A fraude das fraldas

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Ricardo Nunes pagou 57% a mais por fraldas, e prejuízo a SP pode chegar a 20 milhões

Paulo Motoryn, compartilhado de The Intercept




O reajuste no preço após o processo de aquisição só é aceito em casos excepcionais, e é preciso ter uma boa justificativa. Mas a prefeitura de Ricardo Nunes mantém o sigilo da razão do aumento. Ilustração: Intercept Brasil

Aprefeitura de Ricardo Nunes está pagando em São Paulo, desde abril deste ano, quase 57% a mais do valor inicialmente acordado com uma fornecedora para entrega de fraldas geriátricas. No ano passado, a empresa Certame ganhou uma licitação contra as demais concorrentes justamente pelo menor preço oferecido para fornecer mais de 15 milhões de fraldas à prefeitura por ano. O custo unitário era de R$1,314. Neste ano, porém, um aditamento no contrato aumentou o valor para R$ 2,06 – o que pode representar um gasto de mais de R$ 20 milhões aos cofres públicos.

O aumento no valor tem efeito retroativo a 29 de agosto de 2022, aproximadamente três meses depois do acordo ser firmado, em 2 de junho, representando um aumento de 56,7% no custo do material. No total, o contrato para compra das fraldas chega a mais de R$ 60 milhões – dos quais cerca de um terço poderia ser economizado se a prefeitura tivesse pago o preço inicial do produto. O valor total do prejuízo para a prefeitura, no entanto, só poderá ser calculado com o fim da vigência do acordo, em junho de 2024, já que as compras são realizadas conforme a demanda. Para estimar o possível tamanho do rombo aos cofres públicos, o Intercept tomou como base o consumo médio de fraldas estimado pela Secretaria Municipal de Saúde na ata de registro de preços, de 15 milhões por ano. Ou seja, o rombo pode ser ainda maior.

A denúncia foi encaminhada em junho ao Ministério Público e ao Tribunal de Contas do Município pelo vereador Toninho Vespoli, do Psol. A ata de registro de preços foi assinada em 3 de junho de 2022 com a Certame Comércio de Medicamentos LTDA, fundada em 2006. A empresa, com sede na zona norte de São Paulo, tem longo histórico de vendas de material para órgãos do poder público em outras cidades paulistas. Apesar de quase 20 anos de atuação, a Certame não tem site e nem redes sociais divulgando seus produtos.  O sócio-administrador é Paulo Pereira Gonçalves Filho. No endereço cadastrado na Receita Federal, o Google Maps apresenta um borrão no exato local da sede – um serviço pago geralmente por quem não quer chamar a atenção na plataforma.

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Gonçalves Filho se filiou ao PTB em agosto de 2009. Hoje nas mãos do bolsonarismo radical, a sigla sempre esteve próxima ou até integrou gestões tucanas na prefeitura e no governo estadual paulista. O Intercept tentou entrar em contato com a Certame, mas não obteve retorno. Não foram localizados contatos públicos de Paulo Pereira Gonçalves Filho. O PTB não respondeu se o empresário ainda integra os quadros da legenda.

Razão do aumento das fraldas está sob sigilo

Uma das cláusulas da ata de registro de preços assinada entre a prefeitura e a fornecedora até admite, em caráter excepcional, que os valores dos produtos subam ao longo da vigência do contrato, dentro de uma ata de registro de preços. 

No entanto, como a seleção no pregão eletrônico tem como critério justamente o preço do produto, em tese, a prefeitura deveria ser rígida, condicionando o aumento a uma comprovação, por parte da empresa, das razões para a alteração: “O preço registrado poderá ser majorado mediante solicitação da detentora [fornecedora], desde que seu pedido esteja acompanhado de documentos que comprovem a variação de preços do mercado, tais como tabelas de traficantes, notas fiscais de aquisição do produto acabado ou de matérias primas”.

Os documentos apresentados pela Certame, porém, não foram divulgados pela prefeitura. Ou seja, a justificativa para o acréscimo, que só é aceito em casos excepcionais, está sob sigilo. De acordo com o gabinete de Vespoli, “a justificativa para tal alteração consta do processo SEI [Sistema Eletrônico de Informações], mas o referido documento não é público, sendo assim, desconhecemos as razões para substancial alteração de valor”.

Questionada pelo Intercept, a Secretaria Municipal de Saúde respondeu, por meio de nota, que os valores previamente contratados estariam com uma defasagem em relação ao preço de mercado. A prefeitura afirmou ainda que o “reequilíbrio econômico-financeiro inicial do contrato” está previsto no artigo 65, inciso II, da Lei Federal nº 8.666/93, a lei das licitações, “mediante solicitação do detentor do registro e comprovada a necessidade”. O artigo em questão define as regras para alteração dos contratos. 


Segundo a administração municipal, previamente à repactuação dos valores, a Coordenadoria de Administração e Suprimentos “realizou uma pesquisa de preços que demonstrou que os valores praticados no contrato se encontravam defasados perante os valores encontrados no mercado”. A pasta não revelou, no entanto, qual foi a justificativa apresentada pela empresa para o aumento – e por que a explicação da fornecedora não é pública

Licitação de fraldas elevou média de preços

Aconcorrência para selecionar a fornecedora das fraldas foi lançada em edital publicado no Diário Oficial do Município em janeiro de 2022. Pouco depois, ainda março daquele ano, um relatório preliminar do Tribunal de Contas do Município já recomendava que o edital publicado pela Secretaria Municipal de Saúde fosse suspenso.

Assinado pelo agente de fiscalização Douglas Franco e pela supervisora de controle Maria Clara Watanabe Tanabe, o documento relata diversos problemas na pesquisa de preços para a compra das fraldas. 

A apuração do TCM apontou que, em comparação ao edital lançado pela Prefeitura em 2019, o aumento no preço das fraldas era injustificável: “os preços estimados no presente certame são muito superiores aos praticados na ARP 271/2019. Para os itens “Fralda descartável, Adulto, tamanhos M, G e XG”, apresentaram variação de 91%, 70% e 56%” – o que representaria, segundo os auditores, um custo extra de até R$ 38 milhões.

Outra observação refere-se nominalmente à Certame, empresa que, meses depois, seria escolhida para assinar com a gestão Nunes. O documento diz que a fornecedora, na concorrência de 2019, “apresentou, para todos os itens, valores muito superiores aos menores preços obtidos, sendo superior a 100% em todos os itens pesquisados, elevando a média de preços”. 

Pesquisa de preços feita pelo Tribunal de Contas do Município.
Pesquisa feita pelo Tribunal de Contas do Município com outras contratações e consulta ao Banco de Preços em Saúde mostra média menor do que o que a prefeitura está pagando.

Nas pesquisas de preço levantadas pelo tribunal, havia fraldas muito mais baratas do que as compradas pela prefeitura de São Paulo, com valores que partiam de R$ 1,05. Os menores preços eram obtidos com as fabricantes. Segundo os auditores, no entanto, a prefeitura mostrou pouco empenho em buscar orçamentos direto nas fábricas – e preferiu consultar as empresas atacadistas intermediárias. “Nos documentos juntados, há poucas cotações de fabricantes de fraldas. Porém, não há evidências nos autos de quantas fabricantes foram consultadas”, diz o TCM.

“Como resultado, sugere-se uma revisão completa do edital, com a devida correção das deficiências apontadas, a fim de garantir a transparência, eficiência e conformidade com as normas vigentes no processo de contratação da empresa especializada no fornecimento de fraldas descartáveis”, disse o tribunal. Mesmo diante da recomendação de suspensão, a contratação foi à frente.

A fralda que não segura

Problemas no fornecimento de fraldas em São Paulo têm sido recorrentes. Desde 2021, caiu drasticamente o fornecimento do produto  – para idosos, adultos e crianças – nos serviços públicos de saúde da cidade. Além da falta crônica das unidades, essenciais para crianças pequenas, adultos acamados e idosos, os paulistanos ainda convivem com outro problema: a baixíssima qualidade do produto fornecido pela prefeitura. “A fralda não segura”, disse uma enfermeira ao programa Bom Dia SP, da TV Globo. 

O próprio Tribunal de Contas do Município também está de olho na questão da qualidade do material. Em sessão plenária, em 23 de agosto, auditores do tribunal aprovaram uma inspeção da qualidade e da quantidade das fraldas descartáveis fornecidas. Segundo o tribunal, o caso tem levado a reclamações de moradores da cidade sobre a “baixa absorção das fraldas, que estariam causando vazamentos e obrigando o uso de duas unidades a cada troca”. 

A fiscalização visa verificar essas alegações e avaliar a situação das fraldas fornecidas pela prefeitura.

Questionada sobre a qualidade das fraldas ofertadas, a prefeitura afirmou que “as fraldas são periodicamente submetidas a testes de qualidade com lotes aleatórios, que são analisados pela Comissão de Avaliação e Tecnologia em Saúde”.  “Quando detectados problemas de qualidade, os fornecedores são acionados para substituição dos lotes prejudicados. Nos testes mais recentes realizados, no entanto, os itens fornecidos foram aprovados”, disse a prefeitura.

O Intercept também procurou a Certame, questionando os motivos para o aumento de preço das fraldas. Não houve retorno. O espaço segue aberto para manifestações.

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