Zue: da série “A escola não é tão ruim assim”

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Mais um dia de aula da coluna “A César o que é de Cícero”, do doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista. Nesta lição diária, César conversa com uma aluna sobre sua vida rotineira e dor de dente.

(Toca o sinal, indicando o término da aula. O professor tinha pedido para que Zue, uma de suas alunas, fizesse a chamada da turma. Ele está sentado, organizando uns papéis quando Zue lhe entrega o diário preenchido)
Zue: Ai. Profs, sabe como é que é, tô com uma baita dor de dente. O que que eu faço?
Professor: Vá a um dentista e logo. É o melhor que você tem que fazer.




Zue: Não, profs! O que eu faço agora? (aponta para o diário) Posso por aqui?
Professor: Ah, sim. Claro, claro. Você me faz outro favor? Você conta as faltas pra mim, Zue? Cada “F” corresponde a duas faltas Faz a lápis, que é melhor. Mas você tem que ir ao dentista, my dear. Dor de dente é horrível. Ninguém merece.

Zue: já teve?
Professor: Já. Eu era que nem vocês. Comia sacos de bala. Resultado? Bloco de ouro nos dentes. E uma fortuna de dentista. Agora só masco chiclete sem açúcar.
Zue: Me dá um? (professor lhe dá um chiclete) Valeu. Tu é rico, professor? (pausa) Depois da aula eu vou lá na UPA. Meu namorado me leva.
Professor: Namorado?
Zue: É, profs. Voltei com ele. A gente tá morando junto, profs, pra valer. Tipo casamento blindado, para afastar o olho gordo das invejosas.

Professor: É o tal do colírio diet. (prosseguindo, dissimulando a cara de espantado) Mas, Zue, você só tem treze anos. Não está muito cedo para morar com namorado, não? Sem querer me intrometer…
Zue: Tá nada, profs! Tá suave. Cuido dele e ele cuida de mim! Ai!
Professor: Que foi, é o dente que tá doendo?
Zue: Mordi minha língua! (fazendo careta) Ô profs, aqui a gente se casa cedo. Minha mãe se casou cedo e foi morar com meu pai, lá no terreno da minha vó. E eu fui morar com meu namorado, lá no terreno da vó dele.

Professor: E o seu pai deixou?
Zue: Deixou. Ai dele se não deixasse. Eu ia do mesmo jeito.
Professor: Onde você mora é longe daqui?
Zue: (Faz o gesto de mais ou menos) More or less, profs. Tem que pegar ônibus, que é lá perto do Riachão. Às vezes o ônibus não para. Aí eu venho a pé. Por isso que me atraso.

Professor: (O sinal toca)Huuum, sei. Seu namorado faz o quê?
Zue: No momento, ele trabalha com o pai dele, na oficina.
Professor: Manda ele fazer um curso técnico, Zue. Agora vocês têm que se sustentar.
Zue: Eu como pouco, profs, que é pra não engordar. Ele come menos que eu. O Neneco só come bananas e chupa laranjas, que ele leu no Facebook que tem Potássio, que é bom pra jogar bola. Potássio é bom pros músculos que nem Cálcio é bom pros dentes. Ele gosta de mim e de jogar bola. Profs, você tem filhos?

Professor: Dois. Um casal. Peraí. Olha aqui (mostra a foto das crianças no celular).
Zue: São lourinhos, né? Eles têm olho azul? Também quero ter dois. Se possível, de olho azul, nem precisa ser lourinho. Quem sabe, ano que vem.
Professor: Pra que essa pressa, minha filha? Zue, pelo menos o Ensino Médio, Zue.
Zue: Não dou pra estudo, não, profs.
Professor: Como não? O seu caderno é bonitinho, tá tudo no esquema. Você não gosta mais de estudar? Ano passado teu caderno tinha mais visto.

Zue: Ano passado tava solteira. Sou casada agora, profs, blinded union. Agora tenho outros afazeres. Tenho que cuidar de casa, descascar laranjas pro Neneco, pra ajudar no futebol dele. Ele precisa de vitamina C pra correr mais do que os outros. Ele é lateral, profs, tem que ir e voltar, tem que correr mais que os outros. Tem que correr.
Professor: Mas o Maneco não sabe nem descascar uma laranja?

Zue: (Faz que não com a cabeça e depois continua) Bem, saber ele não sabe, nesse caso, profs. Não vou te enganar, não. Quando ele descasca, não sobra laranja pra chupar. Fica no cotoco. Acho que Neneco tem medo de faca, profs! Tem mais pavor de faca do que de barata. Eu nunca tive medo de faca. De barata tenho nojo, não tenho medo. Bicho asqueroso. Passei um tempo sonhando com faca, mas passou. Acho que hoje eu sonho que corro e corro e não saio do lugar. Mas ele sabe lavar louça que é uma beleza. Eu peço ele faz. I love Neneco, profs. In Neneco we trust.

Professor: Quantos anos ele tem?
Zue: Acho que quinze, profs. A idade do meu irmão mais velho! Ai, meu dente! Tem remédio aí, profs? Um Dorflex, qualquer coisa.
Professor: Tenho não. Só chiclete.
Zue: Então o senhor me libera? (o telefone toca: é Neneco do outro lado da linha. Seguem uns muxoxos) Pera aí, Neneco! Tô saindo. (Faz o gesto de quem está ouvindo muito blábláblá na linha). Sei… Sei… Sei… Já tô saindo, Neneco, pera aí (segue conversando com Neneco enquanto se afasta).

Professor: Vai ao dentista?
Zue: Vou, vou. Esse dente tá doendo muito. É de leite, eu acho. Dente de leite dói?
Professor: Dente de leite? Sim, dói também e muito. Ai.
Zue: Qual foi, profs, mordeu a língua?
Professor: Não, nada, não. (A voz muda um pouco)
Zue: Então, bye bye, profs.
Professor: Bye, Darling.

(Quando ela se afasta, tira cuidadosamente o bloquinho do dente que ficou preso no chiclete. Olha para um lado e para o outro. Depois disso, pega a carteira e guarda o bloquinho no porta-moedas da carteira)

Para ilustrar texto tão doído de dente: “Bijuterias”, João Bosco e Aldir Blanc

Sobre o autor

Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.

Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019) e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.

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