Vila Isabel é como andar de bicicleta, a gente nunca esquece

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E a coluna “A César o que é de Cícero”, do doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista, mexeu com um trauma deste editor que vos tecla. Trauma, por não ter feito ainda: andar de bicicleta. Sim, confesso, não ando de bicicleta, de triciclo, sim, com meu cãopanheiro Açaí, mas sobre duas rodas minhas parcas coorrdenações motorasv e coragem ainda não permitiram. Recuso a história de que não sei andar de bicicleta, pois nunca tentei, logo não sei se sei. Mas sou jovem, quem sabe lá pelos 70 passo a me equilibrar sobre duas rodas. Ah, e eu moro em Paquetá, uma ilha na qual só tem carro de serviço público, táxi de carrinho elétrico e o que chamamos de ecotáxi, um grande triciclo que acomoda três pessoas, incluindo o condutor, no mais muita bicicleta.

Mas não é pelo meu trauma que estamos aqui, mas sim pelo nosso cronista que conta as suas peripécias infantis sobre duas rodas na Vila Isabel do Noel. Pois, quem é da Vila nem se quer vacila e não quer abafar ninguém, mas que inveja boa do Cícero César em ter vivido sua infância na Vila Isabel e sobre duas rodas! (Washington Araújo).




“Ao ver a foto de Chico Buarque sobre uma bicicleta a ilustrar a capa de “Bambino a Roma”, lembrei-me de que também já tive dez anos, de que sabia andar de bicicleta.


Aprendi a andar de bicicleta em Vila Isabel, de dez para onze anos, numa tal de Tigrão verde, mais surrada que tênis Kichute em final do ano letivo. Achei-a na garagem do prédio onde eu morava na rua Barão de Cotegipe, pertinho da Praça Sete. Eu não sei se ela pertencia ao porteiro José, o que morava num cubículo sem ventilação no escuro da garagem, com aquela mistura de cheiro de creolina e veneno para baratas. Só sei que a peguei às escondidas, tomei gosto, levei tombos, aprendi a andar com aquela bicicleta que tinha um pneu grande atrás e um menor na frente, não me importando com sua feiúra verde ou com seu freio contrapedal.


Quando eu tinha uns doze anos, meu pai meu deu uma BMX de freio a tambor comprada na Mesbla. Era um barato a bicicleta com seu banco comprido, sua carenagem e sua imitação de tanque de gasolina. Já era um modelo antigo, ultrapassado, mas era ela que eu queria porque o Paulo César tinha uma dessas.

À época a moda era a CaloiCross devido ao filme “E.T.”. Era imbatível publicidade aquele efeito especial que virou um emblema do filme: as crianças pedalando pelos ares com a lua ao fundo. Assim, as Berlinetas, tão bonitinhas, as Caloi 10 tão elegantes, ficaram para trás nos sonhos da criançada.

Pedalando na memória, lembro-me também de uma crônica de Aldir Blanc chamada “A árvore da vida”, na qual o autor nos conta como aprendeu a andar de bicicleta na Praça Niterói, em Vila Isabel, quase Maracanã. “Vai manso”, é o que diz o pai, homem asmático de poucas palavras, enquanto o menino Aldir acelera para dar com os cornos em uma frondosa árvore da praça. Para o Aldir Blanc, aquela porrada inesquecível dos tempos de criança vinha sempre à tona em noite de estreia, de autógrafos e afins. Exemplo de trauma e traumatismo é isso aí.


Digo ou não digo que com a Tigrão eu fui parar debaixo de um Fusca, numa manobra que por pouco, por muito pouco, não me fez desencarnar? Valei-me, Deus. Imagino de leve a cena: minha mãe rezando por minha alma às 18h de todo santo dia de 1982 até hoje. Ela não merecia. Mãe, sobrevivi. Nem me arranhei, mãe, nem precisa ligar para o meu pai. Eu estou aqui na Terra.


Digo ou não digo que o acima referido Paulo César era cleptomaníaco, que roubou na maior cara de pau os pneus da bicicleta do Luiz Paulo, conhecido da gente? Tudo bem planejado, provando uma vez por todas que imaginação não é só para quem vive com a cabeça na lua.


Digo ou não digo que o mesmo Paulo César roubou as carenagens da minha BMX, depois sumiu no mundo? Depois, bem mais velho, de novo na área, roubou uma caixa de ferramentas que estava no porta-malas do carro de um amigo em comum. Até que um dia o Paulo César foi assassinado e eu só fui saber depois.


Não foi em Vila Isabel que eu tive os lábios mordidos pela primeira vez, esmagados como gomos de tangerina. Foi antes, durante e depois de Vila Isabel. Mas foi lá onde surgiram meus primeiros grandes amores. Destaco a Carla com C, com suas sardas. A Claudia, alta e bem mais velha que eu, que nunca me deu bola. E a Raquel, que usava shorts curtos, curtíssimos, escandalosos. Talvez seja uma das primeiras moças a usar cabelos tão curtos quanto shorts em uma combinação das mais felizes: curtos e ruivos.

Certa vez, meu irmão corajosamente mexeu com ela e deu pra ver que ela não gostava de fedelho (pelo menos, à época). Ela foi bater lá em casa para reclamar com a minha mãe da ousadia de meu irmão. Eu paguei de bom moço.


Não é que eu queira voltar para Vila Isabel. Eu não queria era ter saído. A última vez que dormi no apartamento da Vila, no meu quarto, já com as camas desmontadas, alguém doutro mundo me despertou com cutucões nas costas. Eu olhei de relance, apavorado, só me lembro do vermelho de uma capa ou coisa assim.


Eu não bebia naquela época. Se foi alucinação, não foi devido à nenhuma bebida, vos garanto. Fiquei um pouco com medo quando num centro espírita, anos mais tarde, me disseram que eu tinha um romano como uma espécie de anjo da guarda, de leão de chácara (chakra?) da minha alma.


Voltar para Vila Isabel não sei se volto. Agora, se me soltarem pela região que a gente chama de Grande Tijuca, modestamente, me viro facilmente. Sou o meu próprio GPS do Engenho Novo até o Maracanã.
Eu não sei, não. Já passei pela rua onde morei em Vila Isabel de carro, a pé, já rodeei o apartamento onde vivi dias imensos. Achei tudo pequeno. A rua, pequena. A calçada onde eu jogava bola, estreita.


Fazer lá o quê? O porteiro José, aquele que poderia muito bem ter me chamado de filho da puta por ter-lhe levado a bicicleta morreu faz tempo, louco, miserável, fumador de maconha, segundo as línguas ferinas do povo que não perdoam a ninguém. José era um nordestino que nunca deveria ter deixado sua terra natal em busca das ilusões do Sul maravilha, mas veio e se estrepou, caindo do cavalo ou da bike. Eu deveria ter lhe devolvido a Tigrão. Têm coisas que a gente não aprende nunca. Têm coisas (de) que a gente não se esquece jamais.”

Sobre o autor

Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.

Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019), Circo (de Bolso) Gilci e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.

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