Viagem à capital da fumaça que não vai mais embora

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Por Yáskara Vandoni, compartilhado de Projeto Colabora

Cuiabá muda de cor e impõe novos hábitos à população, devido aos incêndios no vizinho Pantanal; “cheiro” da destruição fica nas roupas e na alma

Cuiabá, sem e com fumaça: consequência dos incêndios no Pantanal vira tormento para população. Fotos de Yáskara Vandoni

Meu lugar está envolto na fumaça destruidora – e ela viajou para ressurgir, só para mim, em pleno Rio de Janeiro. Ao vestir uma blusa, senti o cheiro infame que virou o da cidade natal. Aproximei o ombro do nariz – e depois de algumas vezes, constatei o cheiro de fumaça na manga. Trouxera na mala uma lembrança sensorial das queimadas, que sobreviveu mesmo com todas as lavadas e passadas, a 1.800 quilômetros de distância.




E foi só uma pequena parte da experiência…

Enfrentei a pandemia para rever minha família em Cuiabá, numa temporada de 40 dias, depois de dois anos distante. Planejei a viagem respeitando todas as recomendações da OMS, claro, e embarquei dia 18 de julho de 2020, já acostumada com a temperatura e a umidade do inverno carioca. Fui completamente paramentada: sapatos fechados, luvas, escudo facial, máscara, roupas compridas e álcool gel. Assim, não houve surpresa diante do calor que senti ao pisar em Cuiabá.

Mas o impacto maior não foi tanto em relação à temperatura, mas à umidade, que fez meus lábios racharem e minha pele, que é oleosa, descamar de tão seca. Meus olhos precisavam de lubrificação constante e respirar era um tanto desconfortável; principalmente nos momentos de fazer algum exercício em casa.

Conforme os dias foram passando, percebi que a vista do meu prédio, que antes era livre e permitia alcançar os paredões de Chapada dos Guimarães, agora estava turva, como uma neblina – embora os 36°C não a justificassem. Além de checar a umidade, me deparei com algumas matérias que traziam números alarmantes, como a do portal de notícias DW, mostrando que só em 2020 o fogo já consumiu mais de 17 mil quilômetros quadrados de mata, o equivalente a mais de 10% da área do total de um dos biomas mais importantes do mundo, o Pantanal. O Mato Grosso é o único estado brasileiro que possui três biomas: Amazônia, Cerrado e Pantanal.

A vida na capital mato-grossense vai se tornar cada vez mais insuportável, nos próximos 20 ou 30 anos, com o aumento gradativo da temperatura, das queimadas e da poluição

Celso Saldanha
Imunologista e mestre em Ciências da Saúde

Com frequência, a umidade relativa do ar estava em torno de 19%. Enquanto escrevia esse texto, a umidade relativa do ar no Rio de Janeiro está em 78%, enquanto a de Cuiabá chega a 11%. Lembrei-me de algumas pouquíssimas vezes em que as aulas no meu ensino fundamental e médio foram suspensas por taxas tão baixas assim, embora não me recorde de ver tanta fumaça no céu e o horizonte tão limitado, durante os 18 anos que morei em Cuiabá. A piscina do prédio também mudou de aspecto, sempre cheia de fuligem, o que obrigava a limpeza redobrada.

A família teve de mudar alguns hábitos comuns para suportar o calor potencializado pelo fogo. Roupas de malha muito fina, mesmo à noite (no inverno), e o revezamento de cômodos com ar condicionado ligado, para controlar os gastos com energia. Outro equipamento comum em todos os quartos, assim como os aparelhos de ar condicionado, é o umidificador de ar com capacidade de quase 4 litros de água, reabastecido a cada quatro ou cinco horas de uso.

É preciso registrar nossa condição de privilégio, o que ameniza cenário tão devastador. Para algumas pessoas da minha bolha, tão incomodadas quanto eu e que constantemente divulgam nas redes sociais imagens chocantes do céu encoberto de fumaça, ficou nítido que tudo isso representa um projeto; um plano de passar a boiada. Para outros, é repetido o mantra de que essas queimadas acontecem todo ano e são naturais do cerrado – até ousam dizer que o solo precisa disso para se fortalecer, portanto, não há nada surpreendente!

A previsão do tempo no aplicativo: "smoke" ou "fumaça". Reprodução
A previsão do tempo no aplicativo: “smoke” ou “fumaça”. Reprodução

Confesso que ver minha cidade de um jeito que não estava na minha memória foi mais difícil e triste do que encarar o isolamento de meus pais e irmão, durante 15 dias em um cômodo do apartamento. Também fico em dúvida por quanto tempo ainda será possível habitar Cuiabá, um dia apelidada de cidade verde, mas sobre a qual Celso Saldanha, imunologista e mestre em Ciências da Saúde, fez, em 2015, alerta a cada dia mais perceptível: “A vida na capital mato-grossense vai se tornar cada vez mais insuportável, nos próximos 20 ou 30 anos, com o aumento gradativo da temperatura, das queimadas e da poluição, aliado às desvantagens geográficas”.

Querendo ou não, a gente passa a normalizar mais um dia cinza que reduz o sol a uma bola vermelha boiando num céu de fumaça. Igualzinho àquele dia que virou noite em São Paulo, ano passado, que deixou os sudestinos abismados. Torço para ser reversível, que esses três biomas tenham força para renascer, e para que a saúde dos meus e da população matogrossense seja priorizada o quanto antes. Há dados, imagens e informações sobre o problema, mas o cheiro nas minhas roupas não é um número, não pode ser compartilhado via internet ou telefone – serve apenas como testemunho e lembrança preocupantes. Saber que, com o tempo, a fumaça e fuligem tornam-se quase imperceptíveis causa espanto e tristeza. Pelo menos a checagem da temperatura no celular nos ajuda a lembrar: mais um dia de fumaça – sim, esse já é o termo oficializado no aplicativo de previsão do tempo.

Pobre do meu lugar.

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