Youtubers policiais ganham fama e dinheiro ao expor histórias de perseguições, mortes e violência na plataforma.
Por Débora Lopes, compartilhado de The Intercept
“CANCELAMOS 10 CPFS nessa operação no Morumbi”. É esse o título de um vídeo no YouTube que mostra um policial civil muito à vontade sendo entrevistado por um sujeito empolgado, que fala alto e ri. “[Foram] 10 para o saco”, comenta com naturalidade Marcio Kenji, conhecido como “Japa do Garra”, o Grupo Armado de Repressão a Roubos, departamento da Polícia Civil de São Paulo.
No vídeo, visto 113 mil vezes, Kenji se refere à história que ficou conhecida como “Os 10 mortos do Morumbi“, em 2017, quando a polícia alvejou suspeitos de cometerem assaltos na região. Nenhum policial se feriu na ação. O conteúdo é precedido por anúncios, o que significa que o YouTube recebe dinheiro pelos cliques e, se o canal for monetizado, o dinheiro é dividido com o influenciador.
Com quase 70 mil seguidores no Instagram, Kenji foi a estrela do podcast Snider Cast, apresentado pelo influenciador Danilo Snider. O programa, disponível no Spotify, também é transmitido no YouTube, rede em que tem um canal com mais de 1 milhão de seguidores. “Aqui, falamos de tudo de um jeito mais descontraído e divertido”, diz sua descrição. No canal, Snider comenta ações da polícia, entrevista delegados, peritos, agentes e outros atores envolvidos na segurança pública.
Um dos vídeos mais vistos, com mais de 2 milhões de visualizações, é a entrevista com o sargento Cavalcanti, da Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar, a Rota, departamento da Polícia Militar de São Paulo. Na conversa, também precedida por anúncios publicitários, ele se gaba de, certa vez, ter enquadrado Mano Brown, dos Racionais MC’s. “Ele tinha um revólver calibre 38, seis polegadas, niquelado”.
Em outro vídeo no canal de Snider, intitulado “Qual dos dois matou mais?”, um sargento e um soldado se autopromovem com o número de pessoas que “derrubaram” em ação. O vídeo também exibe anúncios no YouTube. Perguntamos ao Google se os canais são monetizados – ou seja, se os criadores recebem parte do dinheiro da publicidade –, mas a empresa não fornece essa informação. Se não cumprirem os requisitos do chamado Programa de Parcerias do YouTube, só o Google lucra com o conteúdo.
Pinga-sangue 2.0
O programa de Snider surfa uma onda em ascensão: a cena policial dentro do YouTube. Hoje, no Brasil, há pelo menos 75 canais com mais de mil seguidores mantidos por agentes das forças policiais do país, entre Exército, Polícia Militar, Civil e Federal. Neles, os vídeos mostram de tudo: de perseguições a criminosos com trilha sonora engraçadinha até ocorrência para apartar briga de casal.
É a nova versão dos programas pinga-sangue, aqueles que educaram o brasileiro para ter ódio ao bandido. Desta vez, turbinados pelos algoritmos do YouTube – apesar de os termos de uso da rede social não permitirem “conteúdo violento ou explícito com o objetivo de chocar ou causar repulsa nos espectadores”. Em tese, a política da plataforma também não permite conteúdo que incite a violência ou que promova ódio contra indivíduos ou grupos com base em classe social ou etnia, mas os programas policiais conseguem se esquivar das regras.
Em um vídeo intitulado “Aborda ou não aborda?”, o policial civil de Santa Catarina Kauam Pagliarini propõe uma brincadeira: pela foto, pergunta se o policial abordaria ou não a pessoa. Ao receber o sargento Nantes, outro policial-celebridade da Polícia Militar de São Paulo que troca elogios com Eduardo Bolsonaro, o avaliado é Mano Brown. Nantes disse que não abordaria o líder dos Racionais porque ele é “tranquilo”. Em outro vídeo, o policial catarinense pergunta ao Sargento Galesco, da PMESP, e também celebridade no Instagram, se ele abordaria o funkeiro MC Kevinho. “Abordaria por causa do olho dele”, responde.
Pagliarini tem mais de 200 mil seguidores em seu canal, em que intercala dicas para passar em concursos, para prática policial e entrevistas com agentes de segurança, em que rolam os momentos mais “descontraídos”. Todos os seus vídeos também são precedidos por anúncios.
O fenômeno preocupa especialistas. “A atividade policial é uma atividade pública, e os youtubers acabam se apropriando dela para fazer propaganda, monetizar e ter lucros privados”, me disse Renato Sérgio de Lima, diretor-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Para ele, regular o que os policiais fazem nas redes sociais ainda é um problema. “Muitas vezes, temos uma legislação estadual, e nem todos os estados atualizaram seus regulamentos disciplinares para dizer o que pode e o que não pode”.
O ex-PM Gabriel Monteiro e o Delegado Da Cunha são os maiores expoentes do fenômeno no Brasil. A estimativa é de que, juntos, possam faturar até 366 mil dólares por mês (o equivalente a mais R$ 2 milhões de reais) em anúncios na plataforma. Perfis como os deles inspiram o surgimento de novos canais com conteúdos similares e muito racismo, desumanização e banalização da violência – e a possibilidade de seguir, depois, uma carreira política.
Do YouTube para o Legislativo e o Executivo
O bolsonarismo serviu como um trampolim para as forças policiais se tornarem também forças políticas. As eleições de 2020, por exemplo, tiveram o dobro de candidatos policiais civis, militares e membros das Forças Armadas quando comparadas às eleições de 2016.
O maior expoente desse fenômeno é o ex-MBL Gabriel Monteiro. Apesar de não ter durado nem quatro anos na Polícia Militar do Rio de Janeiro – entre punições e a própria expulsão da corporação –, ele foi o terceiro vereador mais votado do Rio de Janeiro em 2020. O seu canal é uma máquina: são mais de 5 milhões de inscritos. Se considerarmos todo o ecossistema de extrema direita, Monteiro é dono do maior canal do Brasil em número de seguidores.
O salário de soldado da PM deu lugar aos R$ 18.991,68 recebidos como vereador do Rio de Janeiro pelo PSD – um upgrade financeiro que não chega nem perto do que o vereador pode faturar pelo YouTube. A plataforma mantém em sigilo o quanto seus criadores ganham ao monetizar os vídeos, mas, segundo uma estimativa feita pelo Intercept com o Social Blade, ferramenta usada para calcular a monetização de canais, o ex-soldado da PM pode faturar até 231 mil dólares por mês – o que, em reais, corresponde a mais de R$ 1,2 milhão.
A cada semana, Gabriel Monteiro arma um novo circo para transformar em conteúdo e publicar em seu canal. Um dos mais recentes foi a “fiscalização” que realizou no Instituto Municipal Philippe Pinel, hospital psiquiátrico no bairro de Botafogo, zona sul do Rio de Janeiro. Na ocasião, ele disse ter recebido denúncias anônimas que o levaram até o local para inspecionar folhas de ponto irregulares e contestar a administração. Em menos de 10 dias, o vídeo alcançou mais de meio milhão de visualizações.
O Pinel, por sua vez, soltou uma nota de repúdio afirmando que a visita do vereador foi “uma verdadeira intimidação e constrangimento de servidores em exercício de suas funções”. Um trecho do texto atenta para um detalhe: “o vereador estava portando uma pistola em sua cintura, escondida por baixo de sua roupa”.
Em outra de suas “fiscalizações” publicadas no YouTube, Monteiro chegou a dar voz de prisão a uma médica que dormia em uma sala de atendimento dizendo que ela estava omitindo socorro, já que havia uma fila de pessoas para serem atendidas. A profissional foi conduzida até uma delegacia e liberada após um registro de ocorrência. O Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro, o Cremerj, denunciou o vereador por abuso de autoridade. Ele também é alvo de seis investigações do Conselho de Ética da Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro.
O discurso populista agrada muita gente. Quando adentra as favelas do Rio, Monteiro é abordado por jovens e crianças que se dizem seus fãs. Mas, na internet, o que faz sucesso mesmo são seus arroubos, como no vídeo em que dá um soco em um jovem estudante de direito do Morro do Adeus. “Reagi, tive que usar a legítima defesa”, afirma o título do vídeo, que contabiliza mais de 5 milhões de visualizações.
‘Matar assim é fácil’
A prisão de um integrante do Primeiro Comando da Capital, o PCC, maior facção criminosa do país, virou um hit no canal do YouTube do delegado Carlos Alberto da Cunha. Ele transformou a captura do homem em três vídeos que somam quase 30 milhões de visualizações. “A equipe está bem no veneno para pegar ele, que só mata gente amarrada. Matar assim é fácil”, diz, enquanto é filmado dentro do carro.
Criado em 2013, o canal do policial civil de São Paulo tem mais de 3,5 milhões de seguidores. Segundo as estimativas do Social Blade, ele pode ter faturado até 481 mil dólares em um ano – o equivalente a R$ 2,6 milhões.
Contrariando a lei, que considera improbidade administrativa obter qualquer tipo de vantagem patrimonial indevida em razão do exercício de cargo, mandato, função, emprego ou atividade pública, Da Cunha já fez até mesmo propaganda da empresa de segurança privada da qual é sócio – com direito a distintivo no peito e uniforme. Em agosto deste ano, o Ministério Público de São Paulo abriu um inquérito civil para apurar o caso, exigindo que o delegado apresente declaração de bens, contracheques e quaisquer outras verbas dos últimos cinco anos.
Mas, para Da Cunha, o cargo de policial já não é o bastante. Recentemente, ele disse em uma live que existem “ratos” na polícia e acabou afastado das ruas, obrigado a devolver suas armas, algemas e distintivos. Seguindo a cartilha dos policiais-influenciadores, ele entrou para a política: anunciou filiação ao MDB e falou sobre se candidatar a governador de São Paulo.
Questionado sobre o conteúdo violento publicado por muitos policiais, o YouTube informou que conta com “uma combinação de sistemas inteligentes, revisores humanos e denúncias de usuários para identificar material suspeito”. Mas desconversou quando perguntamos por qual motivo canais como os de Gabriel Monteiro e Delegado da Cunha seguem tendo espaço na plataforma. “A segurança dos criadores, espectadores e parceiros é nossa prioridade. Por isso, todos os usuários do YouTube precisam seguir nossas políticas de comunidade”, a empresa se limitou a dizer.