Vivemos na Alemanha de 1930?

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Pesquisadores alemães ressaltam que contextos são diferentes, mas apontam similaridades do discurso nacionalista e antidemocrático que tomou conta do Brasil com o que levou Hitler ao poder

Manifestantes colocam Jair Bolsonaro como Adolf Hitler durante protesto em São Paulo no início de outubro (Foto: NELSON ALMEIDA / AFP)
Manifestantes colocam Jair Bolsonaro como Adolf Hitler durante protesto em São Paulo no início de outubro (Foto: NELSON ALMEIDA / AFP)

Em geral, uma entrevista na Alemanha é agendada com boa antecedência. A aceleração não dá o tom das relações no país, especialmente profissionais, porque tempo é algo que culturalmente é ligado a bastante planejamento. Mas não foi esse o cenário desta vez. Ao mencionar as palavras “eleições” e “Brasil” ao solicitar entrevistas, vieram respostas em poucas horas. A urgência de se entender o contexto político brasileiro ultrapassou fronteiras, o avanço de um discurso antidemocrático acendeu um alerta de emergência, afirmam pesquisadores. Em meio a diferentes perspectivas sobre o pleito que ocorre no Brasil no próximo domingo, dia 28 de outubro, há um consenso sobre a necessidade de se tirar uma cortina de fumaça e entender as conexões entre passado e presente, segundo especialistas, que identificam riscos de retrocessos enormes. Nesse momento, proliferam pelo mundo manifestos contra a candidatura do candidato do PSL, Jair Bolsonaro. Na Alemanha, há também casos de reações em massa a organizações e empresas que apoiam o candidato no Brasil.

A comunidade internacional está de olho na situação no Brasil, também como parte de um contexto global difícil, com escalada do discurso de ódio, xenofobia, racismo, entre outras formas de discriminação. A escritora Aleida Assmann, que acaba de receber o Prêmio da Paz da Associação de Livreiros Alemães no último dia 14 de outubro, respondeu ao pedido de entrevista em poucas horas: “estou acompanhando as notícias sobre o Brasil e muito preocupada”. Assmann tem 71 anos e trabalha há anos com o tema da memória social, coletiva e cultural. Recebeu o prêmio na Feira de Frankfurt, junto com seu companheiro, Jan Assmann e, em discurso na cerimônia, ambos pediram solidariedade em todo o mundo a favor da democracia. O prêmio foi um reconhecimento do trabalho em torno da chamada “Erinnerungskultur” (palavra famosa na Alemanha, que significa cultura da lembrança). Ela revelou que, nesta declaração, se referia à ascensão da extrema-direita e da onda antidemocrática em todo o mundo, inclusive no Brasil:




“O que está acontecendo com a candidatura de Jair Bolsonaro extrapola limites, coloca a tortura como discurso de frente e se assemelha muito à propagação do fascismo. Na Alemanha, partidos políticos de direita também avançaram, mas esse tipo de discurso aqui é um escândalo, ultrapassa limites. Estive no Brasil em 2013 e a atmosfera que senti naquele momento era de um debate político saudável. A Comissão da Verdade estava trabalhando, recuperando a história da ditadura militar, o que é tão importante de se fazer. Lembro-me que havia espaço para muita diversidade. Depois, desde 2016, já ouvia falar em um discurso mais autoritário e me preocupou. Não imaginaria que haveria essa escalada do ódio e de um avanço contra a democracia”.

Na cerimônia de abertura de Berlim 1936, a saudação nazista do público com a presença de Hitler

Para Assmann, a questão da memória é central para a construção de uma sociedade democrática a longo prazo. Segundo ela, sem isso, falta um senso de realidade e abre-se espaço para muitas distorções, uma vez que jovens não carregam a experiência do passado e os mais velhos nem sempre elaboram a vivência. Ela aponta que é preciso reforçar os consensos democráticos que girem em torno de quatro pontos principais: democratização, história e memória, direitos humanos e paz. Ao mesmo tempo, reafirma o alerta de que o cenário brasileiro neste momento traz fatores muito próximos da história alemã com a ascensão de Hitler nos anos 1930, com aspectos como o fascínio e a criação de um mito, um falso salvador (definição também usada sobre Hitler no início dos anos 1930), que, na verdade, propõe a barbárie, a partir da incitação contra um inimigo.

A cultura da memória

Essa relação entre fascinação e ódio nos leva a uma cidade específica no Sul da Alemanha, Nuremberg, segunda maior do Estado da Bavaria.  Além da arquitetura medieval e do estilo que conecta visitantes ao imaginário internacional sobre o país (cerveja, Oktoberfest, mercado de Natal), Nuremberg atrai milhares de pessoas de todo o mundo para saber mais sobre história. É lá que funciona o Centro de Documentação de Nuremberg (Dokumentationszentrum), onde uma exposição permanente chamada “Fascinação e Violência” reconstrói os anos que precederam a chegada de Hitler ao poder.

No mesmo local, em meio a uma área verde extensa, vê-se uma massa de concreto abandonada, uniforme, uma espécie de imitação do coliseu romano, cuja construção foi iniciada em 1937 e nunca foi acabada e que provoca desconforto, tanto pela sensação de apequenamento, tanto pelo estilo arquitetônico em si, como pela história que representa. Chama-se salão de congresso (Kongresshalle) e fazia parte de um complexo, que também contava com uma tribuna, no campo Zeppelin (Zeppelinfeld) de nada menos do que 360 metros de comprimento (ou mais de 12 campos de futebol) e lugar para cerca de 50 mil pessoas. Foi lá, onde em 1927 se iniciaram os maiores comícios e desfiles do partido nazista. O líder em questão prometia um império, uma Alemanha melhor, atacando minorias. Não falava em propostas, era autoritário, usava apenas um vocabulário geral que atingia a todos. E defendia que uma mentira falada mil vezes se tornava uma verdade. O resultado é conhecido: um dos maiores genocídios da história mundial, com estimativa histórica de cerca de 11 milhões de mortos, entre judeus, homossexuais, ciganos, mulheres consideradas “associais” (por não terem o comportamento padrão imposto às mulheres da época, e aí pode-se incluir mulheres solteiras independentes, lésbicas, as que se organizavam politicamente ou qualquer outro elemento considerado suspeito dentro da paranoia criada). E destruição de várias cidades alemães, tanto por bombardeamentos, quanto na situação econômica.

Se a pessoa rejeita direitos de cidadãos de um país, isso não tem nada a ver com democracia

Jenny Antonia Schulz
pesquisadora do departamento de Ciência Política da Universidade Livre de Berlim

A documentação da Segunda Guerra Mundial atravessa a Alemanha inteira, representada por museus, monumentos, além de ser parte do currículo escolar obrigatório. Os estragos foram tão gigantescos na vida das pessoas, nos anos que se sucederam e no lugar internacional que o país ocupou que qualquer relação com o nazismo causa escândalo no país. E é exatamente por isso que casos de suspeita de apoios ao candidato Jair Bolsonaro têm gerado muito constrangimento, inclusive no mercado e em partidos políticos alemães. Foi o caso do Deutsche Bank, que publicou, no dia 5 de outubro, um tuíte dizendo que o candidato do PSL era “o favorito do mercado”, causando uma chuva de mensagens indignadas de internautas. E, na mesma semana, logo após o primeiro-turno das eleições, a fundação Friedrich-Naumann, ligada ao Partido Democrático Liberal, chegou a tirar do ar de sua página as informações de parcerias com o Brasil, após informação de que teria cooperado com a campanha de Bolsonaro.

No dia 10 de outubro, a fundação publicou um comunicado, afirmando que havia cancelado a parceria com um grupo liberal dentro do PSL, quando Bolsonaro entrou no partido. O comunicado se refere a Bolsonaro como um populista de direita e afirma que “sua defesa da antiga ditadura militar, suas observações racistas e sexistas nos preocuparam muito antes da eleição. A vitória de Bolsonaro na primeira rodada é um tapa na cara de todos os democratas”.

No dia 13 de outubro, em entrevista à mídia pública Deutsche Welle, a presidente do Grupo Parlamentar Teuto-Brasileiro no Parlamento alemão, a deputada do Partido Social-Democrata (SPD) Yasmin Fahimi, afirmou que uma vitória de Bolsonaro pode impedir uma retomada de parceria estratégica.

Acredito que a melhor forma de definir a candidatura de Bolsonaro é por meio da identidade de não-democrática, e não como fascista

Maurício Parada
Professor de História Contemporânea da PUC e autor do livro “Fascismos: conceitos e experiências”

A pesquisadora do departamento de Ciência Política da Universidade Livre de Berlim Jenny Antonia Schulz, que pesquisa o avanço da direita alemã, afirmou que o caso brasileiro tem sido um choque na comunidade internacional:

“O extremismo é fora do espectro democrático. Se a pessoa rejeita direitos de cidadãos de um país, isso não tem nada a ver com democracia. Se ele ataca minorias, o assunto é de outra esfera e mostra muitas semelhanças com discursos fascistas”.

Ela também alerta para o que as pessoas dizem que é retórica no discurso.

“Há quem diga que os partidos ou candidatos dizem isso ou aquilo, mas que não o farão. Porém, nem a história nem o presente nos ensinam isso. Em geral, os discursos de extrema-direita, quando eleitos, colocam em prática muita dificuldade para muitos grupos sociais. É o caso dos direitos das mulheres, com esse ataque antidiscussão de gênero. Estamos vendo isso na Hungria, que proibiu, por exemplo, estudo de Gênero em cursos superiores, impedindo assim o debate sobre igualdade de gênero no país, entre outros assuntos”.

e avanço do nazismo
Manifestantes pró-Bolsonaro acenam na Avenida Paulista, no fim de outubro (Foto: Cris Faga/NurPhoto)

Maurício Parada, professor de História Contemporânea da PUC e autor do livro “Fascismos: conceitos e experiências”, ressalta que é importante estabelecer as diferenças entre o contexto histórico no qual se desenvolveram o fascismo e o nazismo e o presente. Para ele, a experiência democrática que se conhece no pós-Segunda Guerra Mundial é um grande diferencial. Por outro lado, há semelhanças que, segundo ele, não podem ser ignoradas:

“Infelizmente, as similaridades com a década de 1930, quando o nazismo emergiu, são muitas. Há xenofobia (aversão a imigrantes), uma exaltação nacionalista, que inclusive é perturbadora, pois não cabe no contexto histórico brasileiro de surgimento a partir da diversidade. Alimentação do ódio a partir de um inimigo criado, esse personalismo de um líder, quase como um iluminado e que se cola a um discurso de violência. Além disso, ataque à imprensa, uso de elementos conspiratórios e desprezo do debate absoluto. São muitos pontos em comum, se analisarmos a história. No entanto, acredito que a melhor forma de definir a candidatura de Bolsonaro é por meio da identidade de não-democrática, e não como fascista. O autoritarismo deveria ser o foco neste momento”.

Pesquisadores de universidades em toda a Alemanha e em outros países europeus também se posicionaram nas últimas semanas, fazendo discursos e abaixo-assinados contra a candidatura de Jair Bolsonaro, contando com grandes nomes como filósofo Axel Honneth e o sociólogo Claus Offe.

“Aprendemos, dolorosamente, com a história europeia e, em especial, com a história alemã, que a apologia da tortura e da violência e o desrespeito a concidadãos e minorias jamais serão solução para crises econômicas e políticas”, afirma um dos documentos, assinado por importantes personalidades da ciência alemã. Organizações da sociedade civil, movimentos sociais e representantes de outros setores também assinam documentos neste sentido. Simultaneamente, há manifestos virtuais internacionais se multiplicando, entre eles um assinado por intelectuais como a filósofa e ativista dos direitos civis Angela Davis, Adolfo Esquivel (prêmio Nobel da Paz), François Hollande (ex-presidente francês), entre outros.

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