Por Adriana Barsotti, com imagens de Yuri Fernandes e arte de Fernando Alvarus, publicado em Projeto Colabora –
Brasil não cumpre metas de bebês e crianças na pré-escola, e governos de diferentes regiões passam a destinar recursos a instituições particulares
Quando se digita a palavra voucher no Google, os resultados de busca revelam a associação da palavra a viagens, cupons de desconto e recargas de celular. No Brasil, entretanto, o termo está se estendendo a creches, com o chamado voucher-creche. Sem vagas nas instituições públicas, governos de diferentes regiões passaram a destinar recursos diretamente aos pais para a matrícula das crianças em creches privadas. O problema se agravou diante da necessidade de cumprir a emenda constitucional que tornou obrigatória, desde 2016, a matrícula de crianças de 4 e 5 anos em escolas. Pais que não conseguem vagas passaram a entrar na Justiça para fazer valer seus direitos.
A questão da legislação é um nó, mas vamos lá: a pré-escola passou a integrar a Educação Básica, com a aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação, em 1996, mas foi só com a Emenda Constitucional nº 59, de 2009, que essa etapa do ensino se tornou obrigatória. Estados e municípios tiveram mais sete anos para se adequar. Hoje, três anos depois do prazo, a taxa de escolarização nesta faixa etária é de de 91,7%, revelou o Censo Escolar do Inep de 2018, o que prova que não cumprimos a meta. Além desta emenda, foi aprovado, em 2014, o Plano Nacional de Educação (PNE), que antecipou ainda mais a entrada das crianças na rede escolar. Uma das metas era ter metade das crianças de 0 a 3 anos matriculadas em creches até 2024. Hoje, nessa faixa, o atendimento escolar é de apenas 32,7%, mostrando que ainda estamos longe de atingir o objetivo traçado (veja a situação dos melhores e piores estados nos infográficos).
Há três anos, data-limite para o cumprimento da lei, os vouchers-creches foram anunciados por alguns gestores públicos que não conseguiram atingir a meta. Um deles foi o então governador do Distrito Federal, Rodrigo Rollemberg. Pais de filhos sem vaga em pré-escola pública receberam R$ 456 mensais para pagar uma creche particular. Em Salvador, a gestão de ACM Neto dá R$ 65 ao mês para os pais de crianças de até 5 anos inscritas no Bolsa Família que não conseguiram matrícula na rede pública. A prática também foi adotada pela prefeitura de Porto Alegre e Piracicaba (SP) e por outros municípios do Rio Grande do Sul acionados pela Justiça.
Projeto torna voucher lei
A novidade agora é que já foi aprovado no Senado um projeto de autoria do senador José Serra (PSDB), que altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação para permitir um programa de auxílio financeiro a ser usado na rede privada, em creches com fins lucrativos, para famílias cadastradas no Bolsa Família que não conseguiram matricular seus filhos de 0 a 5 anos na rede pública ou conveniada. A rede conveniada é composta por creches filantrópicas, comunitárias, confessionais e sem fins lucrativos, o que já é permitido por lei. Ou seja, elas podem receber recursos dos municípios. Se aprovada na Câmara, onde algumas emendas já estão sendo negociadas, a lei terá que ser regulamentada pelo Poder Executivo e valerá em todo o território nacional. Ou seja, os pais receberão um voucher, que será trocado pela matrícula dos filhos em creches escolhidas por eles.
Para receber o benefício, além de estarem cadastrados no Bolsa Família, os pais deverão comprovar recibos de pagamentos mensais. Além disso, o projeto prevê que o voucher deve ser temporário e deve ser cessado imediatamente após a matrícula da criança em rede pública ou conveniada, embora não estabeleça um prazo para isso. O texto afirma que caberá ao Executivo fixar o valor do voucher-creche e sugere que este seja reajustado pelo IPCA (Índice de Preços ao Consumidor Amplo).
A boa notícia é que o projeto de Serra, que agora tramita na Câmara, obriga as prefeituras a divulgarem, na internet, quais as famílias que estão na lista de espera por uma vaga em instituição pública ou conveniada, bem como os critérios adotados para a realização da matrícula e o cronograma previsto pelo município para a incorporação destas crianças à rede de creches ofertadas pelas prefeituras. “Será um instrumento de pressão para que haja alguma política pública por parte do município”, explica Leonardo Ribeiro, assessor para assuntos econômicos do senador. “O projeto é para viabilizar, em caráter emergencial, o acesso das crianças às creches”, explica.
Perguntado se não pode haver uma precarização ou desigualdade no ensino, como no Chile, Ribeiro diz que, neste primeiro momento, o projeto não teve como objetivo estabelecer critérios de qualidade, o que poderá ser feito posteriormente pela União. “Poderá ser estipulado, por exemplo, quantos cuidadores por criança serão necessários”, sustenta. Já há algumas polêmicas à vista na Câmara. Uma delas foi a gritaria dos prefeitos. A Constituição exige que os municípios apliquem ao menos 25% de sua receita resultante de impostos em educação. Eles temem que os gastos com o voucher-creche não sejam computados nesta porcentagem, o que poderá ser incluído pela Câmara. O outro ponto polêmico seria a transferência de recursos dos municípios para empresas privadas, com fins lucrativos, o que poderia levantar dúvidas quanto à constitucionalidade da medida. “Nossa resposta é que a transferência de dinheiro não é para as instituições, mas para as pessoas físicas”, argumenta Ribeiro.
Por fim, o assessor do senador lembra que o Brasil está passando por mudanças demográficas, com a inversão da pirâmide. “Vale a pena apostar na construção de creches? Por que não trazer o setor privado?”, questiona. Diante do argumento que, em muitas regiões do país, como nas zonas rurais, não haverá interesse do setor privado na abertura de creches, ele responde: “Quando o privado não tem interesse, aí o poder público deve intervir”. E os outros benefícios oferecidos às crianças em creches públicas, como a merenda? Ribeiro acredita que haverá uma força-tarefa na Câmara para discutir este tema, inclusive para obrigar as creches que forem contempladas a proporcionarem também alimentação às crianças.
A psicóloga Cíntia Aleixo, autora do blog Possibilidades Maternas e especialista em psicologia perinatal, se preocupa com o voucher creche. Mãe de uma menina negra, que já sofreu discriminação em uma escola de elite no Rio de Janeiro, ela acredita que as creches necessitam estar preparadas para receberem crianças de outras condições sociais. “Dos alunos, passando pelos professores e demais profissionais, todos teriam que receber treinamento para evitar o bullying e o racismo nessa integração das crianças que seriam mais pobres e, provavelmente, de favelas, com as crianças de classe média, de creches particulares”, sustenta. “Temo que essas crianças sejam jogadas aos leões”, diz.
Mais probreza, menos creches
Existe uma correlação perversa entre a renda das famílias e a oferta de vagas em creches no Brasil, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad), de 2017, do IBGE. Entre as crianças de 0 a 3 anos que pertencem aos 20% com a renda domiciliar per capita mais baixa do país, 33,9% estão fora da escola porque não existe vaga ou creche perto delas. Já entre no grupo de 20% com a renda mais alta, esse problema só atinge 6,9% das crianças. Cíntia lembra como a falta de atendimento, principalmente à mulher negra, leva à formação de creches informais, de fundo de quintal. “É preciso que o governo deixe de ver a creche como um depósito de crianças. A creche deve ser um espaço de aprendizado, mas também de socialização”, adverte. Ela lembra que as principais conexões neurais das crianças são formadas até os 6 anos. “Por isso, é fundamental que as crianças recebam estímulos”, completa.
Professora Associada de Educação da UFRJ, Daniela Guimarães ressalta que a nossa Constituição reconhece os bebês como cidadãos que têm direitos. “As creches começaram como demanda das mães, no início do século XX, e tinham um cunho mais assistencialista, mas, aos poucos, foram sendo reconhecidas como um direito da criança”, lembra. “Outros países optaram por políticas de bem-estar social, com licenças-maternidade e paternidade mais extensas”, diz. “Se o Brasil optou pelas creches como direitos das crianças, é preciso investimento em políticas públicas, em formação de professores e em infraestrutura”, sustenta ela. O voucher-creche, aponta Daniela, não representa investimento em educação: “é a legitimação de uma política pobre para os pobres”. Ela reconhece que, embora a cobertura de creches de 0 a 3 anos ainda seja baixa, lembra que era de apenas 10% há 15 anos. “As prefeituras vêm avançando, apesar de o número ainda ser tímido”, reconhece. Mas ela também lembra que, das nove mil creches aprovadas pelo programa Proinfância (Programa Nacional de Reestruturação e Aquisição de Equipamentos para a Rede Escolar Pública de Educação Infantil), em 2007, mais da metade não foi finalizada.
Doutor em Educação pela UniRio, com estudos e pesquisas dedicados à área da educação infantil, Edson Cordeiro também critica o voucher-creche. “Por trás disso, está em curso um processo de privatização da educação infantil”, diz. “Existem o equivalente a três Uruguais fora da escola no Brasil entre as crianças de 0 a 5 anos. Acho que não estamos no momento de deixar de construir creches”, observa, com preocupação. Assessor da Organização Mundial para a Educação Pré-Escolar (OMEP), Vital Didonet também rechaça a proposta dos vales creches e levanta outra questão sobre a suposta superioridade do ensino das escolas privadas . “As avaliações internacionais mostram que escolas privadas brasileiras vão mal”, sustenta. De fato, o desempenho dos 25% mais ricos do Brasil é menor do que a média dos 25% mais pobres dos países da OCDE. Para Didonet, o investimento em creches comunitárias, já conveniadas das prefeituras, é salutar. Como exemplo, ele elogia a atuação da Secretaria Municipal de São Gonçalo junto à Associação das Creches Comunitárias no município.
Coordenador do Centro de Políticas Públicas do Insper (Instituto de Ensino e Pesquisa) e pesquisador com foco em desigualdade social, educação e mercado de trabalho, o economista Naércio Menezes Filho vai contra a corrente. Ele critica o regime de voucher-creche no Chile por ter gerado desigualdade, ao permitir que as creches selecionassem os alunos e que os pais com maior poder aquisitivo complementassem o vale recebido do governo. Entretanto, vê com bons olhos a união do poder público com a iniciativa privada, desde que os critérios sejam muito bem definidos e planejados para evitar o que aconteceu com o Fies: “As instituições privadas começaram a aumentar o preço dos cursos porque receberiam recursos do Estado. Qualquer graduação passou a ter o mesmo valor do curso de Medicina, que consome muito mais recursos”, aponta. “O importante é que os alunos aprendam”, afirma, sobre eventuais parcerias com a iniciativa privada para creches.
Nem tudo está perdido
Quando se fala em soluções para o problema, pouco se discute fora a necessidade de investimentos do Estado. Mas há projetos criativos, como, por exemplo, iniciativas que estimularam a convivência entre crianças de creches e idosos de asilos. Uma delas foi implementada em Seattle, nos EUA, e a outra na Cidade de Deus, favela da Zona Oeste do Rio. Em Seattle, uma creche funciona no mesmo endereço que um lar para idosos. A ideia foi posta em prática pela pré-escola Intergenerational Learning Center e pela casa de repouso Providence Mount St. Vincent, e deu origem ao documentário “Present Perfect” (“Presente Perfeito”) do diretor Evan Briggs. Diariamente, crianças de até cinco anos interagem com os 400 idosos moradores do lar em atividades tais como música, dança e arte. O objetivo das instituições é ajudar as crianças a aprenderem sobre o processo de envelhecimento e aceitar as pessoas com deficiência e doentes. Em contrapartida, a iniciativa ajuda a tirar os idosos da solidão.
No Rio de Janeiro, a Casa Emilien Lacay desenvolve, há 26 anos, um trabalho intergeracional promovido por meio de atividades culturais e recreativas, compartilhadas entre crianças e idosos na Cidade de Deus e em Jacarepaguá, na Rede Cruzada. Dentre elas, estão a contação de histórias, aulas de música, coral, capoeira, e artes. “Esse modelo permite a troca de afeto, o despertar da curiosidade, o respeito e a valorização do idoso como pessoa ativa”, sustenta o site do programa.