Em 12 de abril o “caso Verônica Bolina” completou um ano. Caso de tortura perpetrada por policiais contra travesti que se encontrava detida no 2º DP, em São Paulo. A razão alegada para o ato foi o fato de a acusada ter mordido a orelha de carcereiro, justificativa esta usada como argumento para minimizar a brutalidade da tortura.
O caso ficou conhecido após fotos da vítima terem sido divulgadas em redes sociais. Seu rosto extremamente inchado, os olhos roxos e os hematomas visíveis no corpo escancaravam os impactos da violência sofrida. Uma das fotos mostra Verônica seminua, deitada de bruços, algemada nas mãos e nos pés, sem a camiseta e com a calça rasgada na parte traseira. Tais imagens, que expuseram seu corpo e sua identidade de gênero, geraram grande repercussão nacional e internacional. O Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (CNPCT) tomou conhecimento do caso e passou a acompanha-lo[1].
Verônica Bolina foi submetida à tortura, com emprego de violência e ameaça pela ação e omissão de funcionários do Estado, como forma de causar-lhe sofrimento, castigo e intimidá-la. Verônica foi colocada junto a outros presos, não houve um cuidado por parte das autoridades em conduzir a situação respeitando a sua identidade gênero, sendo ela travesti. Os policiais justificaram sua ação dizendo que “a culpa do ocorrido era de Verônica, pois ela teria arrancado a orelha do carcereiro”, e que “isso teria saído barato”. Como em qualquer caso de tortura, a vítima é sempre colocada como a autora da própria violência sofrida.
Praticamente coagida a falar sobre os fatos, diversos áudios foram gravados pela coordenadora de Políticas para a Diversidade Sexual do Estado de São Paulo, na tentativa de isentar o estado de São Paulo da responsabilização pela violência sofrida. Nestas gravações Verônica falou que “não havia sido torturada”, e que “não queria que seu caso fosse usado para fins políticos”[2]. Uma voz ao fundo guiava Vêronica nas palavras que estavam sendo registradas – a própria gravação do áudio tinha em si um fim político.
A Defensoria Pública solicitou apuração do caso no âmbito da Corregedoria da Polícia Judiciária do Departamento Técnico de Inquéritos Policiais e Polícia Judiciária (DIPO), e pediu urgência na realização do exame de corpo de delito. Também destacou o fato de Verônica não ter passado por audiência de custódia, que já estava em vigor na época. Após cinco dias o exame fora realizado. Contudo, como é de praxe, não seguiu os protocolos de Istambul e nem o Brasileiro de Perícia Forense no Crime de Tortura, resultando em laudo não detalhado para constatar tortura, muito embora evidencie as lesões no corpo de Verônica.
No presente artigo, além de relembrarmos a tortura e a morosidade do sistema de justiça na apuração e responsabilização dos agentes, chamamos a atenção, em especial para a violência de gênero e as constantes violações às quais são submetidas travestis e transexuais no sistema carcerário brasileiro.
Violência de gênero
O caso de Verônica não é um problema isolado, mas é paradigmático do sofrimento de outras inúmeras travestis e transexuais privadas de liberdade em prisões masculinas em todo o Brasil. As travestis e transgêneras trazem em si a sobreposição de diversos estigmas relacionados a questões de gênero, originadas da percepção dos diferentes lugares sociais ocupados pelas pessoas como consequência de sua identificação masculina ou feminina, o que por muito tempo se acreditou ser condicionado a características biológicas. As teorias de gênero vêm problematizando estas naturalizações e desenvolvendo conceitos dissociados de sexo, gênero, orientação sexual e identidade de gênero.
Porém, o debate acadêmico e militante sobre tais temas parece ainda não ter permeado o senso comum o suficiente para desconstruir imaginários carregados de conotações morais e religiosas, produtoras de julgamentos frequentemente preconceituosos, que muitas vezes confundem identidade de gênero com orientação sexual, e, não raro, associando à prática de crimes sexuais. Desta forma, o ato de apresentar-se como mulher transexual agrega em uma só pessoa todos os estereótipos pejorativos de mulher e de homem “feminilizado”, seja em razão da orientação sexual ou da identidade de gênero. Se a construção do “ser mulher” para quem nasce com a anatomia identificada como “adequada” ao feminino já é carregada de preconceito e discriminação, quem nasce com o corpo dito masculino e, no imaginário coletivo, “opta” deliberadamente por exercer uma identidade de gênero feminina, será alvo de violências simbólicas e físicas, ainda mais intensificadas quando se trata de pessoa negra, como no caso em questão.
Nesse cenário, o caso de travestis e transexuais em situação de prisão chama a atenção. A privação de liberdade vem acompanhada da privação de inúmeros outros direitos. A perda de autonomia e da integridade física nesses espaços são constantemente narradas por aqueles que por lá passam. Se a prisão já é denunciada como instituição que pouco atenta às peculiaridades dos sujeitos, a situação daqueles que são ainda mais marginalizados socialmente por quebrarem com os paradigmas de sexo/gênero pode ser ainda mais grave. Segregadas num subgueto, as travestis e as transexuais estão, em geral, submetidas à mesma invisibilidade e abusos que outrora enfrentavam no convívio social. O estigma, o preconceito e o repúdio parecem acompanhá-las durante a vida, o que não poderia ser diferente na prisão. As práticas discriminatórias são generalizadas, advindas tanto da administração, dos servidores, como do convívio com os demais presos. Conforme afirmou o Relator Especial da ONU“minorias sexuais são geralmente consideradas como uma sub-categoria da população prisional e muitas vezes mantidas em condições de detenção mais degradantes que a população presa de maneira geral.”[3]
A prisão funciona em uma lógica binária de sexo/gênero. Embora a realidade das manifestações sociais e culturais do masculino e do feminino cada vez mais se mostrem na forma de espectro, a lógica institucional enxerga os gêneros de forma binária, a excluir todos os indivíduos situados fora dos modelos pensados nas relações tradicionais de oposição mulher/homem, produtoras de tantas desigualdades. Nessa lógica não há espaço para o que não se encaixa no padrão, o que acaba por acarretar inúmeras violações à população de transexuais e travestis privadas de liberdade. Apesar de alguns estados apresentarem políticas específicas, como a criação de alas e pavilhões para abrigar a população LGBTT[4], planos[5] e resoluções[6] estabelecendo parâmetros para o tratamento dessa população, é necessário destacar a necessidade de observar os reais anseios dos sujeitos da política. Isso porque devido à incompreensão e ao desconhecimento do tema por parte de parcela expressiva do Poder Público e dos servidores do sistema carcerário, tais ações podem ser extremamente opressoras, normatizando condutas e agrupando o público alvo da política de maneira estereotipada em uma categoria LGBTT que confunde identidade, sexualidade, sexo e gênero e cria um terceiro espaço, que vem a compor a tríade prisão feminina/masculina/ espaço LGBTT. Ademais, tais políticas são infrutíferas se desacompanhadas de reformulações no treinamento dos agentes penitenciários e demais agentes públicos.
Por isso é tão importante trazer à tona a gravidade do caso Verônica, pois esta representa a condição de inúmeras travestis e transexuais vitimadas pelo sistema penitenciário que precisam ser retiradas do anonimato, de modo a prevenir ou, ao menos, minimizar a incidência da maior penalização que lhes recai (para além do mal da pena, o mal do machismo e do preconceito) e, desta forma, propiciar condições mais adequadas para sua inserção no meio social.
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O escancarado episódio de tortura, composto pela violência física e em razão de gênero, não foi devidamente apurado e os personagens envolvidos não foram responsabilizados. Há um ano Verônica foi brutalmente violentada. Há um ano segue sendo violentada por um sistema de justiça moroso, nada comprometido com a prevenção e combate à tortura. Mês passado morreu Luana em Ribeirão Preto, barbaramente espancada por policiais. Negra e lésbica, Luana apanhou por ser quem era. Verônica também apanhou por ser quem era. A violência que sofreram expressa algo que está em seus corpos e muito além deles. Está nas estruturas das instituições do sistema de justiça criminal brasileiro, que seguirão assim, enquanto não forem responsabilizadas.
Maria Gorete Marques de Jesus é Socióloga Mestre e Doutoranda em Sociologia pela USP. Especialista em Direitos Humanos. Pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da USP (NEV/USP). Pesquisadora do Núcleo de Pesquisa do IBCCRIM. Maíra Zapater é graduada em Direito pela PUC-SP e Ciências Sociais pela FFLCH-USP. É especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Escola Superior do Ministério Público de São Paulo e doutoranda em Direitos Humanos pela FADUSP. Professora e pesquisadora, é autora do blog deunatv. Natália Macedo Sanzovo é Mestranda em Direito Penal pela Universidade de São Paulo (USP), Advogada e Coordenadora adjunta do Grupo de Estudos Avançados de Escolas Penais e do 14º Laboratório de Ciências Criminais de São Paulo do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM). Bruna Angotti é doutoranda e mestre em Antropologia Social pela Universidade de São Paulomembro suplente do Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (CNPCT). Coordenadora do Núcleo de Pesquisa do IBCCRIM.[1] O CNPCT tem como uma de suas prerrogativas a de “acompanhar a tramitação dos procedimentos de apuração administrativa e judicial, com vistas ao seu cumprimento e celeridade” (Artigo 6º, inciso III, Lei 12.847/2013). As informações do contidas neste artigo advém do acompanhamento pelo CNPCT do caso em juízo. Assim que começou a acompanhar o caso, convidou a advogada e professora Universitária Eloísa Machado de Almeida, reconhecida especialista em direitos humanos e prevenção e combate à tortura, para elaborar um parecer.
[2] Os áudios estão disponíveis no site: http://www.revistaforum.com.br/2015/04/15/audios-levantam-novas-suspeitas-sobre-caso-veronica-bolina/.
[3] Discurso proferido no segundo Simpósio Jean Jacques Gautier para MNPs, organizado pela APT em Genebra nos dias 3 e 4 de junho de 2015 e teve como objetivo desenvolver um melhor entendimento sobre as situações de risco e de vulnerabilidade enfrentadas pelas pessoas LGBT privadas de liberdade e contribuir para que os MNP (Mecanismos Nacionais de Prevenção) traçem estratégias e metodologias de trabalho para abordar referidas violações. Disponível em http://www.apt.ch/es/news_on_prevention/brasil-mlp-de-pernambuco-aborda-riesgos-enfrentados-por-personas-lgbt/?l=pt#.Vx-6iWNzthB.
[4] Por exemplo a “ala gay”, criada em 2009, no presídio de São Joaquim de Bicas II, em Minas Gerais; o pavilhão específico no presídio de Vespasiano,criado em 2013, e as experiências dos Estados do Rio Grande do Sul, da Paraíba e do Mato Grosso, os quais também instituíram a separação da população LGBT em alas específicas.
[5] SÃO PAULO. Decreto nº 55.839, de 18 de maio de 2010. Disponível em .
[6] CONSELHO NACIONAL DE COMBATE A DISCRIMINAÇÃO (Brasil). Resolução conjunta Nº 1, de 15 de abril de 2014. Diário Oficial da União, Brasília, 17 de abril de 2014, Seção 1, p. 1-2. Ver também (Resolução SAP 11, de 30.01.2014) e do Rio de Janeiro (Resolução SEAP 558, de 29.05.2015), as quais têm por escopo instruir os servidores a garantir os direitos das transexuais e travestis, bem como estabelecer espaços exclusivos nas unidades prisionais para essas pessoas.