Impacto do filme recém-lançado é hoje muito mais forte diante da tragédia que provou ser o governo Bolsonaro, observa o diretor da obra. “A censura é sobretudo burra”
Por Clara Assunção, compartilhado de RBA
“Olhar para o Brasil de Bolsonaro é pedagógico. Está claro para todos nós que não é esse o Brasil que a gente quer”, destacou o diretor do filme, em cartaz nos cinemas brasileiros
São Paulo – Há mais de dois anos, quando o filme Marighella teve sua estreia cancelada no Brasil, o diretor da obra, Wagner Moura, já tinha certeza da “catarse” que a história do deputado e guerrilheiro Carlos Marighella (1911-1969) provocaria em parte do público do país. Era o primeiro ano do governo de Jair Bolsonaro. E, na análise do também ator e produtor, pairava sobre a obra uma curiosidade. Porém, de certa forma mais restrita àqueles que acompanhavam seu trabalho, o previsto público da chamada “esquerda”. E pessoas que se conectavam com a história do que pode ser um mártir, mito ou sonhador.
Àquela altura, seu primeiro longa-metragem já rodava em festivais de cinema em todo o mundo e tinha acabado de ser aplaudido no Festival de Berlim. Em seu próprio país, no entanto, a estreia passava por dificuldades incomuns impostas pela Agência Nacional de Cinema (Ancine). A mesma sobre a qual o presidente da República ameaçou colocar um “filtro”, meses antes, como condição para não extingui-la. Com suspeitas de boicote, a exibição do filme sobre a vida de Marighella – que lutou contra a ditadura, celebrada por Bolsonaro –, sofreu diversos atropelos.
E o longa, que deveria entrar em cartaz em 20 de novembro de 2019, marcando os 50 anos da morte do protagonista e Dia da Consciência Negra, ficou durante dois anos sem data de estreia. Até chegar aos cinemas brasileiros, na última quinta-feira (4), mobilizando um público ainda maior.
Marighella sob censura
Esse histórico foi resgatado por Wagner Moura em sua participação no programa Entre Vistas, da TVT. O apresentador, o jornalista Juca Kfouri, questionou o diretor de Marighella se o “tiro do obscurantismo, que durante dois anos tentou impedir que o filme viesse à luz no Brasil acabou saindo pela culatra”, dado o impacto da obra no Brasil de 2021.
O diretor concordou com a análise, mas complementou. “O tiro saiu pela culatra e sempre sairá. A censura é sobretudo burra. Porque quando você censura um artista, não é ele o censurado. Você está censurando as pessoas no seu direito de assistir o que quer que seja”, justificou o ator.
“Filme é uma conjunção entre o que pensou um realizador com a época em que esse filme é apreciado por um determinado público. Se tivéssemos estreado em 2019 também, quando Bolsonaro estava ali forte no primeiro ano de governo, a gente iria para o embate e o filme teria a força catalisadora de resistência que está tendo. Só que agora isso está acontecendo com um governo que está provado para a maioria do povo brasileiro, – e as pesquisas mostram –, que é uma tragédia”, avaliou. “Os 20% que seguem apoiando Bolsonaro é essa gente que vai para a rua pedir a volta da ditadura, do fim do Supremo e outros absurdos. O povo brasileiro, de um modo geral, entendeu já que o Brasil é também Bolsonaro. Mas que ele emerge do esgoto da nossa história, que é uma história violenta, autoritária, racista e elitista”, definiu Wagner Moura.
Brasil não é o de Bolsonaro
Essa catarse celebrada pelo diretor também marcou todo o programa com o convidado e o jornalista compartilhando memórias de resistência. Para Wagner Moura, a continuidade dos ataques do governo federal enquanto a obra é exibida pelo país provoca é uma conexão das pessoas com a história de Marighella. “Esse não é um filme sobre os que defenderam a democracia nos anos 60 e 70. Esse é um filme dos que estão resistindo no Brasil de hoje”, destacou.
O tema transbordou com a participação da vereadora Maria Marighella (PT), de Salvador. Neta do guerrilheiro, ela lembrou da dimensão artística de seu avô, também poeta, na luta por um Brasil mais justo. “Para Marighella, artistas e intelectuais constituem a vanguarda da resistência aos atos arbitrários, às injustiças e às desumanidades”, ressaltou Maria.
Entre esse passado e presente, Wagner Moura preferiu concluir, contudo, apostando no futuro. “Olhar para o Brasil de Bolsonaro é pedagógico. Agora que já vimos, está claro para todos nós que não é esse o Brasil que a gente quer. Eu tenho certeza de que de 2022 em diante tudo vai mudar.”
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