Por Liana Melo, compartilhado de Projeto Colabora –
Cartilha ajuda a combater aumento no número de agressões contra mulheres indígenas durante pandemia de covid-19
Em São Gabriel da Cachoeira, o município mais indígena do país, no noroeste do Amazonas, quando uma mulher da etnia Baré grita “rewajudai”, os parentes já sabem. Ela está pedindo ajuda. Em nheengatu, uma das quatro línguas oficiais da cidade, ao lado do português, quer dizer, literalmente, “ajude-me” – as duas outras línguas co-oficiais são tukano e baniwa. Com o início do “resguardo”, como alguns dos 23 povos indígenas da cidade se referem ao isolamento social, a violência contra mulheres indígenas na região do Alto Rio Negro aumentou durante a pandemia. Uma das causas é o abuso de álcool. A bebida chegou a ser proibida na cidade, durante o período de lockdown, mas já está novamente liberado.
A Covid-19, que vem matando dois indígenas a cada dois dias, escancarou outra realidade local: a invisibilidade estatística da violência doméstica contra a mulher indígena. À frente da Delegacia Especializada em crimes de violência contra criança, adolescente, mulheres e idosos de São Gabriel da Cachoeira, Grace Jardim conseguiu incorporar a informação étnica nos boletins de ocorrência (BOs). A mudança começa a valer este mês (agosto). A cidade não tem defensoria pública e, só após a indicação de Grace como titular, a delegacia passou a contar uma equipe de mulheres para ouvir as vítimas: duas delas são escrivãs e a outra estagiária. As três são da etnia Baré.
“Oficialmente, as denúncias diminuíram, mas a violência aumentou”, admite a delegada, referindo-se as violências contra a mulher que são praticadas na cidade ou na floresta, onde mora parte dos 23 povos indígenas da região. Segundo o último Censo do IBGE, 73,31% da população é indígena. Localizada na fronteira com a Colômbia e a Venezuela, a delegada costuma ouvir das vítimas que “o companheiro é ótimo pai e marido”, mas parte para a violência quando bebe. Em muitos casos, o agressor bebe todos os dias. “Durante a pandemia, atendi uma senhora, de pouco mais de 70 anos, que denunciou o marido porque ele foi morar com uma moça mais nova”.
Ainda que o ciclo da violência da qual muitas mulheres são vítimas seja anterior a pandemia, a covid-19 imprimiu um sentido de urgência ao cotidiano das vítimas em São Gabriel da Cachoeira. No começo de agosto, foi lançada a cartilha “Violência Doméstica e Violência Sexual em tempos de pandemia – Redes de apoio e denúncias: Você não está sozinha!”. O projeto é fruto de uma parceria institucional entre a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), o Observatório da Violência de Gênero no Amazonas, vinculado a Universidade Federal do Amazonas (Ufam), e a Faculdade de Saúde Púbica da Universidade de São Paulo (USP). A participação das mulheres indígenas em rodas de conversa foi fundamental na construção da publicação. A cartilha incluí ainda orientação sobre violência contra crianças e adolescentes. Reforçar o acesso à informação é um dos principais aliados para combater a violência contra a mulher.
Por falta de verba, a cartilha não será traduzida para outras línguas. A população local está acostumada a ouvir as notícias por rádio com tradução para as diferentes línguas da região. Com um total de dois mil exemplares, a publicação está sendo distribuída na cidade e também será encaminhada às comunidades indígenas. “É uma logística complexa, porque algumas aldeias ficam bem longe”, explica José Miguel Oliver, professor da Faculdade de Saúde Pública da USP.
Elementos da cultura local, como benzimentos e chás, continuam sendo usados para apaziguar situações de conflito e constam da cartilha. Nada que impeça o uso do instrumento mais tradicional de combate à violência doméstica contra a mulher no mundo todo, que é a denúncia. “Passamos a ver muitas agressões físicas”, relata a delegada, acrescentando que, antes da pandemia, a mulher quando era ameaçada, fugia para a casa de um parente, de um vizinho. Mas durante a pandemia isso não foi mais possível”.
O fenômeno da subnotificação, que, em São Gabriel da Cachoeira, é chamada de “cifra negra”, já virou uma das principais características do contexto da violência doméstica contra as mulheres em tempos de pandemia no país. É fato que não é nada fácil descortinar as agressões contra as indígenas. O maior dos problemas é mesmo convencê-las de que apanhar não é um traço cultural dessa ou daquela etnia. “Agredir e estuprar não é um traço cultural”, defende, em alto e bom som, Elizângela da Silva, mulher Baré e coordenadora do Departamento de Mulheres Indígenas da Foirn.
O protagonismo das mulheres indígenas do Alto Rio Negro vem ajudando a tirar da invisibilidade a violência de gênero na região. No começo do ano foi lançado o Projeto Mulheres Indígenas, Gênero e Violência no Rio Negro feito a muitas mãos: Foirn, Observatório da Violência de Gênero no Amazonas, Instituto Socioambiental (ISA) e a USP. O levantamento mapeou uma década de violência de gênero contra mulheres indígenas fazendo com que São Gabriel da Cachoeira fosse a primeira cidade do estado do Amazonas com estatísticas sobre o tema. Computando os dados manualmente, chegou ao número de 4.681 casos, no período de 1º de janeiro de 2010 a 31 de dezembro de 2019. Ou seja, 1,28 casos por dia.
Coagidas pelos agressores e dependentes financeiramente, as vítimas costumam não ir adiante com a denúncia. Num único final de semana, por exemplo, Grace atendeu três mulheres vítimas de violência. Todas grávidas. No começo da semana, tentaram retirar a queixa. “Não aceitei porque elas estavam grávidas”, lembra a delegada.