Viagem a Gramado

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Mais uma viagem da coluna “A César o que é de Cícero”, do doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista. Desta feita, César se transforma em guia turístico e nos leva a Gramado, no Rio Grande do Sul. Boa viagem, mas cuidado com o nevoeiro.

“(Para o Gigante do Sul, Marco Aurélio Vasconcellos) )
Eu já tinha ido ao Sul com meus pais. Acontece que uma coisa é você viajar com os pais, com doze, treze anos e outra é você viajar com a mulher amada, Layla Warrak. Seria para nós dois uma segunda lua de mel. Tinha sido dela a decisão de viajarmos para Gramado, cidade bonita da Serra Gaúcha.





Chegamos a Porto Alegre de avião. Fazia sol, e o termômetro marcava uns cinco graus, coisa estranhíssima para quem está habituado a associar um dia de sol a calor de rachar catedrais.

Salvo engano, pegou-se um ônibus do aeroporto mesmo para Gramado. Um ônibus muito confortável, silencioso, que nos permitia apreciar o verde da paisagem como se a janela fosse a tela de um cinema.


Quando chegamos a Gramado, senti uma enorme vontade de comer pato com laranja. Até então eu nunca tinha pedido tal prato que, ao que me consta, não é típico da região. Não sou de rompantes, não sei o que houve.


Foi nossa primeira refeição. Era pra ser chique, ou pelo menos inusitado. Para meu desencanto, não gostei nada. Achei o molho doce, um horror. Fiquei com aquela sensação de que por vezes a ideia que se tem das coisas é melhor do que as coisas de verdade.mMas férias não são assim? Para se errar e se bronzear? De uma maneira ou de outra convém se sair da rotina? Eu tentei, ora bolas. Eu tentei.


O hotel era bem jeitosinho. Escolhido a dedo pela mulher amada, que tem paciência para traçar a melhor relação entre custo e benefício entre tantas tentadoras ofertas. O quarto era aconchegante, ideal para uma segunda lua de mel.
Dava para ficarmos por ali encapsulados a estadia inteira se assim quiséssemos.

Entretanto, há sempre um espírito que me chama à aventura, é o tal do caboclo “Pernas-Pra-Que-Te-Quero” que baixa regularmente em tais ocasiões. E lá fomos nós conhecer a cidade a pé, descendo algumas ladeiras, passando em frente ao pequenino cinema onde são exibidos os filmes do Festival de Cinema de Gramado.

Fomos reparando nas pessoas, que se encapotavam a contento, como se esperassem borrascas violentíssimas. É claro que estávamos, ou julgávamos estar, bem agasalhados, com nossas camisas de manga longa por debaixo de casacos pesados.

A primeira providência foi comprar em uma lojinha umas toucas e umas luvas. Foi muito mais providencial que a malograda refeição supracitada, a do pato com laranja. Ah, o amor!


No dia seguinte fizemos uma tour pela cidade. O guia turístico era um homem de seus sessenta anos, moreno, de olhos claros, de cabelos e bigodes grisalhos, com cara de fumante que perde boa parte do salário em cassinos clandestinos.

Ele era ótimo em seu ofício. Enquanto dirigia o ônibus, ia explicando a viva voz os detalhes da cidade, seus pontos turísticos, suas belezas naturais, seus pormenores que passam despercebidos aos olhares pouco treinados. Ele falava como quem não tinha perdido o entusiasmo por aquilo tudo, não me soava enfadado por ter que mostrar as mesmíssimas coisas para pessoas com quem ele muito provavelmente nunca mais irá ver.
É bom ver pessoas que sabem fazer o seu ofício de maneira íntegra, honesta.

Nesta história, eu lhe dou o nome fictício de Silvério Pontes. Foi Silvério que recomendou um restaurante self-service muito modesto e muito limpo, para onde fomos depois do passeio. E foi neste restaurante onde bebi o mais delicioso vinho de mesa da minha vida. Não conheço muito de vinhos, é certo, mas conheço ocasiões em que a felicidade conjura. O dia claro mas ameno, a mulher amada ao alcance do corpo, a fome, a toalha xadrez – tudo isso e um pouco mais fez com que aquele vinho me causasse os rubores da felicidade.

Quase que pedi ao garçom um pedaço de papel e uma caneta para escrever um soneto em decassílabos sáficos, mas fui contido a tempo pela mulher amada, que me disse que ali não era hora nem ocasião.


Neste mesmo dia, tivemos a experiência de conhecer uma parte da cidade que não aparece nos cartões-postais. Fomos atrás de uma fábrica de chocolates em busca de um precinho mais em conta e topamos com a realidade das casas mais simples, mais humildes, sempre ainda por terminar.

Conhecemos, a mulher amada e eu, ainda que de relance, um pouco daquela gente trabalhadora que faz com que a cidade seja aquela beleza impecável para os turistas. Se Silvério Pontes fosse mesmo um viciado em jogos de azar, talvez o cassino clandestino que ele frequentava não ficasse longe dali.

À tarde, visitamos um museu de carros antigos, uma fábrica antiga de perfumes e o museu do Papai Noel. Não sei se foi lá onde vimos uma espécie de minizoológico.

No dia seguinte, depois do Café da Manhã, mais uma tour pelas Serras Gaúchas. Quase o dia inteiro, com almoço incluído – obviamente churrasco, pato com laranja é que não seria. Misturando um pouco as bolas, o roteiro foi mais ou menos assim:

1.    Manhã (de ónibus): Visita à fazenda que serviu de locação ao filme “O Quatrilho”. Compra de queijos e salames;

2.    Visita à fábrica da Miolo, com direito a falação de enólogo e tudo. Foi bacana ver os toneis de madeira e os de aço. A fábrica é muito bonita, por dentro e por fora, parecendo existir em um derradeiro dia de outono; visita à fábrica da Tramontina; digestão em uma  praça cheia de Quero-Queros e suas pernas finas; 

3.    Tarde (de trem e de ónibus): passeio pelo trem marrom, no qual eu cheguei até a dançar a Tarantela com uma senhora vestida a caráter;  parada com direito a vinho de caixa da marca Miolo, algo curiosíssimo para quem estava habituado a comprar o Miolo Cabernet tinto somente em ocasiões que demandassem impressionar a mulher amada.

Chegamos ao hotel exaustos do passeio. Entretanto, o caboclo “Pernas-Pra-Que-Te-Quero”, não arredando pé, resolveu baixar mais uma vez. Decidimos ir ao tal do restaurante que servia sopa no pão. E iria aproveitar a deixa para me servir de uma Kaiser Bock, a cerveja do inverno, que era muito requisitada no meu tempo de juventude.

O restaurante era perto, nem cinco minutos de caminhada. Acontece que, sem sabermos, já chegava uma cerração daquelas, de por nos chinelos as de Petrópolis.

Conseguimos chegar ao restaurante talvez tropeçando em paralelepípedos, em carros estacionados, talvez confundindo hidrantes com estátuas de um dos sete anões.

Deu medo. Dá medo perder de súbito o contato com a realidade mais chã, com aquilo que estava ali e, por um instante, não está mais.

Não durou muito a cerração, para o nosso bem. Deu tempo de tomar a sopa, deliciosa por sinal, e de desfrutar da Kaiser Bock, para depois voltarmos sãos e salvos ao aconchegante quarto de hotel onde o desejo, o ardente desejo nos esperava.

Ah, o amor!

No dia seguinte, antes de mais uma aventura ou de nosso retorno, tirei uma foto de um lindo gato cinza.  Ele parecia não dar a mínima para mim, mas sua beleza me cativou. Tirei a foto, a revelei e com ela gostaria de encerrar esta historieta.”

Fotos: Layla Warrak e César Cícero

Sobre o autor

Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.

Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019) e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.

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