Por Cláudia Motta, compartilhado de RBA –
Em seu quarto mandato, a parlamentar de origem indígena e periférica é a única mulher da bancada do PT na capital paulista
São Paulo – Não é a primeira vez e infelizmente, é muito provável, que não será a última. A democracia brasileira, golpeada desde 2016, sofre ataques diários em todas as casas legislativas do país. As mulheres são as mais agredidas e na linha de frente desses ataques estão geralmente parlamentares eleitos com apoio do atual presidente Jair Bolsonaro. E que usam o machismo e a violência verbal para tentar desqualificar o trabalho da oposição. É o que está acontecendo em São Paulo com a vereadora Juliana Cardoso. Eleita para o seu quarto mandato na maior cidade do Brasil, Juliana é a única mulher da bancada do PT na Câmara Municipal. Mulher de origem indígena e periférica, ela conhece de perto os problemas que assolam a maioria dos paulistanos. E, talvez por isso mesmo, sua atuação incomoda a ponto de ser vítima, agora, de ameaças contra seu mandato.
Juliana Cardoso está à frente da resistência contra um projeto de lei (PL 813/2019) que afirma ser possível enfrentar a questão da gravidez na adolescência pregando a abstinência sexual. O proponente é o vereador e pastor Rinaldi Digilio. Defensor do governo de Jair Bolsonaro, o parlamentar do PSL é entusiasta das políticas propostas pela ministra dos Direitos Humanos de Bolsonaro, Damares Alves. Outros PLs moralistas, de costumes, prometem entrar na pauta.
O PL 813/2019 deve ser votado na próxima semana e diante da manifestação de representante da Secretaria Municipal de Saúde divulgada por Juliana, afirmando estar “assustado” com a matéria, Digilio partiu para o ataque nas redes sociais da vereadora Juliana Cardoso, que aponta as fragilidades do projeto. O vereador do PSL usou termos ofensivos e que ferem o decoro parlamentar. Juliana promete reagir.
Acompanhe a entrevista de Juliana Cardoso à RBA
É a primeira vez que enfrenta esses ataques? Ou a diferença é que desta vez se tornaram públicos, via redes sociais?
Não foi a primeira vez. Eu me elegi muito jovem, com 28 anos, e uma votação muito expressiva, apesar de muita gente não acreditar no potencial do projeto que estava representando. O Parlamento não é um lugar fácil. Ninguém ensina a você as regras da Casa, o regimento, as comissões.
Então, no começo foi difícil. Como mulher, jovem, da periferia, num parlamento com homens brancos, da elite, cis-heteronormativos, não ter a fala respeitada, não ser considerada nas minhas posições e colocações, ser chamada de menina, ser avaliada pela minha aparência. Por ser mulher, ser considerada só para falar de assuntos relacionados com o universo das mulheres, e por aí vai.
Já cheguei a achar que o problema era comigo. Com o feminismo, com a consciência feminista que fui formando, percebi que o problema não era meu, mas era o fato de ser mulher e também de ser periférica e ter ascendência indígena. A minha experiência na Câmara também me possibilitou experimentar a relação que todas essas opressões têm na vida da gente. E quando entendi isso não pensei mais em desistir.
Mas além desse dia a dia em que as violências vão aparecendo, sou perseguida por um homem (que não é vereador) que já expôs minha família, meus filhos, e fez ameaças de estupro contra mim. Ele profere calúnias e gravas vídeos para me atacar. Também já representei contra ele. Houve uma outra situação, com outro parlamentar, em 2017, em que também fui desrespeitada. Mas creio que, dessa vez, o despudor de me ofender, de me atacar, utilizando estereótipos de gênero, preconceitos de classe sem qualquer vergonha, sem medo das consequências, é inédito.
Efeito Bolsonaro
Acredita que a postura do atual presidente da República seja diretamente responsável por esses ataques que estão se repetindo em várias cidades do país?
Certamente. O fato de que temos um machista, genocida, racista, lgbtfóbico na Presidência transmite uma sensação de autorização para todos os que pensam como ele. Mas temos de compreender também que esse caldo de cultura de ódio às mulheres feministas, aos LGBTs, aos negros, às políticas sociais que incluíram essa população no acesso a direitos, à proteção social – ainda que tenhamos muito mais para fazer –, foi se construindo antes da eleição de 2018. E somado ao ódio ao PT que também foi construído, fomentado pela elite entreguista, pela imprensa parcial, que culminou com o golpe da presidenta Dilma, justamente por termos promovido tantas transformações no Brasil.
Ainda que muitos digam que não foi suficiente para transformações mais radicais e profundas na nossa sociedade tão profundamente desigual, racista, machista, lgbtfóbica, foi o bastante para essa gente decidir que era hora de voltar para trás, de acabar com as conquistas do povo, para acabar com as políticas públicas. Mesmo que isso significasse, como estamos vendo, eleger um homem que despreza a democracia e que despreza a vida.
Misoginia e preconceito
Termos como os utilizados pelo vereador Rinaldi (“não se empulere em cima de nada”; “O Mobral não existe mais, mas se precisar, tenho ótimos professores que podem ajudar”; “caso o problema não seja o analfabetismo e seja só má intenção, acho que terá problemas quando acionar a Corregedoria da Câmara”) não deveriam ser punidos pela Comissão de Ética da Câmara?
Com certeza! Para nós isso é claramente quebra de decoro parlamentar! O vereador não se constrangeu em proferir publicamente a sua misoginia, seu preconceito de classe. E nossa luta é para que isso não aconteça mais com nenhuma outra mulher. E isso só vai acontecer quando conseguirmos alterar as estruturas desses espaços de poder, construídos por homens e para homens. A gente precisa dar visibilidade, chamar as coisas pelos seus nomes. E isso foi claramente violência política de gênero. Nossa luta é para que a Câmara reconheça isso e tome as medidas cabíveis .
Pretende tomar alguma medida contra eles?
Certamente. Estamos estudando as providências jurídicas que vamos tomar. Não é tolerável o que ele fez. E não digo só por mim, mas digo por todas as mulheres que estão ou querem estar nos espaços institucionais de poder, exercendo seus direitos políticos. Temos visto muitos casos de violência política de gênero Brasil afora. Essa medida é coletiva. Só há caminho para nós se for no coletivo.
Ação e reação
Acredita que a verdadeira razão por trás desses ataques seja seu projeto de resolução que propõe a perda de mandato para aqueles que praticarem a violência política de gênero?
Acho que são as duas coisas. A gente tem visto cada vez mais casos de violência política de gênero seja com as parlamentares, com mulheres que disputam cargos públicos, com as que estão, por exemplo, nos conselhos. Em 2017, u ma conselheira de um hospital municipal ouviu do diretor na época que ela deveria voltar pro tanque e parar de “encher o saco”. Isso porque ela, como conselheira, estava fazendo seu papel de fiscalizar, participar das decisões da unidade de saúde. Então, eu acho que chama atenção o fato de que, apesar de que a violência política de gênero atinja todas as mulheres, ela tem sido mais sistemática, mais grave e contundente contra mulheres de esquerda, mulheres que se declaram feministas, mulheres negras, transexuais, lésbicas e bissexuais.
No contexto da violência que sofri, por exemplo, o embate se dá porque sou forte opositora ao projeto Escolhi Esperar (o PL 813/2019) apresentado e defendido pelo vereador. Como minha defesa se dá pelo meu feminismo e também pela compreensão de que o projeto é equivocado e apresenta respostas ineficientes e moralistas para uma questão realmente séria, que é a gravidez na adolescência, e o vereador é um, digamos, anti-feminista, a tensão é mais evidente. E a violência, um desfecho mais possível. Certamente somos favoráveis à discussão de informação contra a gravidez precoce, mas em cima de políticas públicas de um Estado forte.
Projetos de Juliana Cardoso
Mas também acho que o fato de estar pautando na Câmara Municipal de São Paulo o tema da violência política de gênero, a partir de dois projetos que apresentei, deve pesar sim. Um deles institui o dia de enfrentamento à violência política de gênero no calendário oficial da cidade. O outro projeto prevê o reconhecimento da violência política de gênero como quebra de decoro parlamentar. Porque, posso imaginar o que se passa na cabeça desses homens que entendem que a política é um espaço só deles, o que significa ter de lidar com a possibilidade de ser enquadrado por uma comissão de ética por ter cometido uma violência, um assédio.