Xadrez dos ossos no armário de Carmen Lúcia

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Luis Nassif, Jornal GGN – 

Peça 1 – sobre as vulnerabilidades dos magistrados

No processo que culminou no afastamento da presidente Dilma Rousseff, foram divulgadas pressões e chantagens sobre Ministros da Corte. Em dois casos, pelo menos, eram denúncias vazias, uma delas de atitude até questionável do ponto de visita ético, mas longe de qualquer tipificação de ilícito.




Mesmo assim, os Ministros cederam, mostrando como são vulneráveis a ataques contra a honra, mesmo de embasamento precário.

Quando o Ministro acumula uma série de decisões polêmicas, definitivamente ele se torna refém de pessoas – ou instituições – em condições de escandalizar os fatos.

O caso Ayres Brito é exemplar. Seu genro foi flagrado oferecendo serviços do sogro para o ex-governador do Distrito Federal Joaquim Roriz. O episódio ganhou as manchetes. Ayres Brito era cúmplice do genro ou apenas vítima? Pouco importa. No momento seguinte, ele se curvou amplamente às demandas da imprensa, liquidou com a regulamentação do direito de resposta e se tornou o campeão nacional na defesa dos interesses dos grupos de mídia.

A denúncia desapareceu do noticiário.

Dessa mesma vulnerabilidade padece a nova presidente do STF (Supremo Tribunal Federal) Carmen Lúcia. É o que poderia explicar a mudança ocorrida em suas posições ao longo dos tempos e a maneira como, ao estilo Ayres Britto, passou a se compor com todas as demandas do noticiário e a jogar sempre para as manchetes?

Não se sabe. Mas a cidadania – tão prezada por Carmen Lúcia – ficaria mais tranquila se a Ministra apresentasse explicações claras para pelo menos três episódios polêmicos em sua carreira no Supremo.

Peça 2 – sobre o lado público de Carmen Lúcia

A presidente do STF (Supremo Tribunal Federal) se manifestou a favor da transparência, da honestidade, da probidade e de outras virtudes cívicas.

No dia 22 de maio de 2012, um dia após o STF decidir divulgar os salários de todos os ministros e funcionários, Carmen Lúcia foi a primeira a divulgar o seu. Embora todos passassem a divulgar seus contracheques, Carmen Lúcia saiu na frente, chamou a atenção da mídia e se tornou a musa da transparência (https://goo.gl/oy9vgx).

Na votação sobre julgamentos em segunda instância, votou a favor da tese de que o réu deve cumprir pena após a sentença ser confirmada pelo tribunal regional, demonstrando assim sua posição intransigente contra os malfeitos e a favor da punição célere.

Ao assumir a presidência do Conselho Nacional de Justiça (CNJ)  anunciou seu projeto com duas palavrinhas mágicas: transparência e eficiência (https://goo.gl/E8TALw).

Fez mais, no STF e no CNJ prometeu cumprir o regimento e definir prazos para devolução de processos com pedidos de vista (https://goo.gl/7AXhB9).

No entanto, mesmo nas matérias laudatórias há alguns senões que preocupam. Mesmo sendo “simplinha”, guiando seu próprio carro, sendo contra os salamaleques da corte, vozes em off falam de sua incoerência, de seu fascínio pelos holofotes, de decisões suspeitas.

Peça 3 – quando o adiamento é manobra

Antes, algumas explicações sobre maneiras sorrateiras de juízes atuarem.

O Supremo é uma corte colegiada. Um de seus pressupostos – e da própria democracia – é não permitir decisões monocráticas, aquelas em que um juiz define sozinho o destino do processo.

Uma das maneiras de burlar é o pedido de vista. A corte já havia definido maioria contra o financiamento privado de campanha. Bastou um pedido de vista de Gilmar Mendes para segurar a decisão por meses e meses. Ou, agora, a decisão da corte, por maioria absoluta, de não permitir que políticos envolvidos em processos assumam a presidência da República. Todos os votos foram a favor quando entrou em cena o Ministro Dias Toffoli, com pedido de vista. Vai devolver o processo sabe-se lá quando.

Há outras formas de ludibriar os colegas e as partes.

Outra delas, similar ao pedido de vista,  é o uso da gaveta.

Anos atrás, o Ministro Ayres Britto iria apresentar seu relatório sobre o mensalão do PSDB. Tudo devidamente pautado, houve o intervalo da sessão para o café. Na volta, Ayres simplesmente não apresentou o relatório, nem lhe foi cobrado. Segurou por anos e anos o processo. Foi uma decisão neutra do ponto de vista processual? Evidentemente, não. Foi um esquecimento que beneficiou profundamente a parte condenada.

O que leva um Ministro a engavetar um processo?

Hipótese 1 – não quer entrar em dividida, devido à complexidade do problema.

Nesse caso, incorre no crime de prevaricação, que é quando o funcionário público retarda ou deixa de praticar ato de ofício, visando satisfazer seu interesse pessoal. No caso, o interesse de não se expor com as partes.

Hipótese 2 – excesso de trabalho na corte.

O meritíssimo terá que comprovar que a ação adiada era menos relevante do que aquelas que foram julgadas no período.

Hipótese 3 –  engaveta por razões pessoais, de benefícios ou de influência externa.

Trata-se de um caso de corrupção passiva, crime que só pode ser praticado por funcionário público, de acordo com o Código Penal.

Peça 4 – a gaveta de Carmen Lúcia

Ontem relatei o caso da ADIN sobre pipeline, o pedido da Procuradoria Geral da República para que caíssem as patentes pipeline – um tipo jurídico criado para reconhecer patentes não englobadas no acordo de patentes.

Havia dois grupos interessados. Em um deles, a poderosa Interfarma, representante dos laboratórios internacionais, que se apresentou como amicus curiae . Na outra, laboratórios nacionais, PGR, Procons.

Carmen Lúcia tinha acesso, assim, a todos os argumentos de todas as partes interessadas, em tema da mais alta relevância, porque envolvendo custo de medicamentos para milhões de brasileiros. Mas decidiu não decidir. Trancou a ADIN em sua gaveta, de onde não mais saiu.

Ao não decidir, ela decidiu em favor dos laboratórios multinacionais, contra o SUS – que paga muito mais caro pelos remédios patenteados – e laboratórios nacionais, prontos a produzir genéricos e contra milhões de consumidores que deixaram de ter acesso à redução de preços desses medicamentos.

Não cabe o argumento da insignificância. Pelo contrário, pelos valores envolvidos e pelos beneficiários potenciais – a população carente do país – deveria ser prioridade absoluta.

Seria devido à complexidade do tema? Um Ministro que teme a complexidade dos temas a serem julgados não está à altura do Supremo.

Seria por alguma razão extra-processo?

Seja qual for o motivo, a Ministra Carmen Lúcia certamente esclarecerá a razão de jamais ter levado o caso a julgamento, com a mesma presteza com que divulgou seu contracheque.

Peça 5 – os julgamentos de crimes de corrupção

O voto de Carmen Lúcia a favor do cumprimento da pena após condenação em segunda instância, mostra a preocupação com os processos – e, principalmente, com as punições. A ínclita Carmen Lúcia quer celeridade na punição.

Segundo o sóbrio site Jota, há dois episódios que não batem com as preocupações externadas pela Ministra (http://migre.me/vrVd7):

Caso 1 – Natan Donadon

Em outubro de 2010 Carmen Lúcia levou a plenário o julgamento da Ação Penal 396, que julgava o deputado Natan Donadon, condenado a 13 anos de reclusão. Era o primeiro caso de prisão de parlamentar sob a Constituição de 1988. A data da condenação foi 28 de outubro de 2010.

O acórdão só foi publicado seis meses depois. Nesse ínterim, Donadon continuou solto. A defesa de Donadon embargou a condenação. No entanto, Carmen Lúcia só liberou o recurso para julgamento  um ano depois da condenação. Logo em seguida, percebeu um erro qualquer e pediu a retirada do processo.

Segundo o Jota, “publicamente, a ministra deixou consignado que solicitou à Presidência do Supremo que desse prioridade ao julgamento. No entanto, em reservado a realidade era outra”. Foram tantos os pedidos de Carmen Lúcia, em particular,  para que o projeto fosse retirado de pauta, diz o Jota, que o então presidente do Supremo, Ministro Ayres Brito, exigiu que fizesse o pedido publicamente, diante da TV Justiça. Foi obrigada a faze-lo.

Só em junho de 2013 – três anos após a condenação – o processo chegou ao fim e a pena foi finalmente cumprida.

O que levou Carmen Lúcia a protelar de tal maneira o cumprimento da sentença de Donadon, a atuar nos bastidores para tirar o julgamento de pauta, enquanto fingia, de público, pretender prioridade para o julgamento?

Em qual das três hipóteses se enquadra esse movimento?

Caso 2 – Ivo Cassol

Ex-governador de Rondônia, em agosto de 2013 foi condenado a 4 anos de detenção. O processo foi relatado também por Carmen Lúcia. Cassol continuou solto devido à demora no julgamento do recurso. O acórdão só foi publicado 9 meses após o julgamento. E era um mero acórdão.

A defesa entrou com embargos, que foram rejeitados. Opôs novos embargos em dezembro de 2014. Segundo o Jota, “em várias oportunidades, no ano de 2015, jornalistas perguntaram à ministra quando ela levaria a julgamento os últimos recursos do Senador.”. E Carmen Lúcia deixava a pergunta sem resposta e o processo sem julgamento..

Somente em abril os recursos foram levados a plenário. Porém o julgamento foi interrompido por um pedido de vistas de… Dias Toffoli. Condenado por fraudar licitações, Cassol permanece livre e no exercício do mandato, diz o Jota.

Qual o seu compromisso efetivo com a transparência?

Peça 6 – a frasista Carmen Lúcia

Fica evidente que Carmen Lúcia está muito mais próxima do, digamos, estilo de um Gilmar Mendes e Dias Toffoli, do que de um Teori Zavascki ou Celso de Mello.

Durante o julgamento do impeachment de Dilma Rousseff, pelo menos uma vez Carmen Lúcia se viu ante uma representação contra o Ministro Gilmar Mendes. E refugou, demonstrando receio de entrar em área de alto risco.

Há um profundo desvio no sistema de Justiça, de só convalidar denúncias provenientes da velha mídia. Cria-se um desequilíbrio monumental, beneficiando grupos de interesse em temas políticas, empresariais ou penais. Caso tivesse manifestado o menor pendor de votar contra o impeachment de Dilma, esse conjunto de fatos, divulgado no Jornal Nacional, teria sido mais que suficiente para detonar Carmen Lúcia.

Como descrever suas contradições? Talvez recorrendo às suas próprias palavras.

“Na história recente da nossa pátria, houve um momento em que a maioria de nós, brasileiros, acreditou no mote segundo o qual uma esperança tinha vencido o medo. Depois (…) descobrimos que o cinismo tinha vencido aquela esperança. Agora parece se constatar que o escárnio venceu o cinismo.”

Mas, nesses tempos de redes sociais, de construção superficial de imagens, o que importa não é conferir a história, os trabalhos e decisões dos personagens. Bastam gestos populistas, de quem ambiciona o “curtir” do Facebook e a blindagem da mídia.

Independentemente de jogos de palavras, fique registrado: Carmen Lúcia é uma ministra com muitas vulnerabilidades. E como não se pode duvidar nem da mulher de César, muito menos de uma presidente do Supremo, deve explicações por esses e outros episódios controversos em sua carreira de Ministra do Supremo.

Caso contrário, todas as sentenças que proferir, decisões que tomar, lançarão dúvidas sobre suas reais motivações.

E o escárnio, definitivamente, vencerá o cinismo.

Foto: Juiz Paulo Tamburini/ CNJ (21/10/2016)

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