WikiLeaks: Em livro, Natalia Viana conta como participou do vazamento no Brasil

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Marilene Felinto resenha “O vazamento: memórias do ano em que o WikiLeaks chacoalhou o mundo”

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Um grande livro, é o que se pode dizer deste “O vazamento: memórias do ano em que o WikiLeaks chacoalhou o mundo” (Fósforo, 2024). Tudo nele é bom: não apenas pela importância do conteúdo narrado, mas pelo modo como foi escrito e por quem: Natalia Viana, jornalista de espírito livre, que optou por acreditar que “um outro mundo é possível” (slogan criado para o Fórum Social Mundial de Porto Alegre por outro jornalista da mesma espécie, o espanhol Ignacio de Ramonet), outro mundo fora do jornalismo de mercado, corporativo, manipulador, espetaculoso e mentiroso.

Natalia, muito conhecida como “a jornalista que recebeu os documentos do WikiLeaks no Brasil”, mas não só, contradiz a regra da piada de que “jornalistas não sabem de nada, só sabem o telefone de quem sabe”. Em se tratando de Natalia, não somente ela sabia (e intuía) e saberia de muita coisa, como também foi justamente o telefone dela que o WikiLeaks procurou para propor uma colaboração pelo Brasil naquilo que logo seria chamado de “o maior vazamento da história” em meio digital.

“O vazamento” foi a divulgação, que começou em novembro de 2010, pelo WikiLeaks, grupo ativista de jornalismo investigativo fundado pelo australiano Julian Assange, de mais 250 mil arquivos de documentos secretos, trocados entre o Departamento de Estado dos Estados Unidos e as embaixadas americanas no mundo todo. Considerado ilegal pelo governo americano, o vazamento envergonhou os EUA ao expor o modus operandi de sua política externa corrupta, seu intervencionismo disfarçado de diplomacia e suas ações militares criminosas, como nas guerras do Iraque e do Afeganistão.

O texto de Natália é o relato envolvente, de um ponto de vista bastante pessoal, sem autocensura, do momento em que ela adentrou o agitado pequeno universo da “redação” do WikiLeaks, uma casa perto de Londres, apenas dez dias antes da publicação do lote de documentos diplomáticos confidenciais, até o longo “depois” daqueles dias e suas consequências para o mundo, para sua vida e sua carreira.

O ritmo frenético da narrativa, tanto quanto o dos acontecimentos naqueles dez dias de ansiedade e perigo, mantém o leitor de olhos grudados no texto, sem vontade de parar de ler. Linguagem ligeira e coloquial, em tom íntimo, vai estruturando o enredo com muita clareza e acerto no encadeamento dos fatos, conduzindo o suspense que cresce ao longo das mais de trezentas páginas do livro, alimentando a curiosidade e a torcida do leitor para que a empreitada seja bem-sucedida.

A empreitada foi o trabalho exaustivo de separação, classificação, tradução e criptografia dos 3 mil documentos iniciais que se referiam ao Brasil, parte que coube a Natalia executar, além da convivência intensa, e por vezes estressante, com o núcleo duro (e mole, álacre e cheio de crença naquela missão inédita em prol da liberdade de informação e da pauta de interesse público) do WikiLeaks, sob constante ameaça de serem alvo da violência dos mais poderosos organismos policiais de vigilância americana, como a CIA e o FBI.

O fato de Natalia ter vivido uma temporada na Inglaterra, onde fizera mestrado em radiojornalismo com uma bolsa do governo britânico, além de cursos em jornalismo investigativo, botou seu nome (e seu número de telefone) na roda daquelas pessoas que já sabiam dela, mas a quem ela não conhecia pessoalmente. Não sem questionamentos, e entre tantas discussões acaloradas, idas e voltas de raciocínio, embates apaixonados, para usar palavras de Natalia, ela ganhou ali um grupo de amigos, e seria sempre solidária a Assange na longa perseguição que ele sofreria depois, nos períodos de exílio e prisão, a despeito de desavenças que, no auge daqueles acontecimentos, surgiram entre eles.
“O ano em que eu colaborei com o WikiLeaks me forjou como jornalista. Foi o meu batismo de sangue”, diz Natalia. Foi “uma maneira de retomar os princípios aos quais jurei lealdade quando me tornei jornalista”.

Os vazamentos do WikiLeaks instalaram um divisor de águas nos rumos da comunicação na imprensa mundial, resultado da batalha sangrenta, como diz Paul B. Preciado, entre “a antiga compreensão democrática liberal do poder e uma nova teoria da democracia como acesso público e não restrito à informação e às tecnologias de produção de verdade”.
“O vazamento” de Natalia é também um livro de revelações surpreendentes, contadas com a franqueza e a emoção de quem participou ativa e entusiasticamente daquele momento histórico de revolução nos processos de produção de informações jornalísticas.

Um livro de revelações surpreendentes, contadas com a franqueza de quem participou de um momento histórico do jornalismo

Um perfil de Julian Assange, de sua inteligência — um gênio da tecnologia da informação —, mas também de suas idiossincrasias pessoais, sua personalidade centralizadora e seu machismo é ponto alto na observação aguda de Natalia. O machismo – o de lá e o daqui — é, aliás, assunto de destaque na narrativa. Ao descrever diferentes episódios em que foi vítima dessa discriminação sórdida ao longo de sua carreira, a jornalista conta um digno de nota.
Aconteceu quando ela realizava tratativas de parceria com órgãos de imprensa do Brasil, que se associariam ao WikiLeaks para divulgar os documentos, conforme a política do grupo ativista naquele momento em vários países.
Para uma parceria inicial, Natalia escolheu a Folha de S. Paulo. Ao abordar aquele finado jornal — no qual havia ainda inteligência viva no comando, a despeito do aparato deformador da notícia que permanece até hoje —, deu de cara com a arrogância misógina do então considerado suprassumo da cobertura política na Folha, o “repórter especial” e correspondente do jornal em Washington, Fernando Rodrigues. Num primeiro momento, conforme Natalia conta no livro, eis que Rodrigues não apenas omitiu o nome da jornalista como sendo o contato com o WikiLeaks como se dizia ele mesmo a ponte direta com Julian Assange!

Natalia saiu de episódios de machismo como esse com protesto firme, exigindo retratação e alteração nas omissões — e com diplomacia e elegância invejáveis (eu mesma, no lugar dela, teria subido o tom até o total furor). No processo de escrita deste livro, ela se deu conta de como “revisitar o machismo daqueles tempos me fez compreender como foi importante para mim encontrar grandes jornalistas que sempre trataram meu trabalho com seriedade e respeito”.

Paralelamente a sua atuação no WikiLeaks, Natalia se associava em São Paulo a um grupo de jornalistas mulheres que fundaria a Agência Pública, uma organização de jornalismo investigativo criada sob o lema “barbudo nenhum vai mandar na gente”, verdadeira vacina antimachismo. O “outro mundo” que Natalia, em seus 30 e poucos anos de idade naqueles 2010/2011, já sabia poder existir fora das linhas editoriais tradicionais era o mundo do ideal de independência jornalística, de compromisso com a liberdade, a informação transparente, a pauta de interesse público. “Aprendi a ser repórter na revista Caros Amigos, a primeira a apostar em jornalismo narrativo de profundidade no final do século 20, ela conta. “(…) estava francamente frustrada com os jornais brasileiros. Não havia espaço para criatividade, nem experimentação. E as grandes redações tinham pouco interesse nas histórias que eu queria contar.”

Em muitos momentos de sua carreira, sacrificou-se, vivendo das incertezas financeiras de uma profissional freelancer. Mas assim mesmo bateu mundos e fundos (“bastavam um laptop, um gravador e um bloco de notas”), da Amazônia à Europa, à América do Norte e ao Caribe, viajando para onde quer que a notícia de interesse público estivesse sendo camuflada, ganhando prêmios importantes fora do Brasil, não via conchavo de premiações jornalísticas espúrias que se dão aqui na terra natal, mas porque seu trabalho tem de fato valor e originalidade.

Um grande livro este “O vazamento: memórias do ano em que o WikiLeaks chacoalhou o mundo”, testemunho inspirador e exemplar sobre como se forma um profissional ético no universo escuso do jornalismo. E que ele venha a público agora, justamente no momento em que Julian Assange foi solto (em 24/06 último), depois de mais de uma década de perseguição e prisão, não pode ser simples coincidência, é prova mais contundente ainda da importância deste texto como documento fundamental e indispensável sobre a história de uma iniciativa única em prol do direito universal à informação.

MARILENE FELINTO nasceu em Recife, em 1957, e vive em São Paulo desde menina. É escritora de ficção e tradutora, além de atuar no jornalismo. É bacharel em Letras (inglês e português) pela Universidade de São Paulo (USP) e mestre em Psicologia Clínica (PUC-SP). É autora, entre outras dez publicações, do romance As Mulheres de Tijucopapo (1982 – já na 5ª edição, ed. Ubu, 2021), que lhe rendeu o Jabuti de Autora Revelação e é traduzido para diversas línguas. Seu livro mais recente é a coletânea de contos Mulher Feita (ed. Fósforo, 2022).

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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