YouTube ganha dinheiro e desobedece às próprias regras com negacionismo climático

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Diretrizes que proíbem a monetização de vídeos que negam influência humana no aquecimento global existem desde outubro de 2021, mas desinformação paga se mantém

Por Laura ScofieldMatheus Santino, compartilhado de Agência Pública




Quem busca por “aquecimento global” na barra de pesquisa do YouTube recebe como retorno vídeos negacionistas e desinformativos sobre a mudança climática, mesmo que o tema já seja consenso entre cientistas da área e a própria plataforma já reconheça que as atividades humanas contribuem para o fenômeno. Dentre os responsáveis pelas fake news climáticas, destacam-se bolsonaristas e ruralistas, como revela uma investigação inédita da Agência Pública.

A reportagem simulou uma busca na plataforma por meio da ferramenta YouTube Data Tools e obteve dados diretamente do algoritmo de recomendação da rede. Dos 121 vídeos analisados, 37 apresentaram informações que contradizem o consenso científico sobre as mudanças climáticas potencializadas pela ação humana, o que representa 30,5% da amostra. Destes, ao menos 15 vídeos são monetizados, ou seja, geram dinheiro para seus publicadores e para o YouTube por meio da disseminação de mentiras sobre o clima. 

Boa parte do conteúdo que nega a existência do aquecimento global é respaldado pelos argumentos de dois cientistas, Ricardo Felício e Luiz Carlos Molion, que aparecem em 70% dos vídeos negacionistas da amostra. Os dois pesquisadores que contradizem a ciência já foram financiados pelo agronegócio brasileiro

De acordo com as próprias regras do YouTube, esses conteúdos não deveriam enriquecer seus produtores. Em 2020, a ONG Avaaz solicitou à plataforma que deixasse de recomendar conteúdos “tóxicos” e barrasse a monetização dos vídeos ligados ao negacionismo climático. Em outubro de 2021, a rede se comprometeu apenas com uma das reivindicações e proibiu a monetização de conteúdo e anúncios que “contradizem o consenso científico sobre a existência e as causas das mudanças climáticas”, o que inclui “material que se refere às alterações no clima como se fossem mentira ou um golpe, com afirmações negando que as tendências de longo prazo mostram um aumento na temperatura global, e dizendo que as emissões de gases do efeito estufa ou as atividades humanas não contribuem para esse cenário”. 

Mas os conteúdos persistem. Entre as contradições mais frequentes encontradas na busca estão a negação da influência humana ou a apresentação do tema como se ainda houvesse debate entre os cientistas sobre as causas do aquecimento global. É o caso do vídeo monetizado intitulado “O aquecimento global é uma farsa? E se for verdade?”, do canal Fatos Desconhecidos, que foi publicado em abril de 2017 e atualmente conta com mais de 320 mil visualizações. Nele, o apresentador traz argumentos dos “dois lados” para que o público chegue a uma conclusão sobre o “suposto aquecimento global”. O canal tem hoje mais de 18 milhões de inscritos.Vídeo com teor desinformativo conta com mais de 320 mil visualizações

“O YouTube está basicamente incentivando as pessoas a disseminarem desinformação”, avalia Joachim Allgaier, pesquisador e doutor em comunicação e sociedade digital na universidade alemã Hochschule Fulda. Em 2019, Allgaier estudou a prevalência do negacionismo climático no YouTube e identificou que “a maioria dos vídeos” analisados trazia “visões de mundo opostas ao consenso científico”, incluindo a negação do aquecimento global antropogênico e teorias de conspiração. 

Para o pesquisador, vídeos como o publicado pelo canal Fatos Desconhecidos criam uma “falsa equivalência”. “Geram a impressão de que a opinião de alguns cientistas minoritários é tão importante quanto a opinião de muitos, muitos e muitos milhares de cientistas especialistas no tema”, explicou à reportagem. Um estudo publicado em 2013 na Environmental Research Letter mostra que 97,1% dos artigos que abordaram a influência humana nas mudanças climáticas em 20 anos de produção científica garantiram que ela afeta o clima mundial. 

Outro conteúdo monetizado encontrado no levantamento é o vídeo “Como REFUTAR o aquecimento global antropogênico? PARA LEIGOS!”, do canal Ciência Sem Fronteiras – Thiago Maia Oficial, que soma 57 mil inscritos. Em suas redes sociais, Maia afirma ser embaixador da América do Sul da Clintel, organização internacional que defende que não existe emergência climática. O canal de Maia é o que mais aparece na amostra analisada pela Pública: o youtuber já publicou nove vídeos sobre o aquecimento global, todos negando a existência do fato científico. Ao menos quatro são monetizados. Somados, os nove conteúdos chegaram a mais de 217 mil visualizações, 22 mil curtidas e 1.435 comentários. De acordo com a ferramenta SocialBlade, o canal de Maia, que existe desde 2011, rende entre US$ 17 e US$ 269 por mês, o que na cotação atual do real (4,82) equivale a R$ 82 e R$ 1.299 por mês. O youtuber mantém ainda outros três canais sobre ciência na rede.

Com 290 mil visualizações, o vídeo “Ricardo Felício: Aquecimento global serve para mascarar os problemas da humanidade”, publicado pelo canal Pânico Jovem Pan em 23 de julho de 2019, também se destaca. Nele, o meteorologista critica o relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) por supostamente mostrar apenas “o pior” cenário “para ameaçar as pessoas”. Nos últimos anos, a Jovem Pan tem sido criticada pelo alinhamento ao bolsonarismo e pela disseminação de informações falsas sobre a pandemia de covid-19. A monetização do canal do Pânico gera entre US$ 5,2 mil e US$ 82,4 mil, o equivalente a R$ 25 mil e R$ 398 mil por mês.

Felicio  —  para quem a pandemia de covid-19, que já matou 656 mil brasileiros, é uma “fraudemia” — aparece em diversos vídeos negacionistas analisados pela reportagem, como alguns do canal de Maia. No início do governo de Jair Bolsonaro, ele chegou a ser cotado para o cargo de ministro do Meio AmbienteBoa parte do conteúdo que nega a existência do aquecimento global é respaldado pelos argumentos do cientista Ricardo Felício

Além de manter anúncios em conteúdos com mentiras sobre as mudanças climáticas, o algoritmo do YouTube parece não conseguir identificar nem mesmo quais vídeos abordam o tema. Dos 37 vídeos que propagam ideias negacionistas sobre o clima, apenas 15 apresentam o chamado “painel informativo com contexto do assunto”, uma medida aplicada pela rede desde 2018 para “temas propensos à desinformação”, de forma a apresentar ao usuário informações apuradas e contradizer mentiras que podem estar circulando na plataforma. No painel, a rede explica que “as mudanças climáticas são transformações a longo prazo nos padrões de temperatura e clima, principalmente causadas por atividades humanas, especialmente a queima de combustíveis fósseis”, e leva o público ao site da ONU. 

A plataforma aplica o painel em alguns conteúdos, mas não esclarece os critérios que utiliza na seleção. O vídeo “Ricardo Felício desmente farsa do aquecimento global I Identidade Geral”, que somou 140 mil visualizações pelo canal Revista Novo Tempo, é um dos que não apresentam o texto. Escrever “farsa do aquecimento global” no título não foi o suficiente para que o algoritmo da rede pudesse identificar o tom negacionista do conteúdo e alertar seus usuários. 

Por meio de sua assessoria de imprensa, o Youtube afirmou que “em geral, nossos sistemas não recomendam ou deixam em evidência conteúdo que apresente desinformações sobre mudanças climáticas” e que age “rapidamente” sobre conteúdos em desacordo com suas políticas. O Youtube também afirmou que exige que todos os canais monetizados cumpram suas regras. Leia a resposta na íntegra.Painel informativo do YouTube sobre mudanças climáticas, inserido em alguns vídeos analisados pela reportagem

Bolsonaristas e ruralistas tentam emplacar negacionismo climático no YouTube

“Climatologista contesta aquecimento global e inocenta a boiada” é o título de um dos vídeos negacionistas que circulam no YouTube desde 3 de dezembro de 2015, data de sua publicação. Disponível no canal DBO Play, focado em “negócios da agropecuária”, o conteúdo passou de 23 mil visualizações e 1.600 curtidas, além de ter recebido 119 comentários. 

Durante 14 minutos, o jornalista Richard Jakubaszko entrevista Ricardo Felício, que repete o discurso desmentido pela ciência e sugere que os pecuaristas e agricultores “reajam contra a religião ambientalista, fazendo lobby da mesma maneira que os adeptos do clima”. Para ele, a intenção dos ambientalistas é “minar é o agronegócio” para “minar toda a economia do país”. Seu entrevistador, o jornalista Jakubaszko, é um dos autores do livro ‪CO2‬, aquecimento e ‪mudanças climáticas‬: estão nos enganando?, publicado pela editora DBO. De acordo com o ranking da Amazon, a obra ocupa o 41º lugar de cem entre os livros mais vendidos da lista de “direitos ambientais e de recursos naturais profissional e técnico”.

Além deste, existem outros conteúdos na amostra analisada pela Pública nos quais representantes do agronegócio defendem o discurso contrário à ciência. No canal AgroPapo, que tem mais de 2 mil inscritos, o vídeo “Aquecimento global é uma mentira, assegura jornalista-escritor” segue a mesma linha, mas inverte os papéis: traz Jakubaszko como entrevistado. Após a publicação da reportagem, o canal respondeu que a entrevista foi feita “sem tomar partido” e que o AgroPapo se guia pelo que o “IPCC defende” sobre o tema.

De acordo com Meghie Rodrigues, doutoranda no Departamento de Política Científica e Tecnológica da Unicamp, onde pesquisa o negacionismo climático no YouTube, a defesa do negacionismo climático no Brasil é feita com mais intensidade pelo agronegócio, mesmo que isso coloque em risco a própria existência do setor, e independe de quem esteja no poder. “Não é uma coisa só desse governo, em todos os governos da democracia recente. O agronegócio é uma força política expressiva da democracia brasileira”, explica. 

Mesmo que a situação se estenda para além do bolsonarismo, o levantamento da reportagem mostra que os defensores do atual presidente — que já chamou a discussão sobre o tema de “jogo comercial” e mentiu sobre o desmatamento da Amazôniaimportante para a regulação do clima global, em discurso na Assembleia Geral da ONU — também aparecem com frequência negando a ciência. Assim como Jakubaszko, representantes do agronegócio defendem o discurso contrário à ciência em vídeos no YouTube

Para Bernhard Rieder, pesquisador da Universidade de Amsterdã e criador do YouTube Data Tools, ferramenta que extrai e colhe dados diretamente do código da plataforma, isso não surpreende, já que a rede se destaca por “encontrar um público para atores que, tradicionalmente, têm dificuldades de encontrar um público, como a extrema direita”. Dessa forma, “o YouTube é muito atrativo e essas pessoas vão investir muito tempo nesta plataforma para se comunicar com o público e para ganhar dinheiro. Por isso há muitas incitações para fazer vídeos com esse conteúdo na plataforma”. 

É o caso de Flávio Morgenstern, criador do podcast Guten Morgen e do site Senso Incomum, citado pela CPI da Pandemia como propagador de desinformação sobre a covid-19. No episódio 39 do podcast, também disponível no YouTube e recomendado pela rede a quem busca sobre aquecimento global, Morgenstern afirma que não acredita no fenômeno e que não existe consenso científico, o que é mentira. “Vários estudos que tentaram provar o aquecimento global e não conseguiram, ao contrário do que você vai ver na grande mídia.” 

A conexão da extrema direita com o negacionismo climático se repete mundialmente, apontou Allgaier, que encontrou a mesma ligação em seus estudos sobre o tema na Alemanha. A narrativa, entretanto, varia: “Não existe apenas uma história, eles [os negacionistas] se utilizam de mensagens bem específicas para atingir a audiência. Do ponto de vista da comunicação estratégica, eles estão fazendo um ótimo trabalho, porque estão chegando a muitas pessoas com sucesso. As pessoas assistem aos vídeos e conhecem seus argumentos. Porém, do ponto de vista da ciência, é um desastre, é muito ruim”, avalia. 

Canais de órgãos públicos disseminam mentiras sobre o clima

No YouTube, a contestação do consenso científico acerca da influência humana na intensificação do aquecimento global não está somente em canais de influenciadores de extrema direita ou pesquisadores abertamente negacionistas. Três dos vídeos que tratam da questão como se ainda fosse um tema em debate — o que é falso —  são do Senado Federal, cujo canal não é monetizado. Os conteúdos figuram também entre as indicações da plataforma para quem quer saber mais sobre o tema. 

O vídeo “Aquecimento global não é causado por ação do homem, defendem debatedores no Senado” foi publicado pela TV Senado, órgão oficial de comunicação da casa, em 29 de maio de 2021. Trata-se de um resumo das discussões de um evento promovido pelas Comissões de Relações Exteriores (CRE) e de Meio Ambiente (CMA) no primeiro ano de governo do presidente Jair Bolsonaro (PL). “Nesta terça-feira (28), os convidados declararam não acreditar no aquecimento global. Para eles, isso é um movimento para impedir o crescimento de países em desenvolvimento”, resume a TV Senado na descrição. O YouTube não fez nenhum alerta, já que o vídeo não apresenta o painel informativo de contexto. 

Com quatro minutos e meio, o vídeo começa com uma narração do locutor: “Os cientistas apontam o aquecimento global como o vilão para o que pode vir pela frente. Quem já não ouviu falar do efeito estufa, [que quanto] maior a quantidade de dióxido de carbono na atmosfera, mais quente [se torna] o nosso planeta. Será?”. O repórter então reproduz a opinião dos especialistas convidados, que afirmam que não há comprovação de que a ação humana aquece a Terra. O conteúdo negacionista respaldado pelo Senado chegou a 7.415 visualizações, 299 curtidas e 30 comentários. Canal da TV Senado e TV Brasil colaboram para a disseminação do negacionismo climático

Além de Ricardo Felício, participou da audiência Luiz Carlos Molion, professor associado aposentado do Departamento de Meteorologia da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), que defende as mesmas ideias negacionistas. De acordo com o site do Senado, os especialistas foram convocados pelo senador Márcio Bittar (MDB-AC), que afirmou ao programa de rádio da emissora que a crença de que as ações do homem provocam o aquecimento global não foi comprovada cientificamente e tem um viés ideológico. 

O vídeo “Especialistas divergem sobre causas do aquecimento global”, publicado pelo mesmo canal e também com cenas do evento, segue uma linha parecida. Os dois são apenas um recorte de outro maior, de nome “CRE/CMA – Mudanças climáticas e aquecimento global – TV Senado ao vivo – 28/05/2019”, que foi transmitido ao vivo durante o evento e também se encontra disponível. O conteúdo de três horas de duração obteve ainda mais visualizações: 38.305. A íntegra do debate foi curtida 1.500 vezes e chegou a 126 comentários. 

A pesquisadora Meghie Rodrigues argumenta que, quando pesquisadores como Felício e Molion ganham esse tipo de espaço, “parece que [as ideias que defendem] são parte do debate científico, parte do que a comunidade científica está falando, mas na verdade não é, porque é uma parcela mínima e residual”. “Dar palco para esse tipo de discurso faz parecer que ele é maior do que ele é, mas na verdade eles estão ali servindo claramente interesses de pessoas que querem ouvir aquilo que eles falam, que os levam lá pra poder dar uma roupagem de legitimidade a um debate que não é legítimo”, afirma.

Além da TV Senado, a TV Brasil, também financiada com dinheiro público, mantém em seu perfil uma série de três vídeos que propagam informações que se chocam com o consenso científico e criam a sensação de que existe um debate sobre o aquecimento global e suas causas. Assim como o da TV Senado, o canal não é monetizado. Publicados em março de 2010, cada um dos vídeos tem cerca de 10 minutos e faz parte da entrevista do programa 3a1, com o pesquisador Luiz Carlos Molion, que defende suas ideias negacionistas sobre as mudanças climáticas. Juntos, os conteúdos somam mais de 142 mil visualizações, 5.291 curtidas e 201 comentários. 

Em junho de 2017, a entrevista foi republicada pelo canal monetizado do ex-bolsonarista Nando Moura, quando este ainda apoiava o presidente. No vídeo que alcançou mais de 283 mil visualizações, 29.071 curtidas e 543 comentários, Moura afirma que as mudanças climáticas são uma invenção: “É impossível acreditar nisso quando você vê os dados”. Depois, o músico indicou a entrevista do Molion para a TV Brasil como conteúdo para “estudar e acreditar nesse tema”. 

Os vídeos publicados diretamente pela TV Brasil e pela TV Senado não apresentam o painel informativo com contexto sobre o tema, o que, para Meghie Rodrigues, representa mais um problema. “É importante ter mecanismos que regulem, que alertem e que pelo menos sinalizem às pessoas que aquele conteúdo está errado, que aquilo é um negócio que não é científico”, diz a pesquisadora.

Em retorno, a Empresa Brasil de Comunicação (EBC), que responde pela TV Brasil, afirmou que os vídeos “têm mais de 12 anos” e que “o programa em questão não integra a grade da TV Brasil desde 2014”. Já a assessoria do Senado afirmou que “a TV Senado tem entre suas obrigações gravar e transmitir as sessões plenárias e as reuniões das comissões do Senado Federal sem edição”, além de realizar “a cobertura jornalística dos eventos legislativos”. 

O Senado afirmou também que “o tema ‘Mudanças Climáticas’ vem sendo amplamente debatido” e que “nenhum veículo de comunicação do Senado propaga desinformação”. “Observamos que o Senado Federal tem compromisso com o combate às chamadas fake news. Nesse sentido, realiza campanhas de divulgação e orientação em todos os seus veículos de comunicação e nas redes sociais; e mantém o serviço ‘Senado Verifica: Fato ou Fake?’.”

Dois cientistas estão em 70% dos vídeos mentirosos 

Em 2018, quando saiu a notícia de que Bolsonaro estaria pensando no negacionista Ricardo Felício para a cadeira do Ministério do Meio Ambiente, alguns apoiadores do presidente se animaram. Luiz Camargo, que mantém um canal de extrema direita no YouTube com mais de meio milhão de inscritos, é um deles.

“Bolsonaro está cogitando ninguém menos que o Ricardo Felício, o climatologista professor da USP que foi pioneiro no Brasil em nos revelar todas as falácias dos movimentos ambientalistas na grande mídia”, afirmou, em 7 de dezembro de 2018, em vídeo com mais de 122 mil visualizações. De acordo com Camargo, “existe o lado dos aquecimentistas e os que negam o aquecimento”, e ele se encaixa no segundo, porque acredita que “a ação do homem pode causar uma alteração local do clima, e não global como os aquecimentistas tentam nos enfiar goela abaixo”. Para ele, os estudos científicos se resumem a “previsões alarmistas” para gerar medo. 

“Mesmo que o escolhido não seja Ricardo Felício, tenho certeza que terá pensamento semelhante. De repente pode ser o professor Luiz Carlos Molion, quem sabe, seria ótimo também”, aventou em previsões que nunca se concretizaram. Ainda assim, os nomes são relevantes no cenário do negacionismo: mesmo que não ocupem o ministério, os dois pesquisadores respaldam boa parte da desinformação climática no Brasil. Juntos, aparecem em ao menos 26 dos 37 vídeos mapeados pela reportagem.O professor Ricardo Felício (à esquerda) e o professor Luiz Molion (à direita) durante audiência pública da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional (CRE) de Meio Ambiente (CMA), em 2019, sobre mudanças climáticas

Os dois professores são próximos de parte do agronegócio brasileiro. Em 2021, reportagem da BBC News Brasil mostrou que eles participaram de diversos eventos e palestras financiados pela Aprosoja Mato Grosso, a principal associação de produtores de soja e milho do estado. Nos eventos, negavam a influência do homem nas mudanças climáticas para plateias formadas por estudantes de agronomia, fazendeiros e produtores rurais. 

Allgaier explica que os negacionistas climáticos não são os primeiros cientistas a emprestar sua credibilidade para negar o consenso de seus pares. O mesmo teria acontecido quando a ciência descobriu que o cigarro causa câncer — e as empresas de tabaco contrataram pesquisadores que negassem os fatos. “Eles ganham dinheiro, e basicamente sua única função é usar seu título e background para basicamente destruir o consenso em qualquer tema, como mudanças climáticas”, afirmou o pesquisador.

Ricardo Felício se apoia em sua graduação e mestrado na área de meteorologia e ciências atmosféricas e no doutorado em geografia pela Universidade de São Paulo (USP) para dar credibilidade às suas afirmações. Ele é professor de climatologia na universidade, onde, segundo relatos de alunos, não deu aulas desde o início da pandemia e continuou recebendo salário. Em 2018, Felício foi candidato a deputado federal pelo PSL, ex-partido do presidente Jair Bolsonaro, mas não foi eleito, tendo apenas 11 mil votos. Quando ainda era pré-candidato, colocava entre suas propostas a retirada da “abordagem ideológica” na educação ambiental do ensino superior do país. 

Já Luiz Molion se apoia em seu PhD em meteorologia na Universidade de Wisconsin e na alcunha de professor aposentado da Ufal. Molion também tem relação próxima ao canal Notícias Agrícolas – Oficial, que traz atualizações e conteúdos sobre o “mundo agro”. Nos vídeos, o professor aparece dando previsões de clima e tempo, levando em consideração os períodos de colheita. Em um dos vídeos, ele contesta o relatório de 2021 do IPCC e classifica o documento como “terrorismo climático”.

Questionado pela reportagem, Molion respondeu que trabalha como consultor para o Notícias Agrícolas. Segundo o professor, que negou ser financiado pelo agronegócio, “o CO2 é o gás da vida” e sua maior concentração na atmosfera aumenta a “produtividade vegetal”. 

Quatro meses depois do anúncio das novas políticas do Youtube sobre mudanças climáticas, em de fevereiro de 2022, Felício parou de publicar em seu canal no YouTube Ricardo Felício – Oficial, onde tem 161 mil inscritos, afirmando que a plataforma encerrou as atividades com os membros do canal e tirou sua monetização. Felício acusou o site de censura e convidou seus seguidores a se inscreverem em um novo canal no Youtube, o RF Brasil – Embaixada do Reino, onde já uniu mais de 11 mil interessados a acompanhar suas atividades enquanto busca por uma nova plataforma. 

A migração para redes com menos monitoramento é comum entre aqueles retirados de plataformas tradicionais. Uma das alternativas do pesquisador é a canadense Rumble, que já conta com quase 3 mil inscritos. A Rumble é conhecida por abrigar criadores de conteúdo que acusam o YouTube de censura e figuras da extrema direita. Após afirmar que a existência de um partido nazista deveria ser tolerada no Brasil, o influenciador Monark, criador do Flow Podcast, comemorou a chegada da Rumble no país, como uma “plataforma que respeita a liberdade de expressão e não vai censurar ninguém”, sinalizando ser seu novo destino.

Pública também entrou em contato com Felício e outros canais citados pela reportagem, mas não recebeu nenhum retorno.

Especialistas criticam a aplicação das políticas do YouTube

Para Joachim Allgaier, as diretrizes do YouTube sobre mudanças climáticas não são suficientes para classificar os conteúdos que contêm informações enganosas sobre o tema. “O que eu aprendi lendo sobre o assunto é que, para a plataforma, desinformação sobre mudanças climáticas é basicamente se você falar que o aquecimento global é uma farsa e não está acontecendo. Porém, eles [os negacionistas] usam estratégias diferentes para diminuir a credibilidade dos cientistas climáticos, como dizer que eles são corruptos e outras coisas. Isso não vai ser considerado desinformação climática do ponto de vista do YouTube e ainda vai poder ser monetizado.” 

Ao anunciar suas políticas em outubro de 2021, a rede explicou que examinaria “cuidadosamente o contexto em que as reivindicações são feitas, diferenciando entre o conteúdo que faz uma afirmação falsa como fato e o conteúdo que relata ou discute essa afirmação”, mas não deu mais informações acerca dos critérios utilizados para a análise nem divulgou dados sobre o que já foi feito. 

O levantamento da Pública indicou que nem mesmo em vídeos com títulos negacionistas a rede aplica suas políticas. Alguns dos conteúdos monetizados encontrados pela reportagem afirmam em seus títulos que o aquecimento global é uma “farsa” ou “mito geopolítico”, além de adjetivar o discurso ambientalista como “histérico”, “catastrófico” ou afirmar que sua única intenção é “provocar medo”.  Ainda assim, geram dinheiro para os canais e a plataforma. 

Allgaier considera que a falta de transparência também representa um problema. “Não existe transparência sobre o que está realmente acontecendo no YouTube e como o algoritmo funciona. É uma fórmula secreta”, explica. “Mais do que desmonetizar, o YouTube precisa ser transparente quanto aos algoritmos de recomendação e precisa revisar a forma como esse algoritmo funciona, o que é basicamente reformar toda a forma como a rede funciona”, concorda Meghie Rodrigues. “A desinformação caminha em uma velocidade muito mais rápida do que as ações que são feitas para conter o espalhamento dela”, aponta ela.

Rieder, entretanto, acha difícil que a rede mexa no seu lucro: “Hoje há uma grande audiência que quer ver esse tipo de conteúdo [negacionismo climático] no YouTube, e, se há pessoas que vão procurar esses vídeos, é difícil imaginar que o YouTube vai mudar completamente a lógica da recomendação numa direção de sugerir vídeos pouco populares”. 

O pesquisador evidencia também a diferença na aplicação das diretrizes da plataforma nos diferentes países do mundo. “Línguas como o português são línguas importantes [para a rede], mas acho que o foco comercial do YouTube fica sempre, principalmente, nos Estados Unidos”, onde também existem “muitos vídeos que conseguem passar por esses filtros”.

Metodologia

Para colher as informações que baseiam esta reportagem, foi usada a ferramenta YouTube Data Tools, criada pela Iniciativa de Métodos Digitais da Universidade de Amsterdã, que extrai dados diretamente da plataforma. A reportagem buscou por “aquecimento global” no módulo Video Network para obter acesso aos vídeos diretamente relacionados a essa busca em português, publicados no Brasil, e em profundidade 1. O resultado foi uma planilha com 1.622 entradas. Para obter amostra analisável, a reportagem selecionou todos os vídeos em que o termo “aquecimento global” aparecia no título, o que gerou uma amostra de 121 vídeos, que foram organizados de acordo com o número de visualizações. 

Nos vídeos analisados estão presentes os 50 vídeos que compõem a resposta inicial da plataforma à busca pelo termo, ou seja, os 50 se referem às indicações da rede a partir da busca na barra de pesquisa. Os outros 71 vídeos foram colhidos pela ferramenta utilizada a partir das recomendações da API do YouTube em associação sucessiva aos 50 primeiros. O YouTube possui vários mecanismos para fazer suas recomendações; nesse caso, se trata dos vídeos conectados pela plataforma como relacionados. 

Pública analisou o conteúdo dos vídeos e classificou-os segundo seu alinhamento com o consenso científico sobre o aquecimento global, de acordo com o sexto relatório de avaliação do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC). Além de vídeos que negam o aquecimento global, foram considerados como contrários ao consenso oficial vídeos que simulassem a existência de um debate na comunidade científica sobre a possibilidade do ser humano afetar o clima, já que esse fato já é consensual entre os cientistas da área. A reportagem classificou os conteúdos entre monetizados e não monetizados e identificou se os vídeos foram oficialmente apontados pelo YouTube como sobre mudanças climáticas a partir da existência ou não do painel de contexto.

As buscas foram feitas na aba anônima em 10 de março de 2022, em IP localizado em Brasília, no Distrito Federal. Como o YouTube utiliza também parâmetros como data e localidade para recomendar vídeos, os resultados representam com mais especificidade as recomendações para usuários que estivessem naquela data e localidade. A aba anônima foi utilizada para diminuir o grau de personalização dos resultados. 

A reportagem “YouTube de Bolsonaro leva a canais investigados no STF por desinformação e atos antidemocráticos”, publicada pela Pública em janeiro de 2021, utilizou metodologia semelhante. 

Ilustração de Amanda Miranda/Agência Pública

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