Á sombra de um certo Juan Rulfo

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Por Ulisses Capozzoli, no Facebook

Leio “Pedro Páramo” de Juan Rulfo com o encanto que teria tido em ganhar um trenzinho elétrico, aos oito anos. Mas, na minha infância, os trens correram em outra direção e nenhum deles parou na estação que eu mesmo construí. Não estou me queixando. Sei que tudo não passa de uma história de vida, a trilha que cada um deve seguir enquanto respirar sobre a Terra. Retirando golfadas repetidas de oxigênio da atmosfera. No fundo, pouca coisa. Trabalho de um único par de pulmões.




A vida é uma sucessão de fatos, imagens e sensações. Eu mesmo, perdi amores, amigos, planos e memórias por incapacidade de reunir tudo no que um dia imaginei pudesse ser um único baú. A vida contida ali, guardada a um canto insuspeito. Que fosse possível visitar quando conveniente.

Quis domar minha história de vida como se fosse um potro selvagem. Justamente eu que tenho amor por cavalos. Um amor que abomina a dominação, o confinamento, qualquer via que não o pleno fluir. Deu no que deu. Não domei os cavalos, não abarrotei um baú, perdi amores doces como caju maduro e amigos que pareciam parte de mim.

Foram embora como eu também fui, como vamos cada um de nós, trocando moléculas do corpo a cada dia, sem considerar que nos reformulamos/renascemos assim. Mas ganhei os livros. O fascínio pela ciência, história e literatura que, em mim se manifestam com a alternância das estações. Uma após a outra. E que me confundem, com a sensação de que uma delas possa ter vindo para ficar. Afastando as outras com a força de uma cultura dominante. Cobrindo toda a extensão do campo varrido pela luz amarela do Sol.

Mas chegam as noites, ao final de cada dia, e me dou conta de que é uma falsa interpretação. Um céu repleto de estrelas distantes, aguilhoando as pupilas de luz, é a paisagem que domina. Que abriga do vácuo interestelar estendendo-se em todas as direções.

Outras vezes, uma sucessão de memórias, vozes que me chamam por apelidos carinhosos que tive no passado, criados por minhas avós. Eu que tive, além da companhia dos livros, o privilégio de três avós. Cada uma delas com uma natureza distinta. A que amava os livros, a outra, com mãos artísticas que faziam flores de papel e tocavam as teclas do piano como se fossem o vento.. E a terceira delas, “pícara”, como diria um espanhol, para expressar o sentido de ardilosa, astuta e sagaz. Foi a que menos amei, mas que também me deixou lições, sem o que não teria compreendido inúmeras situações.

Como disse há pouco, leio Juan Rulfo, autor de um único par de obras: “Pedro Páramo” e “O Planalto em Chamas”. Rulfo, o mago entre os mágicos todos que já conheci. Uma única passagem, para comprovar o que digo, numa frase em que me vejo por inteiro: “No dia em que você foi embora compreendi que não a tornaria a ver. Ia tingida de vermelho pelo sol da tarde, pelo crepúsculo ensanguentado do céu. Sorria. Deixava para trás um povoado de que muitas vezes me dissera: ‘Gosto dele por você, mas o odeio por tudo o mais, até por ter nascido nele’. Pensei: Jamais regressará, não voltará nunca’”.

Mas eu, ao menos, voltei. Não inteiro. Dividido, fracionado como sempre fui. Vou, espio, examino. Às vezes faço descobertas de que nunca havia suspeitado. Em outras, retorno carregado de impotência e decepção. No inverno, quando o movimento pendular do sol faz com que ele se incline para o norte, a literatura toma seu espaço natural e se estende até o começo do verão.

Desta vez, com a presença de Rulfo. Juan Nepomuceno Carlos Pérez Rulfo Vizcaíno (1917-1986) que teve na biblioteca do padre de seu povoado, Ireneo Monroy, a fonte de toda sua formação. O padre Ireneo (Renteria, no romance?) que levava livros da casa dos fiéis com o propósito alegado de verificar se eram “permitidos”. Mas a determinação de ficar com eles. Romances de Dumas, Victor Hugo, Buffalo Bill e o místico Tourado Sentado.

Quando o Sol, em seu movimento pendular, inclina para o norte, a literatura amplia sua sombra, aumentada, agora, por influência de Rulfo. Em seu lugar no vazio do céu, o Sol deixa laranjas maduras pendendo no pé como pequenas representações.

Juan Rulfo, de muitas maneiras ligado a Maria Sabina, a curandeira da Sierra Mazateca, no sul do México, que remete à minha primeira avó, a amante de livros. Ela também uma xamã. Maria Sabina de quem por aqui quase nada se sabe e que fez de suas invocações aos deuses da mescalina uma forma de literatura. Como tudo o mais que é belo e misterioso.

Maria Sabina, a sábia, de que um dia ainda trataremos aqui.

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