Por Grace C. Roberts* The Conversation, compartilhado de Projeto Colabora –
Pesquisadora alerta que, apesar de algumas doenças frequentes tornarem-se mais brandas com tempo, não se sabe os efeitos do novo SARS-CoV-2 a longo prazo
Vírus endêmicos são aqueles que têm presença constante em uma área geográfica. Esses vírus estão ao nosso redor, embora variem conforme a localização. Exemplos na Europa e América do Norte incluem o rinovírus (uma causa do resfriado comum) e o vírus da influenza, enquanto os vírus da dengue e chikungunya são endêmicos países asiáticos e sul-americanos (como o Brasil – nota do tradutor)
As doenças endêmicas costumam ser mais leves, mas é importante observar que nem sempre é esse o caso. Estima-se que a gripe, por exemplo, cause até 810 mil hospitalizações e 61 mil mortes anualmente nos Estados Unidos.
Existem atualmente quatro coronavírus endêmicos que, para a maioria das pessoas, apenas causam um resfriado. Se o SARS-CoV-2, o vírus que causa a covid-19, vai se juntar a eles, isso dependerá de dois fatores predominantes que controlam como um vírus se comporta em uma população: a biologia do vírus e a imunidade da população hospedeira.
Apesar de saber muito sobre a biologia dos vírus endêmicos hoje em dia, é muito difícil descobrir de onde eles realmente vieram. Eles sempre causaram essas doenças persistentes mais brandas ou evoluíram de precursores mais graves?
Os vírus se replicam muito rapidamente – depois de entrar na célula hospedeira, muitos produzem novas partículas de vírus em poucas horas. Devido à velocidade desse processo, muitas vezes são cometidos erros na cópia de seu material genético, resultando em mutações.
Muitas dessas mutações resultarão em vírus inviáveis, incapazes de infectar ou replicar. Mas um pequeno número dessas mutações pode resultar em mudanças que podem permitir ao vírus entrar nas células do hospedeiro mais rapidamente ou saltar para um novo hospedeiro diferente.
É importante lembrar que essas mutações são eventos casuais. Os vírus não podem decidir ativamente por sofrer mutação ou tomar decisões conscientes sobre onde ocorrem as mutações.
Uma vez que surge uma mutação vantajosa para sua disseminação, os vírus com esta variante podem competir rapidamente com outras versões do vírus para se tornar a forma dominante na população. Isso é o que achamos que estamos vendo atualmente com a variante do Reino Unido, que a modelagem de computador sugere ter uma maior capacidade de se ligar a células hospedeiras.
Podemos rastrear mutações em surtos atuais, já que cientistas de todo o mundo estão regularmente registrando e analisando o material genético de populações de vírus usando um processo chamado sequenciamento genômico.
No entanto, olhar para trás para determinar como os vírus endêmicos de hoje mudaram para assumir sua forma genética atual é quase impossível, pois requer a análise dos genomas dos vírus que não estão mais em circulação. Alguns vírus históricos foram sequenciados no passado, mas é raro encontrar amostras bem preservadas o suficiente para fazer isso – e, além disso, isso nos dá mais um instantâneo do vírus em um momento específico, em vez de uma retrospectiva detalhada.
Como alternativa , podemos olhar para o material genético de vírus conhecidos agora e compará-los entre si para tentar retroceder para ver de onde surgiram certas mutações e cepas. Por exemplo, a semelhança entre o coronavírus endêmico HCoV-043 e seu equivalente bovino, o BCoV, implica que o vírus humano saltou do gado. Juntamente com os registros históricos, isso levou alguns cientistas a propor que o agora endêmico HCoV-043 foi a causa de uma pandemia no final do século XIX.
Nosso corpo contra-ataca
Não há evidência direta de que os patógenos sofram mutação para perder virulência ao longo do tempo, e não há um roteiro definido de mutações que permitam que um vírus se torne endêmico. No entanto, sabemos que o SARS-CoV-2 – o coronavírus causador da covid-19 – está em mutação. É plausível, mas não certo, que ele possa adquirir mutações que o ajudem a sobreviver em populações humanas a longo prazo.
Isso é especialmente verdadeiro agora que nossos sistemas imunológicos estão se tornando mais bem treinados contra a SARS-CoV-2 devido à exposição ao vírus e à vacinação. Nosso sistema imunológico evoluiu por milênios para evitar infecções com eficácia e agora estão em uma corrida armamentista evolutiva com o SARS-CoV-2. Em particular, nosso sistema imunológico “adaptativo” evolui cada vez que encontramos novos germes (ou temos uma vacina) para produzir anticorpos específicos e eficazes.
Pandemias e surtos esporádicos ocorrem com mais frequência em populações onde as pessoas não têm defesas contra uma nova doença, muitas vezes resultando em doença grave e rápida disseminação. Mas, na maioria das doenças endêmicas, como os germes que as causam circulam regularmente, a população como um todo tende a ter alguma imunidade. Isso pode evitar que os sintomas sejam amenizados ou resultar em doenças mais brandas, pois o sistema imunológico limita os danos causados por um vírus.
No caso da covid-19, parece que as crianças têm doenças mais brandas, enquanto as doenças mais graves tendem a aparecer em pessoas com mais de 60 anos. Diante disso, se muitas pessoas desenvolverem imunidade ainda no início da vida (seja por infecção ou vacinação), com o tempo, isso pode favorecer a transformação do SARS-CoV-2 no causador de uma doença leve, considerando que os jovens vão manter algum nível de imunidade ao longo da vida.
Como outros pesquisadores já apontaram, usando a modelagem de dados imunológicos para os quatro coronavírus endêmicos existentes, pode ser possível que cheguemos a um ponto em que todos sejam expostos ao vírus pela primeira vez na infância, resultando em infecções da covid-19 mais tarde na vida tornando-se não piores do que a gripe comum. Mas é importante notar que isso ainda é muito hipotético.
Também é muito importante enfatizar que infectar pessoas deliberadamente (ou encorajar infecções ativamente) seria imprudente – não devemos defender que os jovens contraiam o vírus. Não sabemos os efeitos de longo prazo do covid-19, ou quanto tempo dura a imunidade ao SARS-CoV-2 (por infecção ou vacinação). Também não há garantia de que a doença se tornaria menos grave se se tornasse endêmica.
Além disso, por que visar um vírus endêmico quando não poderíamos objetivar nenhum vírus, usando estratégias de vacinação generalizadas? A maneira mais ética, prática e segura de reduzir a ameaça do SARS-CoV-2 é vacinar o máximo possível da população – incluindo crianças.
*Grace C. Roberts é pesquisadora em Virologia na Queen’s University Belfast (Irlanda do Norte, Reino Unido)
Tradução: Oscar Valporto