474: Linha tênue

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Por Miriam Krenzinger, Justificando  – 

No dia 12 de janeiro de 2017, assisti a um vídeo que circulava nas redes sociais de dois minutos e 40 segundos que me deixou inicialmente perplexa. As cenas, gravadas no dia anterior, mostravam jovens, crianças e mulheres descendo, desesperados, da linha 474, na última parada de Copacabana. Cerca de 10 jovens, de forma impetuosa e virulenta, destruíam janelas do coletivo. O motorista, que parou no meio da rua, abandonava o coletivo, saindo às pressas com os demais passageiros, assustados. Ao longo do vídeo, as imagens de agitação, destruição e correria geral davam passagem a comentários hediondos, emitidos pela mulher que fazia a gravação, da janela de seu apartamento. Em alto e bom som, dizia:

Estão saindo do ônibus que nem um formigueiro.

Estamos sem autoridade, sem lei  sem nada.




Essa gente tem que morrer.

Essa gente não vale nada, olha isso…

É mulher, é criança, é tudo…um bando de safado.

Essa porra não tem que vir pra cá não.

Tem que deixar eles lá no subúrbio.

Não merecem nem vir à praia.

Filhas da puta, vêm pra cá estragar nosso bairro”.

Outra voz vinha da rua e cruzava os comentários acima:

“Cadê a policia que não aparece?

Bandido bom é bandido morto.

Mata eles.”

Chocada com o que escutara, resolvi divulgar o registro em minhas redes sociais, assinalando minha preocupação, especialmente sobre conteúdo expresso no áudio. Vários colegas e amigos manifestaram diferentes reações e formularam distintas análises sobre o registro. Alguns, dispostos a pensar alternativas para a situação, outros, igualando-se na reação à pessoa que gravou evento, compartilhando o mesmo nível de ódio. Isso tudo me levou a fazer algumas ponderações que considero necessárias para a formação de um olhar crítico e propositivo sobre o ocorrido, procurando sair da zona de conforto e sugerir algumas pontes, conexões e formas alternativas de resolução dos conflitos, que superem as repostas reativas de ódio e/ou vitimização que alimentam historicamente ciclos de violência urbana no Rio de Janeiro.

manifestação contra discriminação

Inicialmente, destaco que na capital fluminense concentra-se o maior número de núcleos de pesquisa sobre políticas sociais no campo da seguridade social, da violência urbana e da segurança pública. Os principais núcleos estão localizados na UERJ, UFRJ, UFF, PUCRJ, CESEC, ISER, Redes da Maré e Observatório das Favelas. Por isso, apoio minhas reflexões e proposições nos próprios estudos e experimentos já realizados. Mudam os objetos empíricos das análises, entretanto, os diagnósticos, as alternativas e saídas são e estão disponíveis há muito tempo, em publicações, relatos de experiências, documentários, etc. Não estou, portanto, a inventar a roda.

A linha 474 faz, diariamente, a conexão entre os bairros Jacaré (Zona Norte) e Leblon-Jardin de Alah (Zona Sul). O ônibus, para além do simbólico, ativa um trânsito entre dois pontos extremos da cidade. A linha 474 conecta, sob tensão, pobreza e riqueza em excesso. Esse “barril de pólvora” vem produzindo seus efeitos de várias formas há mais de 30 anos, mostrando seu limite explosivo, uma linha tênue entre civilização e barbárie. Então, de tempos em tempos a “chapa esquenta” e emergem no asfalto eventos que nos fazem sair da inércia, da frente dos livros, da TV e, agora, das redes sociais, e perguntar: o que fazer?

De imediato, reconhecer humildemente a falta de memória dos cariocas ou a capacidade de transformar tragédias inomináveis – inaceitáveis em uma sociedade que se diz democrática- em meros acontecimentos da vida cotidiana. Importa, agora, nesse sentido, reagir, antes que ocorra uma nova chacina da candelária ou um outro caso tão triste e trágico como o de Sandro, do “Ônibus 174”.

Em 2015, a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social fez um mapeamento das 790 crianças e adolescentes abordados nas ruas e encaminhados ao Centro Integrado de Acompanhamento à Criança e ao Adolescente (CIACA), no período de 20/11/2014 a 15/06/2015. Destaco a seguir alguns dados relevantes sobre o perfil elaborado por técnicos da SMDS:

  • das 790 encaminhadas ao CIACA, 86,96 eram jovens entre 12 a 17 anos e 87,22%, do sexo masculino.
  • 55,82% eram pardos(as) e 31,01% pretos(as). 67,59% não possuíam documento de identificação.
  • Quanto ao nível de escolaridade, 65,70% tinham o fundamental incompleto, 27% eram apenas alfabetizados e 3,67% nunca tinham acessado a escola.
  • 74,68% mantinham vínculo familiar.

A maioria era oriunda da zona norte, estava na rua para ir à praia e passear nos shoppings; 42,03% nunca tinham sido “acolhidos”; 12,03% faziam alguma atividade que gerasse renda. Esse levantamento evidencia que a questão do acesso à educação escolar integral, e da permanência na escola, associada à cultura, ao esporte e ao lazer é central. Estamos falando de direitos fundamentais que não estão sendo garantidos aos jovens negros, do sexo masculino, pertencentes a famílias e regiões mais  pobres da cidade.

Segundo depoimentos de profissionais da rede de atendimento da assistência social, menos de 10% das crianças e jovens que são recolhidos nas praias da Zona Sul estão envolvidos com atos ilícitos. Nesse sentido, estima-se uma média 80 jovens, já “conhecidos” circulando pelas praias e “colocando terror nas madames da zona sul” (expressão utilizada por alguns adolescentes). Os jovens identificados pelas redes de atendimento da assistência social, saúde e educação, são os mesmos. Diagnósticos socioterritoriais relativos a onde vivem e como vivem já estão disponíveis. Sabe-se de suas vulnerabilidades e das medidas necessárias, as quais deveriam ser implementadas em nível de baixa, média a alta complexidade, o que, por sua vez, requereria um conjunto de ações intersetoriais e muito diálogo com as diferentes esferas do poder público (municipal estadual e federal).

Frente a esses dados, já conhecidos, é preciso se perguntar por que os projetos intersetoriais de prevenção social da violência não foram efetivados entre 2015 e 2016? Por que a prioridade foi investir em policiamento ostensivo e apreensão dos meninos? No verão de 2016, várias Kombis foram alugadas pelo Secretário Beltrame para recolhimento das crianças e adolescente pobres que circulavam nas praias da Zona Sul e agora, em 2017, a resposta imediata está sendo a adoção de revistas a serem feitas dentro dos ônibus, com o propósito de inibir os atos de “vandalismos” e recolher os “elementos” suspeitos.

Dos passageiros que utilizam a linha 474, conforme indicam as reportagens realizadas nos últimos dois anos, a maioria é formada por trabalhadores(as), jovens, mães e crianças vindos de favelas da Zona Norte, que no período de férias e de calor usufruem o legítimo direito de frequentar as praias da Zonal Sul. No Rio 45º graus, as comunidades de origem de muitos usuários desta linha têm alta densidade demográfica e não possuem a mínima infraestrutura de lazer, esporte e banho. Em São Conrado, por exemplo, a população da Rocinha acessa a praia como qualquer morador do bairro. Já para população da Zona Norte, há como alternativa, o “piscinão” de Ramos (área de lazer mais próxima). Entretanto, o local está dominado por forças milicianas, que impõem severos obstáculos à entrada de determinados segmentos que moram em territórios ocupados por outros grupos armados. Apenas para mencionar outro exemplo, em Manguinhos, a única escola com piscina está desativada.

Outro detalhe significativo: diariamente, os moradores que utilizam o ônibus 474 estão sendo alvos, em suas comunidades, de trocas de tiros entre grupos armados e policiais. As crianças da Zona Norte estão de férias e, por isso, muitas mães preferem sofrer o risco de serem rejeitadas nas praias da Zona Sul do que colocar em risco a vida de seus filhos(as). Vale assinalar que a polícia militar fluminense está entre as que mais matam e morrem, no mundo. Lembro, aqui, por outro lado, o alto nível de adoecimento e de estresse entre os policiais trabalhadores. Eles estão submetidos a todo tipo de pressão e de cobrança, sendo pouco valorizados e sofrendo ameaças de não receberem seus parcos salários no final do mês.

Uma pequena parcela dos usuários da linha 474 é formada por jovens que invadem, depredam, ameaçam e furtam motoristas, passageiros e transeuntes. Esses jovens, socialmente invisíveis, tornaram-se, desde 2015, o centro das atenções dos meios de comunicação de massa e dos órgãos de Segurança Pública (Guarda Municipal e Policia Civil e Militar). Seus atos, definidos como vandalismo, estão gravados por câmeras internas aos ônibus, pela mídia e por cidadãos comuns.

Importante registrar que, no episódio citado do dia 11/01 , foram apreendidos 42 jovens e crianças, sendo que um jovem adulto de 18 anos ficou retido após ser reconhecido por uma vítima de assalto. Todos os demais foram liberados, o que demonstra que as ações “espetaculares” de apreensão não passam de intervenções simbólicas e políticas, estimuladoras do ódio e da discriminação da população jovem e negra, que logo retornará, na semana seguinte, à cena do “convívio conflituoso”. Alimenta-se assim o círculo vicioso da violência.

As vozes femininas no áudio, acima transcrito, expressam alguns dos elementos que constituem nossa cidade partida:

a) Um sentimento de aversão à pobreza, que é representativo de parcela dos moradores da zona sul. A raiva, indignação, sensação de desamparo e impotência que as cenas provocaram são expressas por meio da cobrança por lei e autoridade policial. Há uma explícita expectativa de mais ordem e mais controle social sobre pobres indesejados dos outros bairros, por intermédio do policiamento ostensivo, entendido como sinônimo de segurança pública. Essa demanda sensibiliza os órgãos de imprensa e as instituições que compõem o sistema de Justiça e segurança, as quais se veem pressionadas a atender o clamor da elite carioca – e não só da elite.

b) O racismo despudorado, que mora nas entranhas desta mesma elite, insiste em se mostrar. Os comentários preconceituosos não estão saindo do armário, como disseram alguns colegas, nos diálogos travados nas redes. Fazem parte do DNA de nossa cultura segregacionista, que naturaliza – quando não exalta – a injustiça e a desigualdade estrutural. Consideremos o registro a seguir, gravado na década de 1980, cujo tema são as “invasões” das praias da Zona Sul por parte de moradores de favelas. Infelizmente, os comentários foram vocalizados como nunca no pós-junho de 2013.

c) A ausência de uma cultura cidadã que reconheça o “outro” e a “outra” como moradores da cidade, com os mesmos direitos de transitar e de usufruir dos bairros, das praias e dos lugares públicos, independente de sua cor, classe e local de residência.

d) A desigualdade social, alimentada e naturalizada por valores egoístas e desumanos. Vide o modo como a senhora que gravou o vídeo repudia os atos de depredação e os crimes contra o patrimônio. Ela não apenas os denuncia e critica, mas incita à violência letal (“Essa gente tem que morrer”; “Bandido bom é bandido morto”; “Mata eles”). As frases exprimem também a suposição de que cabe à polícia resolver o problema, como se não houvesse ali um conflito muito mais profundo, no qual colidem interesses, projetos societários, valores e diretos fundamentais, cujas interpretações estão em disputa, assim como outras questões mais amplas, que dizem respeito ao uso da praia, à fruição do bairro e da cidade, à possibilidade de ir e vir, em paz, sendo acolhido e acolhendo, e sem ameaças ao patrimônio público.

Nesse cenário de ebulição social que vive o Rio de Janeiro e que se explicita, dramaticamente, no 474, alguns desafios são colocados à nova gestão da prefeitura que acaba de assumir, que deveria abrir-se a considerar alguns encaminhamentos. A meu juízo, é indispensável e urgente desconstruir, por meio de políticas públicas no campo da cultura e da comunicação, o olhar preconceituoso da Zonal Sul (e dos estratos superiores que vivem nas áreas ricas da Zona Oeste, especialmente na Barra da Tijuca) sobre a juventude pobre e negra. É necessário, além de reduzir os nichos de pobreza estrutural, desmascarar o racismo criminoso projetado na visão de que o problema se resume a transgressões perpetradas por uma juventude sem causa, com pouco acesso a educação e sem limites.

Há pouca escuta cuidadosa das demandas apresentadas pelos próprios jovens. Falta integração entre os profissionais de saúde, saúde mental, educação, assistência social e os membros da sociedade civil envolvidos em projetos que visam colaborar.  Há, também, pouco trabalho articulado de formação dos profissionais e gestores da segurança pública e da Guarda Municipal, os quais poderiam mudar a lógica da repressão, adotada no verão de 2016, e passar a privilegiar a prevenção social dos conflitos.

Desativar a linha 474 e colocar a rede religiosa para atender os jovens em conflito com a lei, mobilizando a Guarda Municipal e a Polícia Militar para revistar todos os ônibus desse trajeto, são ações voluntaristas que se limitarão a remediar os problemas. Sem dúvida, espírito solidário, fraternal e filantrópico é bem vindo em uma sociedade tão desigual e, nesse sentido, desumana como a do Rio de Janeiro. Elas são importantes enquanto atuem sob a forma de uma rede de apoio às ações intersetoriais das políticas públicas, mas não podem servir como solução para o enfrentamento de uma questão complexa que exige muita habilidade, competência técnica, ética e política. Por sua vez, o sistema de Justiça criminal, especialmente de segurança pública, deve trabalhar preventivamente e no combate ao aliciamento e à exploração do trabalho infantil.

Em princípio, a Guarda Municipal e os órgãos pertinentes ao sistema de proteção da criança e do adolescente só deveriam ser mobilizados quando as demais políticas sociais (educação, saúde, esporte, lazer e assistência social) falhassem ou fossem insuficientes. Tal orientação exigiria a redefinição das respostas tradicionais, apresentadas nos últimos anos, valorizando-se o atendimento das demandas sociais e familiares desses jovens, entendidas como expressões da questão social e não apenas como manifestações de insegurança e violência urbana.

A juventude pobre do Rio de Janeiro deveria ser tratada como prioridade política. Essa atitude corresponderia à valorização das pesquisas e dos estudos já realizados, assim como do vasto conhecimento acumulado pelos técnicos da prefeitura, que participaram de gestões anteriores, e pelos profissionais do sistema de proteção dos direitos da criança e do adolescente. Eles e elas têm muito a compartilhar.

Uma modalidade de ação preventiva seria a justiça comunitária, de natureza restaurativa/reconstrutiva, realizada por profissionais qualificados, em parceria com lideranças reconhecidas nas localidades onde residem esses jovens. Fundamental, nessa ótica, seria convocar os jovens e as lideranças locais das favelas da Zona Norte e da Zona Oeste a participar do diagnóstico e da formulação de proposições para o enfrentamento dos problemas e o atendimento de suas múltiplas demandas. Eles e elas desejam reconhecimento social e redução das desigualdades no acesso a educação, renda, saúde, cultura, lazer e esporte. Urge superar as abordagens tradicionais, repressivas, criminalizantes e simplificadoras de questões sociais complexas e multidimensionais. Estão em jogo os anseios – frustrados pelas iniquidades sócio-econômicas – de uma juventude sem rumo, expectativa de vida e acesso aos direitos da cidadania.

Miriam Krenzinger é Professora Associada do Programa de Pós-graduação do Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

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