A barca de Bucco

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“Navegar é preciso, Viver não é preciso” (Pompeu, general romano, 106-48 aC)*

E a coluna “A César o que é de Cícero”, do doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista inunda esta página com as peripécias náuticas de Bucco. Para quem é navegante novo desta coluna, Bucco é um lúdico “faz tudo”, que vive em busca de bicos. Sempre antenado numa oportunidade, qualquer que pinte, Bucco é um dedicado pai de família.




Boias ao mar:

“Com muito engenho e arte, Bucco fez em sua oficina uma pequena embarcação que foi batizada, com banho de sidra e tudo, de Marieta, em homenagem à mulher. Aliás, ela fez pouco caso do enredo mas no fundo bem que gostou da homenagem do marido. Mas deu as costas quando ele começou a lhe explicar o que tinha feito para dar curvatura às peças de madeira, conversa técnica demais para a cabeça dela.

Um dia veio à cabeça da mulher por que cargas d´água Bucco construiu um barco. Seria apenas um passatempo? Uma compensação pela fantasia para superar a vontade incontornável de voltar à terra pátria da mesma maneira que seus antepassados vieram para o Brasil, isto é, de navio? Será que Bucco quereria dar uma de Almir Klink agora depois de tantos anos, viver solitariamente entre as três margens do rio?


Bucco tinha esses rompantes de quando em quando. Ela gostava disso porque eram justamente nesses momentos em que ele deixava romper uma ternura que aparentemente não tinha, pois estava sempre envolvido em seus inúmeros afazeres de solicitações de reformas e reparos.


Bucco ainda se lembra das histórias dos seus antepassados. A da sua avó, a da sua mãe, que deixou a única boneca que tinha escorregar por um buraco no navio que dava imediatamente para o mar. Coitada da mãe, era por isso que ela sempre pedia de presente uma boneca, uma roupa de boneca, uma casa de bonecas. Em suma, para alegrar o coração daquela mulher bastava lhe dar alguma coisa relacionada com o universo infantil, aquele que, por imposição de tantas forças fora de seu controle, ela se viu obrigada a deixar para trás, sem entender o motivo.


O pai de Bucco não conheceu a mãe de Bucco no barco nem a consolou com histórias mirabolantes sobre as viagens de uma boneca. Ele era um homem muito seco, não falava nem mesmo pelos olhos. Bucco era muito diferente dele, apesar de ter aprendido muito dos seus muitos talentos com o homem dos olhos azuis e de bigodes.


As crianças do Bucco estavam indóceis à espera de uma chuva que causasse alagamento. Quando ela viria? Seria o momento certo, a hora na hora, de testar a bonita invenção do pai. Era uma coisa bonita, de causar estupefato. A alguns, a obra-prima trazia à lembrança a silhueta de um cisne, porque parecia uma gôndola. A outros, lembrava uma canoinha, ainda que bem talhada e decorada. A outros, por sua vez, lembrava uma barcarola de São Francisco, ao que faltava a carranca.


Bucco, atento aos detalhes, providenciou uma carranca de papel marchê, um assombro de bonita, tanto que as crianças se indagavam de onde o pai tirava tanta da imaginação.


A chuva veio repentina. Chuva, não. Tempestade. Não deu nem tempo do Bucco lançar sua barcarola ao mar – mar, modo de dizer, é claro. Uma árvore que tombou impediu a saída da embarcação do estaleiro, para tristeza de todos.


A água subiu, mas subiu tanto que inundou a pequena propriedade de Bucco. Era como se um dique tivesse se rompido. Chegava à altura do parapeito da janela.


Foi então que Bucco não se fez de rogado. Improvisou umas boias com isopor e garrafas pet, pegou a mulher e as crianças e embarcou na Marieta para ver se a bichinha boiava ou não. Boiava, meu Deus, boiava de verdade, para o espanto e júbilo da família.


Mas também dentro de casa boiavam a geladeira, o guarda-roupas, a cama das crianças, a mesa de jantar, as cadeiras. Até o fogão boiava, mas parecia ser a única coisa a estar ancorada, devido, decerto ao botijão de gás. Aliás, o botijão também boiava de vazio.


Enquanto a chuva não passou, Bucco e sua família ficaram juntos a bordo da Marieta brincando de pirata e espantando os ratos que insistiam em retornar ao barco. Foi uma pena o Bucco não ter passado impermeabilizante na carranca, que se desmanchou por dentro, murchou, ficando feia, inútil.


Quando a chuva deu baixa, deixando para trás um rastro de destruição, foi a vez da família fazer o inventário do que sobrou. Pouco, muito pouco, quase nada. Bucco resolveu fazer os móveis todos de alvenaria. Para tanto, era preciso trabalhar mais e mais, como sempre.

A Marieta, que lhes serviu de abrigo, pode finalmente sair do estaleiro. Do tronco da árvore que impediu sua saída, Bucco pensou em fazer banquetas rústicos de madeira. E da Marieta um espécie de trailer. As crianças gostaram da ideia de dormirem todos juntos por um tempo. As crianças são os melhores aprendizes, sejam de marinheiro ou de qualquer outro tipo.


Da próxima vez, a Marieta iria para o rio, que é o grande teste de qualquer embarcação que se preze. Isto é, se o rio não estivesse absolutamente assoreado, não é mesmo? E se o rio não fosse mais volumoso como foi um dia o Velho São Francisco?

Foto da postagem: Inundação na cidade de Batayporã, município localizado a 310 quilômetros de Campo Grande, Mato do Grosso do Sul. A foto poderia ser também nos arredores dos grandes centros, como Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, pois onde tem pobre tem descaso das autoridades.

*Revista Exame: ““Navegar é preciso, Viver não é preciso” esta famosa frase muitas vezes atribuída a Fernando Pessoa ou a Camões, na verdade foi dita originalmente em Latim (Navigare necesse, vivere non necesse), por Pompeu, general romano, 106-48 aC., aos marinheiros, amedrontados, que recusavam viajar durante a época expansionista do Império Romano (cf. Plutarco, in Vida de Pompeu).

Somos tomados de fascínio quando nos deparamos com a expressão visto que ela mostra toda a dualidade do mosaico que é a vida humana. O verbo “precisar” é utilizado no sentido de ter precisão matemática e também no sentido de ter necessidade, deixando ao leitor ou ouvinte, escolher a significação mais adequada ao seu momento e a todos os aspectos de sua vida.”

Sobre o autor

Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.

Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019) e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.

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