemanha, por exemplo, já anunciou que investirá, entre 2021 e 2030, a vultosa soma de 160 bilhões de euros no seu ensino superior e na pesquisa cientifica. Movimentos semelhantes acontecem na China, na Coreia do Sul e nos Estados Unidos. Com isso, o abismo que nos separa desses países só aumenta. O físico Luiz Davidovich, presidente da Academia Brasileira de Ciências, lembra a dependência externa que estamos vivendo hoje no combate ao coronavírus. Estamos importando testes, insumos e até máscaras, quando elas não são todas arrematadas por um país mais rico:

“Falta ao Brasil um projeto autossustentável de ciência e tecnologia. O país detém 20% da biodiversidade mundial e não tira proveito disso. Podíamos ser uma potência ambiental e não somos. Um exemplo que eu dou sempre é o da Endopleura uchi, uma planta originária da Amazônia. Do seu caule se extrai a bergenina, que é um excelente anti-inflamatório e antioxidante. O laboratório Merck vende a bergenina por R$ 1 mil cada miligrama. Dependendo da cotação, esse valor equivale a cinco mil vezes a miligrama de ouro”, contabiliza Davidovich.

Técnicos do Ministério da Saúde recebem no aeroporto Guarulhos, em São Paulo, cinco mil testes para a Covid-19 vindos da China. Foto Divulgação/MS
Técnicos do Ministério da Saúde recebem no aeroporto Guarulhos, em São Paulo, cinco mil testes para a Covid-19 vindos da China. Foto Divulgação/MS

Os cortes sistemáticos de investimentos no Brasil comprometeram e seguem comprometendo as investigações e potenciais inovações em áreas estratégicas como a Química, a Farmacologia, a Biologia Molecular, a Genômica, a Proteômica, a Virologia, a Medicina experimental e muitas outras. Faltam recursos para manutenção e para a compra de equipamentos de ponta nos centros de pesquisa. Para o professor Renato Cordeiro, já era mais do que previsível que teríamos uma pandemia como essa da Covid-19, e teremos outras, infelizmente:

“Fomos impactados anteriormente pela Síndrome Respiratória do Oriente Médio (Mers) e a Síndrome Respiratória Aguda Grave (Sars). O país, simplesmente, não se preparou adequadamente, procurando ser autossuficiente em insumos dos mais variados tipos. Era uma tragédia anunciada, pois qualquer estudo estratégico de inteligência sabe que em casos de pandemias e grandes catástrofes, os países produtores fecham as torneiras e aumentam os preços”, lamenta.

Enquanto isso, no Instituto Bio-Manguinhos, ligado à Fiocruz, uma ilha de excelência na América Latina, segue a luta dos pesquisadores para garantir a produção de testes para a Covid-19. Graças ao trabalho de ponta em biologia molecular, feito nos últimos 15 anos, foi possível desenvolver rapidamente um kit diagnóstico para a Covid-19. Eles usaram como base o Kit NAT, que hoje é utilizado nacionalmente para testagem de todas as bolsas de sangue doadas no país, detectando o HIV e as Hepatites B e C:

“Neste momento já produzimos quase 100 mil testes que vêm sendo distribuídos para a rede pública de laboratórios. Nosso desafio agora é o aumento de escala dessa produção. Até agora tivemos dificuldades para adquirir insumos em quantidade suficiente, o que tem restringido esse aumento de escala. Mas esperamos receber novos insumos em maior quantidade já no final da próxima semana. Com isso, vamos aumentar a produção até chegarmos na última semana de abril produzindo cerca de 250 mil testes por semana. Em maio, e nos meses subsequentes, nossa meta será produzir e entregar 1 milhão de testes/mês. Um feito jamais realizado por Bio-Manguinhos ou em qualquer outro laboratório no Brasil. Isso só foi possível graças aos investimentos em P&D feitos no passado, o que nos permitiu criar competência no Instituto – conta, com orgulho, o doutor Maurício Zuma, Diretor do Instituto.

Um outro problema grave, provocado pelo desmonte promovido nas universidades e em alguns institutos de pesquisa, é a fuga de talentos. Jovens cientistas brasileiros estão sem motivação e sofrem com a falta de esperança com relação ao futuro da ciência no Brasil.  Para piorar as coisas e as perspectivas de futuro, o governo bloqueou os concursos públicos e paga bolsas com valores irrisórios aos doutorandos, que não conseguem sobreviver dignamente:

“Pesquisadores jovens e pós-doutores têm migrado para outros países em busca de oportunidades profissionais. O Brasil está dando uma contribuição enorme para os países do primeiro mundo promovendo essa diáspora, exportando nossos talentosos jovens para os Estados Unidos, a França e a Inglaterra. Em pouco tempo, a China também entrará nesse mercado de cérebros sem gastar um tostão na formação dos jovens cientistas”, conta Renato Cordeiro.

Para o professor Eric Hanushek, doutor em economia pelo MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts), que esteve no Brasil no início do ano, existe uma relação clara entre os anos de escolaridade, a qualidade do ensino e o crescimento do país. Isso vale para o Brasil, para os Estados Unidos e qualquer outra nação. Se considerarmos os resultados do PISA (Programa Internacional de Avaliação de Alunos), coordenado pela OCDE, o Brasil vem ocupando as últimas posições há muitos anos. Se o país alcançasse o mesmo índice de desempenho do México, que é apenas um pouco melhor, o PIB per capita seria 5,6% maior e os trabalhadores brasileiros poderiam ganhar, em média, cerca de 11% a mais.

Parece lógico, mas não é. Especialmente em um país onde o ministro da Educação, Abraham Weintraub, classifica as universidades federais como centros de “balbúrdia” que abrigam em suas instalações “gente pelada, eventos ridículos e muita bagunça”. Foi com base nessas certezas “científicas”, que o governo justificou parte do contingenciamento de R$ 7,4 bilhões dos recursos do MEC no início de 2019. Um erro grave, que agora está provocando o sofrimento de muita gente.

Agostinho Vieira

Formado em Jornalismo pela Escola de Comunicação da UFRJ. Foi repórter de Cidade e de Política, editor, editor-executivo e diretor executivo do jornal O Globo. Ainda na Infoglobo, empresa que administra os jornais O Globo, Extra e Valor Econômico, exerceu por oito anos a função de diretor executivo de Negócios. Também foi diretor do Sistema Globo de Rádio e da Rádio CBN. Ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo, em 1994, e dois prêmios da Society of Newspaper Design, em 1998 e 1999. Tem pós-graduação em Gestão de Negócios pelo Insead (Instituto Europeu de Administração de Negócios) e em Gestão Ambiental pela Coppe/UFRJ. Atualmente é Editor Chefe do Projeto #Colabora.

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