“Visitar museus da ditadura não é suficiente para entender as violações dos direitos humanos”

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Por Marcelo Hailer e Vinicius Gomes, publicado na Revista Fórum  – 

Em passagem pelo Brasil, o ativista Doudou Diène, especialista no resgate da memória de países que passaram por guerras civis e ditaduras, afirma que a maior arma daqueles que estiveram envolvidos em crimes contra a humanidade é o “silêncio”

Entre os dias 2 e 5 de novembro ocorreu, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), o seminário “Memória: Alicerce da Justiça de Transição e dos Direitos Humanos”, realizado em parceria pelo Ministério da Justiça (Comissão de Anistia) e Coalizão Internacional de Sítios de Consciência, ligada à Unesco. Entre os palestrantes, estava o senegalês Doudou Diène, presidente da última entidade.

Para quem não conhece, Diène possui vasta biografia na luta em torno das questões de Direitos Humanos ao redor do mundo, principalmente no que diz respeito a países que são ex-colônias e que sofreram intervenções militares em determinado momento de sua história. Ele é ex-relator especial das Nações Unidas sobre formas contemporâneas de racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerâncias. Entre 1972 e 1977, atuou como vice-presidente do Senegal junto à Unesco. Em 1977, entrou para a o secretariado da entidade, onde ocupou diversos cargos, incluindo o de diretor da Divisão de Projetos Interculturais.

Foi nomeado relator Especial para tópicos relacionados com o racismo da Comissão das Nações Unidas sobre Direitos Humanos em agosto em 2002, substituindo Maurice Glele-Ahanhanzo (Benin) e servindo até julho de 2008, quando foi sucedido por Githu Muigai (Quênia). Em 2011, foi nomeado perito independente sobre a situação dos direitos humanos na Costa do Marfim. Em 2006, Diène esteve no Brasil para a divulgação doRelatório Especial sobre formas contemporânea de violência, racismo e xenofobia. À época, visitou várias regiões do Brasil e chegou até mesmo a se encontrar com ex-governador de Pernambuco, Eduardo Campos (1965-2014).




Nascido em 1941, no Senegal, é formado em Direito pela Universidade de Caen (França), doutorado em Direito Público pela Universidade de Paris, além de possuir diploma em Ciência Política pelo Institut d’Études Politiques de Paris e um título honorário de Doutor em Direito pela Universidade das Índias Ocidentais (Cave Hill, Barbados).

De estatura média, calmo e muito bem humorado, Diène se encontrou com a reportagem da Fórum em uma quarta-feira fria na região dos Jardins, zona oeste paulistana. Na ausência de chá quente, predileção do entrevistado, o bate-papo seguiu acompanhado de guaraná e água. Diène então explicou no que consiste o seu trabalho atual.

“Mais fundamentalmente, o centro da atividade da Coalizão é criar uma rede entre todos os sítios de memória de assassinato em massa, genocídio, violação dos direitos humanos, conectando-as de tal maneira que se crie uma dimensão de universalidade. Compartilhando as experiências de todos os sítios, do Senegal ao Chile, do Brasil à Guatemala e Rússia, e assim promovendo o trabalho criativo no que diz respeito à memória”, explica.

Assim como no Brasil, onde setores da sociedade atuam contra o trabalho da Comissão da Verdade, Doudou Diène relatou que em todo o mundo esse tipo de situação acontece, pois, aqueles que estiveram envolvidos em práticas genocidas ou de tortura não querem que a verdade venha à tona. “O objetivo fundamental dos sítios de consciência não é apenas identificar os lugares onde as pessoas foram torturadas, por exemplo, mas também trabalhar com a ideia de identificar quem foram os responsáveis pela violação [dos direitos humanos] e promover a justiça. Evidentemente tais pessoas não gostam disso, assim como não gostam da Corte Internacional de Justiça, assim como não gostam da ONU, assim como não gostavam de mim – que fui investigador da ONU por 30 anos. Então isso é normal, pois a maior arma dessas pessoas é o silêncio”, constata.

A presidenta Dilma Rousseff no ato da instituição da Comissão da Verdade (Foto: Agência Brasil - Memória)

Fórum – Você é o atual presidente da Coalizão Internacional para Sítios de Consciência. Poderia explicar um pouco como a entidade atua?

Doudou Diène – Nosso trabalho tem como ideia a promoção do trabalho de preservação da memória e da justiça. Mas, mais fundamentalmente, o centro da atividade da Coalizão é criar uma rede entre todos os sítios de memória de assassinato em massa, genocídio, violação dos direitos humanos, conectando-as de tal maneira que se crie uma dimensão de universalidade. Compartilhando as experiências de todos os sítios, do Senegal ao Chile, do Brasil à Guatemala e Rússia, e assim promovendo o trabalho criativo no que diz respeito à memória.

Afinal, para entendermos completamente a violação dos direitos humanos, é suficiente visitarmos os museus da ditadura, construídos em homenagem a suas vítimas? É suficiente visitarmos o campo de concentração da Segunda Guerra de Auschwitz, na Polônia, ou os lugares onde pessoas foram torturadas no Chile ou na Argentina? Não é suficiente. Então nós promovemos o trabalho criativo da memória, que não trata do assunto apenas para ser lembrado, mas a utiliza para a transformação do presente. Não esquecendo o que aconteceu, mas conectando o passado ao presente.

Fórum – Quantos países participam da Coalizão atualmente?

Diène –  Nós temos mais de 50 países e mais de 200 sítios de memória, em todos os continentes.

Fórum – Nesse momento, o Brasil realiza a Comissão da Verdade, que investiga os crimes cometidos durante a ditadura militar. Como o seu trabalho se relaciona a isso?

Diène – Nós temos um comitê internacional responsável por estudar os pedidos de diferentes sítios para tornarem-se membros [da Coalizão]. Então, não acontece de maneira automática, cada local tem de trazer seu próprio trabalho, dizendo: “essa é nossa história de tortura, de assassinatos, de crime e mostrar tal documentação”. Aí então o comitê analisa e dá o seu ok.

Fórum – Mas, no momento, existem muitas pessoas que não querem a verdade exposta e trabalham, inclusive, contra as reuniões da comissão – principalmente os militares envolvidos, que têm medo de ser condenados.

Diène – E tais pessoas têm muitas estratégias para esconder o que aconteceu. Nosso trabalho é ajudar esses países a cavar mais a fundo para descobrir a verdade e quebrar o silêncio. A questão da memória é primeiramente a quebra do silêncio.

Uma das estratégias para manter esse silêncio é controlar a imprensa, então as pessoas não comentam a respeito; ou eles controlam o sistema educacional e assim não colocam informações sobre tortura nos livros escolares ou simplesmente destroem fisicamente a documentação que revela a verdade. Mas não estamos sozinhos: a ONU tem um trabalho extraordinário em documentação de violação de direitos humanos, assim como algumas grandes ONGs, como a Anistia Internacional e a Human Rights Watch.

Fórum – Os países que formam a Caricom, no Caribe, trabalham em um plano de dez pontos que busca reparações dos países europeus envolvidos no comércio de pessoas da África trazidas à força para trabalhar como escravas nas Américas. Como a Coalizão trabalha em relação aos crimes que ocorreram há muito tempo, como o comércio de escravos?

Diène – Por 25 anos fui diretor do departamento intercultural da Unesco, e fui um dos que escreveu um programa sobre memória da escravidão, já em 1994, estudando como isso aconteceu, por que aconteceu, as diferentes maneiras com que os fatos foram praticados e suas consequências.

Uma das maneiras de manter o silêncio sobre a escravidão consiste em transformar a identidade dos lugares. Por exemplo, quando você vai ao Caribe, eles te levam ao hotel, à praia, têm um bom sol e um mar azul – tudo é lindo. Mas você não se dá conta de que o hotel onde está hospedado é uma antiga fazenda onde trabalharam escravos ou onde eles eram mantidos. Não percebe que quando anda até à praia, caminha por um lugar onde funcionou um mercado de escravos, ou até mesmo sobre valas coletivas, onde os escravos eram enterrados. Nós convidamos os países a se “reapropriarem” de suas histórias, pois uma das maneiras mais perigosas de escondê-la é o turismo. O turismo foca na beleza estética, mas não mostra a história feia do lugar, que é, obviamente, feita de violência. A Unesco trabalhou com a Organização Mundial do Turismo para promover o turismo da memória, para que os países do Caribe, assim como o Brasil, pudessem também ser conhecidos como lugares onde a história aconteceu, e dar a esses lugares sua real identidade – primeiro para a população desses países e depois para seus visitantes. Isso não é muito praticado.

Doudou Diène, desde 1977 atuando na questão de Direitos Humanos e direito à verdade (Foto: Marcelo Hailer)

Fórum – Em sua avaliação, quais os fatores que dificultam a implantação do turismo da memória ao redor do mundo?

Diène – Os países prontos para fazê-lo são aqueles cuja população teve sucesso em conseguir um governo eleito democraticamente e sensível às necessidades e vozes de seu povo, mas também é sensível à voz de suas minorias.

Por exemplo, os livros escolares no Brasil deveriam trazer a história dos ameríndios – que viviam aqui antes e foram massacrados – e dos africanos trazidos para cá como escravos, da mesma forma que contam a história dos europeus. Os livros de História têm de refletir a diversidade desses países com tantas comunidades, que foram, por sua vez, responsáveis pela construção da nação.

Mas isso não é algo que os poderes políticos querem, pois uma das maiores armas para a dominação de minorias é impor a elas a história da maioria. Porque deixar que a minoria tenha sua história pesquisada e ensinada nas escolas significa dar às pessoas consciência política. Então, o poder dominante não quer isso, seja ele militar ou não, e é por isso que todos os livros de História escondem algumas coisas e promovem outras – mostrando que a dominação foi um processo natural. Dessa maneira, você cria classes sociais, tendo o homem branco como superior, e o processo de escrever a história se torna, na verdade, um processo de apagar a memória dos povos dominados.

Fórum – No Brasil, muito se fala sobre uma espécie de “democracia racial”, que supostamente não admite racismo. Mas as pessoas negras ainda são classificadas como um “grupo de minoria”. Como você enxerga essa negação da existência da discriminação racial no Brasil?

Diène – O racismo praticado no Brasil, assim como em todo o hemisfério, vem da escravidão. Como maneira de legitimar a venda de seres humanos como força de trabalho, os europeus dos séculos passados inventaram a ideia de inferioridade de raças, assim, conseguiam dizer às pessoas que o que eles traziam não eram humanos. A invenção da hierarquia racial foi uma tentativa intelectual de legitimar a venda de pessoas para exploração econômica e acúmulo de riquezas.

O pilar ideológico da escravidão nas Américas é o racismo. É importante entender que, ao receber 40% do total de escravos trazidos da África, o Brasil foi “construído” com base na ideia de hierarquia de raças. O racismo estruturou toda a sociedade e a consequência disso pode ser percebida no que chamo “mapa duplo”: o mapa da marginalização social, econômica, política e cultural coincide com o mapa “étnico”. Sendo assim, basta olhar para a população de São Paulo para ver quem é que vive melhor e quem vive pior.

E essa hierarquia racial é profundamente enraizada no imaginário coletivo da sociedade brasileira, tornando, então, o racismo invisível. Por isso, quando se pergunta à elite brasileira – de maioria branca –, ela negará a existência do racismo. Isso explica também o absurdo da “democracia racial”, “sociedade do arco-íris”, ou qualquer outra coisa.

Vai levar um bom tempo, mas o Brasil está reconhecendo seu passado e está indo para frente no assunto, porque para combater um problema é preciso, primeiramente, assumir a existência do problema. O racismo é reconhecido pelos governos, desde [Fernando Henrique] Cardoso, até Lula e Dilma [Rousseff], mas existe ainda uma forte resistência da própria população brasileira.

Fórum – O senhor conhece a polêmica de nossas “cotas raciais”, certo?

Diène – Sim, conheço e sei que muitas pessoas foram contra as cotas, mas quando um país possui uma profunda estrutura racial em sua sociedade, que marginaliza sistematicamente as pessoas por conta da cor de sua pele, é necessário tomar medidas para dar a elas alguma chance. Isso começou com Lula, teve enorme resistência da elite e até mesmo de alguns políticos progressistas, que diziam “não, não, isso não é democrático”. Mas o programa foi lançado e isso é uma prova de que o Brasil está dando passos para a frente quanto ao racismo.

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