Mais um episódio da coluna “A César o que é de Cícero” do doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista. Desta vez, Cícero César fala das mutações da vida de um professor, manifestações por melhores salários, manias, sonhos e um inseparável fusca azul.
Por Cícero César
Greve Geral
Meio a contragosto, o professor Alfredo foi à manifestação dos professores. Saiu da Assembleia e seguiu em marcha com seus pares até a sede da prefeitura, pensando com seus botões sobre como as coisas tinham mudado desde a sua última participação em eventos desta natureza.
Esperava ouvir os cantos de guerra de costume, extraídos dos campos de futebol que já não frequentava nem em anedotas, talvez até um pouco de Geraldo Vandré, se fosse um dia bom; mas chegou à conclusão de que o hit da hora era mesmo uma paródia de uma canção de cantora pop que tinha saído do funk para o estrelato efêmero de cantora das multidões.
Aquilo o entristeceu.
É certo que o professor Alfredo era “Caxias” que nem ele. Orgulhava-se de sua moderação, de saber pesar bem pesadinho os prós e os contras dos argumentos, para só então extrair deles uma síntese.
Entretanto, de seu juízo interno fazia parte também seu bolso, e isto certamente fez a balança pender para o lado de uma ação coletiva como lhe parecia ser o caso de uma greve.
Nunca gostou de faltar, de deixar seus alunos sem aula, de deixar a escola vazia, de entregar seus imaculados diários no prazo ou antes. A escola era sua cachaça, seu pão com margarina, seu café, sua prisão.
Se lhe perguntassem de súbito o que fazia naquela greve, ele muito provavelmente preferiria raspar o bigode a responder. Não estava tão a par dos acontecimentos assim. Só queria melhores condições de trabalho e direito a uma aposentadoria digna. Quem sabe, viajar para Muriaé, de carro.
Suponha-se que o professor Alfredo, antes da manifestação, tenha percorrido, em caravana com outros colegas, as escolas de sua região, a fim de conscientizar o maior número possível de colegas da gravidade da situação e da grandeza daquele momento histórico do qual os professores seriam protagonistas.
Talvez não tenha sido bem assim, porque aqueles que conhecem o professor Alfredo sabem que ele preferiria falar sobre os seus esforços para manter o fusquinha azul em tão formidáveis condições. Este era o seu assunto predileto, além da escola, é quase líquido e certo.
Além disso, por mais que se esforçasse, o professor Alfredo não tinha conseguido se enturmar com a patota que liderava a caravana.
A cada escola que visitava, ia ficando mais hesitante em dizer-lhes o que sentia no íntimo, isto é, se assim se pode dizer, o seu desejo de discutir antes, como questão de ordem, as linhas de ação de maneira mais aprofundada.
“É preciso lucidez, é preciso lucidez”, repetia para si mesmo, porque tinha receio de ser incompreendido. “Ah, se minha escola fosse assim”, dizia para dentro enquanto seus olhos testemunhavam um grupo de professores de uma escola que ouviam entre uma garfada e outra, com certo ar de desinteresse (seria verdade?), os silogismos dos líderes do movimento.
Por aqueles dias, o professor Alfredo se recolheu ao escritório mais cedo do que de hábito. Ao que parece, tinha lhe vindo uma ideia para um soneto, que ele, após longa ponderação, escreveria em versos heroicos.
Aguardou durante algum tempo uma ideia, mínima que fosse, com a qual levaria a cabo o sonetinho. O professor Alfredo, que não negociava décimos com os alunos, tentava em vão organizar as linhas em décimas em rimas ricas.
Se tudo tivesse ocorrido bem, o soneto lhe viria tão fluente quanto água quando se deita no copo, como outros que lhe vieram, talvez em condições menos urgentes e, por isso, mais propícias.
Mas nada lhe veio, por fim. Recolheu-se a seus aposentos o professor Alfredo e, dizem, que sonhou com o Belchior, sem bigodes, lhe cantando “Mucuripe” em um palco quase vazio e mal iluminado.
No sonho, o professor Alfredo se via ainda jovem, uma vez que seu bigode lhe aparecia sem um fio branco sequer. No sonho, a voz anasalada de Belchior dava vez a um alarme, a um apito de fábrica, a uma valsa ao contrário, a um ruído cada vez mais estridente como batidas de panelas, o que, por certo, se isso mesmo ocorreu, porque ninguém pode confirmar um vestígio, deve ter feito com que ele se remexesse na cama, mas não ao ponto de acordar a esposa.
Entre outras imagens, apareceu o verso da sua carteira de identidade, com uns números praticamente inelegíveis, desfocados, que Alfredo tentava decifrar para ver se batiam com seu verdadeiro número de registro, que ele sabia de cabeça, sem conseguir, até se dar por vencido.
No dia D, aquele dia em que jovens vestidos de preto iriam para as ruas para se manifestarem contra tudo que lá estava, Alfredo Moreira, acordou cedo e ligou o rádio.
Ainda de pijamas, foi até o quartinho que lhe servia de oficina. Iria chover, o tempo estava feio, e ele tinha que encontrar a maldita capa de cor cinza que tinha comprado justamente para dias assim, no intuito de proteger da chuva o fusquinha azul.
Depois de forrar o fusquinha, trocou-se. Fez o desjejum, deu um longo suspiro, passou a mão no bigode grisalho como se para confirmar que ele estava no rosto, e foi.
Sobre o autor
Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.
Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019) e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.