César, o filho, incorpora na mãe

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Minha mãe, minha mãe, eu tenho medo / Tenho medo da vida, minha mãe. / Canta a doce cantiga que cantavas / Quando eu corria doido ao teu regaço / Com medo dos fantasmas do telhado. / Nina o meu sono cheio de inquietude / Batendo de levinho no meu braço / Que estou com muito medo, minha mãe (Trecho do poema “Minha Mãe, de Vinicius de Moraes)

E a coluna “A César o que é de Cícero”, do doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista dá voz à Dona Dionner, se colocando no lugar dela e fazendo um relato do que é ser mãe de dois filhos, sendo um dos quais aquele que ela já trouxe pequenininho de Penedo, em alagoas, o César.




Beija-Flor, 8 de maio de 2024.
Caro Washington, escrevi o texto desta semana pensando no Dia das Mães. O dia se tornou cada vez mais comercial, o comércio conta com ele para aquecer as vendas, tudo isso é verdade. Entretanto, a despeito de todos os inúmeros senões que possam ser levantados, o Dia das Mães para mim é ainda um dia comovente, um dia de reconhecimento.

Afinal, mãe todos nós a temos ou a tivemos – porque ninguém nasce de chocadeira. Ou já nasce? E quem nos cria?
PS: Até hoje adoro quando a minha mãe diz coisas como “Avie”, “Acuda”, “Se achegue”, “Bola da pá”, “amarelo podre” etc. Trata-se de um campo lexical com o que não estamos mais habituados.
Vamos ao texto!
Um grande abraço,
Cícero C.

QUANDO É QUE VOCÊ VEM? NÃO DEIXE DE LIGAR. E AS CRIANÇAS?

“Muita coisa na gente envelhece. Veja só, eu olho para mim e não me reconheço. A minha pele era de pêssego; agora parece mais escama de peixe. Carrasquenta. E olha que eu caprichava no creme Nívea, tá? O melhor, o único, o da tampa azul. É o tempo, Maria.

Eu usei perucas Lady algumas vezes, tá? Quando saiu de moda, as crianças aproveitaram-nas para fazer cover de roqueiros, dos Beatles e dos Rolling Stones. She loves you, yeah, yeah, yeah!

Os meus cabelos eram escuros, escorridos, brilhantes de tanto sabão de coco. Agora estão que é só tintura, curtos, quebradiços nas pontas. Depois de um tempo sem tingir, minha cabeça fica que nem sapato bicolor. Acaju nas pontas, branco na raiz.


Envelhecer é uma merda. Mas só quem envelhece é capaz de dizer isso. Quem morre cedo cai logo no poço da eternidade. Quem continua tem que continuar bordando. É isso.


De beber eu nunca fui muito. Só nas quatro festas do ano, uma caneca e olhe lá. Só golepinhos. Eu era de colocar açúcar em vinho, veja você. E gostava de uma Malzbier, que diziam que mulher grávida tinha que beber para dar mais leite. Meus peitos pequenos eram fartos de leite. A natureza é sábia.


Por mim eu ficava mesmo era na minha cidade, o resto da vida no meu vilarejo de beira de rio, que agora é Centro Histórico, o que quer que isso signifique. Mas o marido quis vir para a capital, ele queria conhecer o mundo. Eu vim de mala e cuia, com o primeiro no colo. Só sei que a mudança não fez bem para mim. Me azedou. E eu, azeda, meu filho, fico cabulosa.


Quando um filho meu caiu de cabeça no chão, eu gritei “Acuda, acuda”. Só que pelo que me consta ninguém perto de mim conhecia o verbo assim empregado. Era o mesmo que não ter dito nada.
O meu filho mais velho ficou de anotar esses termos que eu uso. Ele diz que são curiosos. De curiosidade morreu um gato, se você quer saber.


Filhos são um poço de ingratidão. Quando aparecem é porque querem uma coisa. Eu não deveria ter feito o que fiz por eles, me privei. Porque em dias ruins de ruína, a gente pesa a mão e acaba culpando os bichinhos, que não pediram pra nascer. Esses cuidam de mim, mas também querem mandar. Rarará, mandar em mim! Tá pra nascer o dono dessa demanda.


Pois é, pensando bem, quem mandou em mim se foi primeiro do que eu. Os enredos da vida são muito inusitados, imprevisíveis, pouco verossímeis. Por isso, de vez em quando a gente tem que carregar um pouco no sal; caso contrário, quem nos ouve começa a bocejar. Com o sacolejo, o pessoal suspende a desconfiança.


Ele se foi. Quando todo mundo esperava que eu fosse desabar, eu apenas disse a todos os presentes em alto e bom tom que a vida é passageira, que ele estava em um lugar melhor que nós todos.


As cinzas dele, a meu pedido, foram jogadas em um parque, em uma operação que de vez em quando me faz ficar frouxa de rir em decorrência das inúmeras trapalhadas que se sucederam. Só não as conto em respeito ao morto.


Eu tive que me reiventar, eu disse? E nessa idade, com quase oitenta! Não queria amor de homem. Se eu quisesse, eu trataria de obter nem que fosse nos Classificados. Queria o vento forte do mar a bater na minha cara. A felicidade não existe, só alguns flashes. Quem vive em estado eterno de felicidade não veio de onde eu vim, não sabe como é a vida.


Enfim, com o dinheirinho da pensão que eu tinha, com a saúde querendo me comprometer, eu queria urgentemente rua, bater pernas, comer filé com fritas em vez de comida de casa ou de hospital.


Eu posso me esquecer de tudo, posso me esquecer de muita coisa, posso botar fogo na casa. Mas o meu estômago ainda pensa direitinho por mim. Só não encaro mais sururu, que sururu morreu de velho.


Eu sei que eles vão bater à minha porta neste domingo com flores, chocolates, quem sabe um vinhozinho licoroso a ponto de não precisar de açúcar. Talvez as crianças venham também a me pedir a benção, quem sabe. Eu vou ficar confusa mas feliz com tanta gente. Eu não sou que nem a minha mãe, que Deus a tenha, que me perguntava quando a gente ia embora da casa dela só porque não aguentava sair um bocadito da rotina que fosse.


Algumas mães são terríveis, são realistas. Outras, mais realistas ainda, que é o meu caso, sabem que um pouquinho de ilusão não faz mal a ninguém. Não precisava, meu filho. Muito obrigada.”

Sobre o autor

Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.

Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019) e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.

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