Ziraldo

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E a coluna “A César o que é de Cícero”, do doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista, homenageia aquele que se foi em 06 de abril para ficar sempre em nossas memórias: Ziraldo. Este grande artista gráfico, jornalista e ativista pela leitura que sentenciou: “O importante é motivar a criança para a leitura, para a aventura de ler”. Que esta aventura seja eterna, como já é Ziraldo.

Aliás, fomos procurar o significado deste nome tão singular que se tornou “plural” para nós: “Ziraldo é um nome que transmite determinação, liderança e força de caráter”. Está explicado




Ziraldo, senhores e senhoras:

“Rio de Janeiro, 7 de abril de 2024.

A partida de Ziraldo (1932-2024) foi sentida por mim como a morte de alguém próximo, conhecido. Como é de praxe em tais situações, tal perda me proporcionou espaço para a reflexão da minha própria vida.


Lembrei-me de que no ensino fundamental fui um aluno maluquinho e que muitas vezes meu próprio talento passou despercebido – a não ser pelas professoras de Artes. Se tivessem me dado mais trela eu poderia ter sido um aluno maluquinho muito melhor.


Na minha casa havia livros. Não era lá a Biblioteca Nacional, mas livros nós tínhamos. Romances como “O lobo da estepe”, “Sidarta”, “Ensina-me a viver”; fascículos de “Medicina e Saúde”, o da capa verde; uma coleção tipo enciclopédia Barsa, que era o Google da época. Em meio a tais tesouros da juventude, havia um exemplar de “O menino maluquinho”, protegido da poeira por ficar trancado na estante. Eu o encontrei e o li por minha conta, não foi meu pai nem minha mãe que pegou o livro e me deu como sugestão ou imposição de leitura. Que livro, senhoras e senhores!


Não sei onde li tal informação, por isso não posso citar corretamente, mas vamos lá, irei me arriscar, apesar de recear imprecisões: alguém me disse algo com o que concordo: “O menino maluquinho” é um livro que salta o final. O menino simplesmente cresce, de um momento para o outro, de uma página para outra, mais ou menos como se passa da infância para a vida adulta, num salto de tigre, belo violento imperceptível preciso. O narrador do livro talvez seja este menino grande que consegue olhar para trás e perceber o quanto foi feliz.


Quanto ao ensinamento do livro, eu pensei agora: eu acho que a gente tem mais é que proporcionar esta gaveta de memórias para as nossas crianças; e, se você for da área, para os nossos alunos. Para que eles possam olhar para trás e, crescidos de coração, chegar à mesma conclusão a que chegou o menino maluquinho.


Durante a minha pesquisa de doutorado, eu acabei tendo que ler sobre o “Pasquim”, porque era o jornal onde o letrista e escritor Aldir Blanc (meu objeto de estudo) publicou suas crônicas durante um bom tempo, o que rendeu dois livrinhos de crônicas sobre o bairro de Vila Isabel onde passou a infância e outras mumunhas. Aliás, Aldir Blanc, que faleceu de Covid no início da pandemia, escreveu os seguintes versos em “Sonho de caramujo”, feita em parceria com João Bosco, o seu grande parceiro:
“Neguinho me vendo em Quixeramobim E eu andando de elefante em Bombaim”

É uma canção sobre o poder de evasão da literatura, escrita por alguém que teve uma infância exuberante na casa dos avós maternos em Vila Isabel, mas também marcada pela depressão pós-parto da mãe e pelo distanciamento do pai.

Mas Ziraldo eu já conhecia antes do Pasquim. Porque o Ziraldo estava em todas: suas historinhas ilustravam capas de caderno, livros como “O chapeuzinho amarelo”, de Chico Buarque, cartazes como o “Fumar é patético!”, que até hoje mexe comigo.


De fato, com a maior das justiças, Ziraldo é um traço incontornável. Ele é grande, altamente reconhecível em suma. Inclusive sua figura: sua pele morena, seus cabelos brancos, suas sobrancelhas enormes e eriçadas, seus indefectíveis coletes.


Eu já não era tão garoto assim qaundo fui ver no cinema o filme do “Menino Maluquinho”. E devo ter chorado horrores, uma vez que o cinema é o local onde eu deposito minhas lágrimas.
A cena de que me lembro do filme, contudo, tem viés cômico: é a do campeonato de pum entre o menino maluquinho e seus amigos. Será que vale o verso? Bora ver:

Vou peidar no cobertor
Pra sentir mais o seu calor…

Agora, do ponto de vista da ilustração, do diálogo entre imagem, cor e palavra, “Flicts” é imbatível. Se gente do ramo passar incólume por um livro assim, é sinal de que a nossa situação está realmente muito difícil. Não pode faltar sensibilidade nas pessoas que lidam com educação. Nem, é bom lembrar, transbundar sensibilidade. Não adianta muito ficar chorando ao ver o por-do-sol. Enfim, não romantizo a minha precariedade.


“Flicts” é um tipo de livro que nos levanta a pergunta: “Por que eu não pensei nisso antes?” Finda a leitura, se você for do ramo da educação, fica difícil não se perguntar com tantos alunos “Flicts” você já topou e que por um motivo ou por outro não pode lhes dar a atenção devida – logo você que é tão azul.

O Flicts, enquanto cor e enquanto ser, representa muitíssimo bem o que antigamente se chamava de os enjeitados. E, dando spoiler, a lua, a majestosa, tem exatamente a mesma cor que a do Flicts. E desconfio que em alguns poetas a pele e o que há por debaixo da pele também tenha a mesma tonalidade Flicts, pois afinal não é dito que poetas são aqueles cujas cabeças estão invariavelmente no mundo da lua?


Enfim, enfim. Apesar de ter inúmeros fãs e admiradores, talvez Ziraldo não permaneça no imaginário de gerações futuras, pois assim é o tempo e as suas ações. O que era pão comum cotidiano de uma geração já não será para a próxima. O que nem sempre é ruim, se pensarmos que houve ou há um movimento anti-vacina a bater suas panelas maluconas.


Para um menino grande como eu, Ziraldo fica para sempre como um daqueles sujeitos que nos espantam pela agilidade, sensibilidade e bom humor. E segue como exemplo a ser seguido e reconhecido.


PS: Acabei de me lembrar que certa vez na UERJ- Campus Maracanã desci de elevador com ninguém mais nem menos que Ziraldo. Não, não foi no mesmo dia em que vi o cartunista Jaguar tomar seu chope em um botequim de grife nos arredores da UERJ.”

Sobre o autor

Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.

Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019) e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.

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