A incrível geração que dá banho de álcool gel no pote de álcool gel

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Por Rafael Sette, compartilhado de 360 Meridianos – 

Antes sem medo de cruzar oceanos, agora começo a suar frio se vou à padaria. E olha que só preciso atravessar a rua para chegar ao pão nosso de cada dia – transformado em de cada mês pela quarentena, para evitar saídas desnecessárias. O pão chega quentinho, mas nem bem esfria e já está curtindo o clima invernal do congelador, onde aguardará a hora de ser repartido.

Minto. Se fosse só a rua, eu iria com precaução, mas sem tremer, digo, temer. O problema é que no meio do caminho tem o corredor do meu andar, o elevador, vinte andares e 45 segundos trancado num cubículo. Trancado com quem? O vizinho do 18° não para de festejar e todo dia recebe visitas. São tantas pessoas que aquele apartamento já deve estar em transmissão comunitária, se não de vírus, certamente de burrice.

Mas vamos lá, que a comida não vai atravessar a rua sozinha. Visto a roupa de sair de casa pensando na coisa louca que é ter uma roupa assim. E que, loucura total, é a piorzinha que tenho. Aquele trapo que até outro dia era a vestimenta da segunda à noite em casa, deitado no sofá.




Coloco a máscara e também os óculos, não por causa da miopia, mas para servir de aparador de perdigotos. Pego um palito de dente para não tocar no botão do elevador e protejo a mão com um saco plástico, para abrir e fechar portas. Me preparo para dar um pequeno passo para a humanidade, mas um gigantesco para um homem: estou fora de casa. Uma vez ali, evito não pensar em criaturas terríveis, invisíveis e que não sei se são seres vivos. Vale para espíritos e para o coronavírus.

Entro no cubículo. Respiro fundo no 19°, respiro aliviado ao passarmos pelo 18° de tantas festas e sei lá eu quantos vírus. Na altura do 16° meus óculos já estão embaçados, consequência da combinação entre máscara e toda aquela respiração exagerada dos andares anteriores. Paramos.

A senhora do 15° entra e, em segundos, começa a falar. “Oi, meu filho! Como vão as coisas, meu filho? Tenho te visto pouco, meu filho. Saudade de um boteco, né, meu filho?” Às vezes ela está com máscara no rosto, em outras com máscara no pescoço, frequentemente com uma bandana hospitalar na cabeça. Não dá pra culpá-la, afinal vivemos num país onde nem o Ministro da Saúde sabe usar máscara. Se ele não sabe, a Dona Vera que não vai saber também.

mascara hospitalar

Ela é de conversar, e muito. Em geral eu dou corda – em tempos normais, compartilhamos fofocas, quer dizer, notícias ao longo dos 36 segundos em que dividimos o elevador. Mas não hoje: foco minha atenção em manter certa distância e torcer para ninguém mais entrar. Do meu cantinho, respiro aliviado ao passarmos pelo 5° (merda, embaçou mais), onde mora o seu Damião, um senhor de seus 80 anos e que sai todo dia. “Sempre sem máscara”, reclama indignada a Dona Vera, enquanto ajeita a bandana.

“O coronavírus não vai me pegar, rapaz. E ele que se cuide, rapaz! Se der bobeira eu que pego ele, rapaz”. É o que diria o seu Damião se estivesse no elevador. Como ele não está, em 9 segundos paramos no térreo. Saio correndo, despedidas à distância, atravesso a rua e, pelo lado de fora, faço as compras. Pago sem encostar na maquininha, só passando o cartão por cima dela, uma tecnologia que até pouco tempo era meio inútil – “nunca pensei que esse pagamento por aproximação ia pegar”, diz a moça.

Volto contando os passos, 1, 2, 13, 20. Epa, passa longe que você tá sem máscara!  Fico na calçada para, por alguns segundos, para contemplar a rua. A minha está vazia, tem poucos carros. A ciclovia sim tem movimento, é quase uma moto romaria de entregadores de aplicativo, heróis sem capa – e muitas vezes sem nem gorjeta.

É hora de subir. Para não dividir o elevador com pessoas ou algum perdigoto (anotar: bom nome pra colocar num cachorro), espero as vozes sumirem na portaria. Abro a porta, uso outro palito de dente pra chamar o elevador, entro.

Conto até 45 torcendo pra não ter ninguém no meu corredor, mas logo o pensamento migra para uma teoria que envolve o coronavírus transformando o mundo num lugar ainda mais antissocial. Saudade das fofocas da Dona Vera, né, meu filho? Conversa fiada sempre me deu medo, mas isso já é ridículo.

Chegamos, eu e as compras. Abro a porta, me livro das roupas e da máscara, lavo os óculos, mãos, braços, cotovelos, cabeça, enfim, me banho. Calçados ficam numa área suja, perto da porta, que é demarcada – pisar ali é o mesmo que tocar o solo lunar: você pode, mas tem que estar preparado.

Empesteio a sala com o cheiro do álcool gel e, por via das dúvidas, limpo maçanetas. Todas. O vírus pode até ter crise existencial, sem saber se é um ser vivo ou não, mas nessa casa o corona vai economizar com terapia. Aqui ele está sempre morto, camada de gordura desmembrada a todo custo.

A namorada me esperava com balde, desinfetante e enredo de ficção científica. Na infância, eu brincava de imaginar como seria a vida em 2020. Carros voadores? Ser humano em Marte? América campeão brasileiro? A realidade venceu até a minha imaginação infantil quando a Covid-19 institucionalizou o banho no pote do molho de tomate. E no do leite, dos biscoitos, do café e do queijo. Há a geração dos baby boomers, a X, a Y, a Z… Agora, todas elas dão um banho de álcool gel na embalagem do álcool gel.

Tudo higienizado, jantamos. Semana que vem preciso ir à farmácia. Foda-se, vou de escada.

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