Há uma enorme discrepância entre o que a mídia passa sobre o pensamento militar, através de inúmeras declarações em off, e os atos concretos do Exército. Nas declarações, apoio integral à disciplina e à visão das Forças Armadas como poder de Estado. Na prática, endosso tácito às arbitrariedades de Jair Bolsonaro.




As explicações devem ser buscadas em um fenômeno manjado do mercado de opinião: a diferença entre as opiniões individuais e as opiniões coletivas. Individualmente todos somos a favor do bem, da verdade, dos bons propósitos. No coletivo, tudo é possível, pois submetido ao monstro, a onda instável criada no grupo, que pode ir da generosidade mais sensível à ferocidade mais inexplicável. Isso porque entra, no comportamento, o componente dos interesses corporativos e pessoais e o efeito-manada.

Nenhuma categoria está imune ao efeito manada. O discurso de ódio dos últimos anos transformou jornalistas experientes em bestas feras sedentas de sangue e exigindo autocrítica das vítimas. O refluxo os devolveu à civilização, com um discurso humanista emocionado – e sem autocrítica. Nos órgãos de controle, transformou burocratas pacatos em justiceiros do velho oeste, daqueles que arrombam a porta da delegacia para enforcar suspeitos. No Ministério Público, infundiu um sentimento de onipotência que se espalhou por toda a corporação, calando as vozes de bom senso.

O primeiro passo, então, é separar dois tipos de opiniões pessoais. Um, a das chamadas pessoas-bússola, que mantêm suas convicções independentemente das ondas. Outra, a das birutas-de-aeroporto, que seguem as ondas. Tudo isso em um país sem nenhum caráter institucional, com uma história secular de oportunismo. Por isso, jornalistas, ministros, juízes, procuradores, políticos, militares, cronistas de variedades, seguem as ondas de opinião com a mesma facilidade com que adolescentes seguem a última moda.

Nesse quadro, em qualquer dessas organizações há pouco espaço para as figuras-bússola. Assim, o caráter dessas corporações-instituições acaba refletindo o oportunismo e a tibieza da cúpula que, por sua vez, foi filtrada justamente por sua postura acomodatícia .

No caso do Exército, há uma dificuldade extra para decifrar os movimentos coletivos. As declarações têm que ser sempre em off. Como toda reportagem é em off, elas são vulneráveis ao efeito “elefante e os 7 cegos”, cada qual dando ao elefante o formato de acordo com o pedaço do corpo que apalpa. Ou então, valendo-se da cegueira generalizada para incluir  jabutis nas declarações em off. Afinal, como tudo é off, um pouquinho de subjetividade não fará mal a ninguém.

É o caso de Merval Pereira, sustentando que a decisão do Exército foi para não fragilizar Bolsonaro perante Lula. Nenhum dos colunistas supostamente com fontes militares reportou tal preocupação. Donde se conclui que Merval apalpou apenas a tromba do elefante e transformou a preocupação lateral imediata de uma fonte em objetivo geral. Ou então quis reeditar o efeito Villas Boas, trazendo de volta o fantasma da intervenção militar contra Lula para estimular a chegada de algum dom Sebastião, descendo dos céus para salvar o país do lulismo e transformar em algo sólido o ectoplasma da terceira via.

Mas acertou a questão maior. Quando houve a invasão da administração pública por militares, eles se acostumaram com o poder com suas diversas benesses: melhoria da renda, aumento da influência  sobre setores da economia e celebrização. E, cimentando esses interesses menores, a afinidade com várias das teses defendidas por Bolsonaro no plano moral, ambiental e no antipetismo exacerbado.

Assim como em 1964, a ocupação militar se dá, inicialmente, preservando alguns formalismos democráticos. Em 1964 não faltou o endosso de uma eleição indireta de Castello Branco – depois do Congresso devidamente expurgado por cassações. E a promessa – jamais cumprida – de devolver o poder aos civis, depois do país ser limpado dos indesejáveis.

O mesmo ocorre agora. O Supremo ordena que o Exército vá atender as populações indígenas atacadas pelo Covid. Não há questionamento, mas não se cumpre a ordem. A ordem  é jogada de um lado para o outro, de um escaninho burocrático para outro e nada se faz.

Repete-se com as milícias oficiais ligadas à violência. Tome-se o massacre de Jacarezinho. O STF só autorizou operações policiais em casos graves. Aí, o Secretário da Policia Civil dá como motivo quadrilhas aliciando menores – um dado rotineiro na vida carioca. Mas é suficiente para montar uma operação bélica que resulta no maior massacre da história do Rio de Janeiro. Mas, como dizem os idiotas da objetividade, as instituições continuam funcionando.

A estratégia de Bolsonaro tem sido óbvia. Vai comendo a democracia pelas bordas. Vez por outra tenta o embate frontal, encontra resistências e muda de assunto. E continua comendo pelas bordas, enquanto o país civilizado alimenta o sonho de que irá tirá-lo do poder nas eleições de 2022.

Ponto 1 – preparação do golpe

O processo de golpe em marcha consiste dos seguintes pontos:

1. Entrada descontrolada de armamentos beneficiando dois setores formais e um setor criminoso ligados a Bolsonaro: ruralistas e clubes de tiro e caça, e asmilícias propriamente ditas. No primeiro caso, assinou vários decretos não só liberando a importação e compra indiscriminada de armas como aboliu até os procedimentos para identificação de origem das munições. No segundo caso, afastou um superintendente da Polícia Federal no Rio de Janeiro e fiscais da Receita do porto de Itaguaí – porta de entrada do contrabando de armas no país – que combatiam diretamente a atividade criminosa do contrabando de armas.

2. Cooptação das bases das polícias militares. A última iniciativa, do Ministério da Justiça – dirigido por um ministro bolsonarista – é conseguir o e-mail de todos os policiais militares do país para um suposto levantamento das suas condições sócio-econômicas. É evidente que a ideia será inseri-los no circuito dos algoritmos que sustentam a base bolsonarista.

3. As benesses aos militares, escancarando os cargos na administração civil para militares da ativa e da reserva, ampliando suas verbas e benefícios funcionais. Ao aceitar os decretos de armas de Bolsonaro, o Exército abriu mão do seu maior poder, o do monopólio da força. É uma instituição sem espinha dorsal.

4. Fortalecimento das bases evangélicas, com a atuação pertinaz da Ministra Damares destruindo políticas de saúde e de inclusão para transferir poder a asilos e escolas especiais dominadas pelo neopentecostalismo.

5. Manutenção dos laços de parceria com a ultradireita mundial através do Itamarati. Tirou-se um Ministro das Relações Exteriores trapalhão, mas não se alterou a orientação do Itamarati.

6. Queima irresponsável de ativos públicos essenciais – em operações conduzidas por quadros militares, como o Ministro das Minas e Energia Bento Albuquerque – para comprar o apoio do mercado.

7. O maior projeto de suborno da história do país, entregando todo o orçamento para controle absoluto dos parlamentares, visando fortalecer

Parafraseando Noel Rosa – por aqui tudo se compra -, Bolsonaro logrou cooptar três instituições essenciais:

Congresso – com o suborno das emendas.

Exército – com empregos e tornando-o co-gestor do país.

Mercado – com o suborno das privatizações.

Ponto 2 – as forças do contragolpe

Em todo esse imbróglio, há apenas uma força impedindo o golpe: a indignação de parte da população com a necropolítica de Bolsonaro e a permanência da crise econômica. É esse alarido que impõe limites à própria ampliação do poder militar, confere autoridade aos Supremo Tribunal Federal e à própria CPI do Covid. Esse desgaste é medido nas pesquisas de opinião e nas manifestações de rua.

Atualmente, há há dois processos promovendo a mobilização. O primeira, os desastres da política de saúde de Bolsonaro no combate à pandemia. O segunda, a crise econômica e a notável inoperância do Ministério da Economia.

E se esses fatores se diluirem?

Do lado da saúde, a vacinação – ainda que tardia – afastará o fantasma do Covid, deixando para trás a lembrança das centenas de milhares de famílias órfãs. Afastado o risco da pandemia, o foco maior será a economia.

Do lado da economia, com o controle da pandemia haverá uma melhoria óbvia. E haverá também o efeito externo, do novo ciclo de alta  dos commodities permitindo alguma recuperação econômica. E, obviamente, fortalecendo o discurso de Bolsonaro de que seu combate ao isolamento social garantiu a recuperação.

Coloque-se nesse caldeirão a reativação dos programas de transferência de renda e se terá um candidato competitivo.

Há outras sombras no horizonte, como a provável crise hídrica, uma possível terceira onda do Covid.

Repare, portanto, que todo o blábláblá dos idiotas da objetividade sobre a força das instituições, fica na dependência exclusiva de fatores fora do controle das instituições. Se a economia se recuperar, o resultado político será um; se piorar, será outro.

Ponto 3 – o que seria um segundo governo Bolsonaro

Caso prevaleçam os fatores pró-Bolsonaro na economia e na saúde, há o risco concreto de uma consolidação da barbárie, mas ampliada com outros atores. Afinal, trata-se definitivamente de um país sem caráter institucional.

Para impedir um governo social-democrata que coloque um fim a esse banquete de bárbaros, poderá ocorrer o seguinte movimento.

1. Bolsonaro repaginado

Fortalecido, Bolsonaro não terá necessidade de continuar apelando às suas bases radicais, moderando a retórica – não a prática – para ampliar sua base de apoio.

Hoje em dia, por exemplo, o desmonte final do Estado é contido pela resistência de quadros do Estado ligados ao bolsonarismo – especialmente as forças policiais. Conseguindo diversificar sua base de apoio,  poderá se aventurar a encarar a pá de cal no Estado brasileiro, a reforma administrativa. Preservando, obviamente, a polícia e o Judiciário.

2. Exército co-gestor do desastre

Sem o alarido das ruas, o Exército poderá se curvar cada vez mais a Bolsonaro. Afinal, tornou-se uma corporação sem nenhum verniz intelectual, sem projeto algum de país, sem uma liderança de fôlego sequer, meramente administrando alianças com outros setores e benesses para a corporação. Juarez Távora, Estilac Leal, os Cardoso, Golbery, personalidades à esquerda e à direita serão apenas um quadro na parede das Forças Armadas, substituídos por DAS armados.

Assista a entrevista do historiador Manuel Domingos sobre os militares, hoje.

3. Mercado comprado

Se der certo o projeto Bolsonaro repaginado, haverá uma aceleração do desmonte do Estado, com a destruição final do sistema público de serviço. Com o endosso do mercado, bastarão alguns acenos de Bolsonaro para a mídia corporativa cair de novo em seus braços consumando a privatização total da educação, com a destruição do sistema público de ensino, e a ampliação da privatização da saúde.

4. Diques de contenção

Sem o endosso das ruas, um cabo e um sargento bastarão pra retrair o Supremo, a CPI do Covid e outras tentativas de conter Bolsonaro.

Ponto 4 – os pontos de resistência

Menciono o cenário acima como um argumento “ad terrorem”. Mas é uma possibilidade concreta. Não é por outro motivo, que a própria OCDE e o Fórum Econômico Mundial conferem ao Brasil o status de ameaça – tanto climática quanto à democracia -, em pé de igualdade com a Turquia.

Veja, a propósito, entrevista com o jornalista Jamil Chade, sobre o pensamento dos organismos multilaterais e das principais associações do capitalismo.

Não há mais tempo para se perseguir terceiras vias ou seja lá isso o que for, ou procrastinar em relação aos abusos de Bolsonaro, esperando que a crise ou as manifestações de rua resolvam a questão.

O país está no momento mais decisivo da sua história e com a pior geração de homens públicos e privados da história. Resta apenas uma personalidade com dimensão – Lula, por sua história e por seu papel de ex-presidente. Resta ver se conseguirá superar o pensamento miúdo e imediatista de um país que perdeu todas as referências.

As recentes manifestações conjuntas de Lula e FHC acendem uma luz, ainda que tênue, de esperança.