Esporte Interativo, via Gilmar Ferreira, Facebook –
“O convite chegou por volta das três da tarde, com o telefonema de um amigo que, feliz, dizia ter uma entrada sobrando para o jogo Flamengo x Independiente.
Como sou cidadão espanhol, nascido no México, não podia negar o convite e desperdiçar a oportunidade de viver uma experiência histórica.
Emoção que podera ser única de viver uma final de Copa Sul-América dentro do Maracanã, maior estádio das Américas.
Rejeitá-lo, seria um luxo ao qual apaixonados por futebol, como eu, não se permitem.
Concluí minhas tarefas no trabalho e fui para a casa mais cedo, saindo de Botafogo para a Barra da Tijuca, onde troquei o terno por bermuda, camiseta e tênis.
Os mais sujos para evitar chamar a atenção.
Peguei o Metrô no Jardim Oceânico em direção a estação Maracanã, onde combinei de encontrar o amigo que estava com os ingressos.
No vagão, uma família com mulheres e crianças reconheceu minha condição de estrangeiro residente e disseram que eu poderia ir com eles até o estádio.
Só que eles não desceram na estação Estácio para tomar a Linha 2 na direção do estádio porque estava lotado de gente.
Acabamos descendo na estação São Francisco Xavier, e dali seguimos a pé até o estádio.
Caminhamos sem nenhum problema até o Maracanãzinho, até que nos separamos.
Mas antes de a família tomar a direção do acesso de entrada, houve o cuidado de me indicar por onde seguir para encontrar meu amigo no Portão C.
Ainda não eram oito horas da noite.
Já contornando o estádio, um homem com uma lata de cerveja na mão apontou para mim e perguntou se eu era argentino.
Com gestos, respondi que não e segui em frente.
Não tinha vontade de falar justamente para que, pelo sotaque, não me confundissem com um argentino.
O homem, porém, insistiu.
Acompanhava meus passos e repetia, com o olhar fixo e tom ameaçador.
“Você é argentino?”
Tentei responder em bom “portunhol”.
“Não, cara. Não sou argentino, eu torço pros brasileiros, eu amo futebol”.
Mas ele retrucou:
“Seu sotaque te entrega” , e já foi finalizando a frase com um chute.
PESADELO
Foi quando percebi o pesadelo.
Continuei tentando seguir em frente, ignorando o fato de que aquele torcedor, bêbado, pensava que eu fosse um argentino.
Mas ele queria briga e só consegui dar mais alguns passos à frente.
Logo fui parado por um grupo de seis torcedores, que me rodeou, fazendo a mesma pergunta _ já acompanhada de um “carinho” (sic) nas costas.
“Você é argentino?”
Nesse momento, tirei do bolso minha identidade brasileira de estrangeiro, mostrando que era “ESPANHOL”, não argentino.
Tentava explicar que vivo no Brasil e queria somente realizar um sonho que é o de qualquer apaixonado por futebol.
Mas a frase que eu mais repetia era mesmo o “eu não sou argentino!”
Eles, porém, já eram mais de seis e todos “deixavam” chutes, pontapés, socos e empurrões.
Logo percebi que estavam enfiando as mãos nos meus bolsos, procurando por coisas de valor.
Eu não tinha muito, mas tentei segurar a carteira, onde guardo os documentos.
Senti então que haviam levado meu celular, sem parar com os socos e os pontapés nas costas.
O linchamento estava ficando cada vez mais forte quando vi se aproximar um homem alto, loiro e com barba, que começou a me ajudar a sair das agressões.
Não sei repetir as palavras, mas ele tentava dizer para o grupo que eu não era argentino, que vivia no Brasil, e que me deixassem ir.
Os agressores não deram muita atenção e seguiram com os chutes, agora mais leves.
Talvez tivessem percebido que eu não era mesmo um argentino.
Aqueles minutos, que pareciam durar horas, serão eternos…
De repente, um deles se aproximou e disse:
“Me ajuda a te ajudar! Vem comigo, que eu sou policial a paisana… me acompanha até aquela rua ali atrás”.
Sou estrangeiro, mas não sou burro…
E, num ato de coragem, respondi:
“Se vai me bater, bate logo aqui na frente de todo mundo, não em uma rua escondida”.
Nesse momento, quando já estavam quase tirando a carteira do meu bolso, chegaram os policiais.
Provavelmente, chamados por aquele homem loiro, que tentou me ajudar anteriormente.
Mas não puderam dar conta daquele grupo, ensandecido.
Cheguei até a acreditar que o cenário poderia ficar ainda pior.
Mesmo assim, conseguiram afastar os agressores e um dos policiais me perguntou para qual setor eu estava indo.
Num segundo, o grupo dos agressores ressurgiu em maior número.
Os policiais, então, pegaram os cassetetes e começaram a tentar dispersa-los, afugentando-os com a chegada do reforço policial.
“SE VOCÊ FOR LÁ, VOCÊ MORRE!”
Resgatado, livre dos agressores, fui perguntado mais uma vez, agora pelo policial.
“Você é argentino?”
Eu disse que não.
“Preciso apenas ir até ao portão em frente a estação do Metrô para encontrar meu amigo, e estou sem celular…”
Fui desaconselhado.
“Se você for lá, você morre!”
Me vi em um beco sem saída, sem telefone para me comunicar com meu amigo, sem ingresso, e na terra de ninguém.
Enquanto falava com o policial, um rojão estourou do meu lado, deixou algumas marcas na parte da frente das pernas.
Já não sentia dor, e só queria dar um jeito de sair daquele inferno.
Logo em seguida chegou um outro grupo de policiais, acompanhado de dois rapazes argentinos, resgatados com as camisas rasgadas.
Não havia dúvidas: o cenário era de guerra.
Um dos policiais nos escoltou até o setor da torcida visitante.
E vale ressaltar a valentia dele, o policial, também ameaçado, alvejado por latas de cerveja e cuspes direcionados a mim e aos argentinos.
Esse homem estava arriscando a vida dele por pessoas que nem conhecia, e provavelmente não teremos a oportunidade de agradece-lo por isso.
Finalmente, chegamos ao setor destinado ao publico visitante, a torcida do Independiente.
Nunca pensei que teria tranquilidade em estar no meio dos “Barras Bravas” argentinos.
Mas foi assim: sem querer, acabei virando mais um do “clã”.
Foi aí que chegou um taxi na área próxima ao portão destinado aos visitantes, no qual entrei, pedindo que me levasse para a casa.
LOUCOS
Dentro do carro, pude sentir as dores das patadas, dos socos, e das bombas que felizmente não explodiram em meu corpo.
Como estrangeiro, amante do futebol acostumado à troca de países, sei que há loucos por seus clubes tem em todos os lugares.
Fanaticos, mal-intencionados, que acham fazer o bem a seus clubes destruindo o que veem pela frente e brigando com quem vem do lado contrário.
Porém ontem pude perceber que as agressões que recebi não foram conduzidas apenas por um grupo de fanáticos, mas sim por bandos organizados.
Não se pode culpar toda uma torcida de um clube pela conduta de uma minoria que atinge famílias, mulheres e crianças.
E que faz com elas tenham de se afastar dos estádios.
Quanto a mim, é claro que voltarei ao Maracanã, só que na próxima vez acompanhado de amigos brasileiros.
Aprendi que não posso cometer o “pecado” de ser reconhecido como estrangeiro em uma cidade que, paradoxicamente, vive do turismo.
No mais, que a bola seja rolada novamente, pois daqui a pouco chegam os Campeonatos Estaduais…”
– J.N., executivo de um banco espanhol a serviço há mais de um ano no Brasil, pediu que seu relato fosse mantido no anonimato.
Foto da capa de MARCELO CARROLL