Arnaldo Baptista, o mutante que voltou do inferno

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Por Walterson Sardenberg Sº, publicado no Blog Textos do Berg – 

Há um ano e meio, do dia do aniversário de Rita Lee, ele tentava o suicídio saltando para a morte

(Reportagem publicada na revista “Manchete” número 1.624, de junho de 1983)

Um pouco ansioso, ele procura nos olhos dos presentes um sinal de aprovação e pergunta, timidamente:

“Já posso fumar mais um cigarro?”

A amiga Sônia Abreu responde, didaticamente: Arnaldo fumou seu último cigarro há menos de 15 minutos, é preciso esperar pelo menos mais 15 minutos para acender outro. Ele se tranquiliza. Cruza as pernas na poltrona, desliga-se por alguns instantes da conversa e ri um riso sem sentido, que congela no seu rosto. Depois, fica admirando o relógio no pilso esquerdo, contando os minutos que o separam do novo cigarro. E outra vez a pergunta:

“Já posso fumar?”

Agora a resposta é positiva. Arnaldo retira o cigarro do maço amassado, pousa-o entre os lábios, segura desajeitadamente o isqueiro e — glória final — acende.

Uma tragada. Duas. E depois o cigarro abandonado na mão esquerda, entre dois dedos incrivelmente amarelados de nicotina. O olhar perdido se transmuta em gratidão. E, mirando embevecido os rostos de Sônia Abreu e Lucinha (sua quarta mulher), Arnaldo volta a prestar atenção na conversa.

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O ex-líder do grupo Os Mutantes, ex-marido de Rita Lee e uma das raras figuras lendárias do rock nacional, Arnaldo Dias Baptista, é agora uma criança tímida, contraída, que sobrevive num apartamento do bairro de Pinheiros, em São Paulo, graças à proteção e dedicação de Sônia e Lucinha, seus dois anjos da guarda. A palavra sobrevivência deve ser entendida em toda a sua extensão. O garoto de 35 anos que pede permissão para acender um cigarro representa a segunda vida do homem confuso que há quase um ano e meio, no dia 31 de dezembro de 81, caminhou até a sacada do terceiro andar do Hospital do Servidor Público Estadual (SP), onde estava internado para uma série de exames psiquiátricos, e, desesperado, atirou-se, caindo no cimento do pátio de estacionamento. Como um pacote.

Da tragédia para cá, Arnaldo vem sendo remodelado, como um ser sem vontade própria. Primeiro, pelas hábeis mãos do Dr. Buller Souto, que conseguiram fazer com que um homem com edemas pulmonares e cerebrais, sete costelas quebradas e outras lesões menores continuasse vivendo. Segundo, pelo carinho de um grupo de sete garotas, que, dia após dia, nos cinco meses de hospital, seguiram a recuperação de Arnaldo sem deixá-lo sozinho um minuto sequer, como se estivessem diante de uma figura messiânica.

Chefiadas por Sônia Abreu e Lucinha, elas não hesitaram em transgredir as convenções do hospital. Levaram para o quarto de Arnaldo toca-fitas, caixas de som. Ficaram de pé em sua cama, massageando o corpo, àquela altura mirrado, de Arnaldo. Forçaram-no a falar e a se movimentar. Acompanharam seus nervosos e claudicantes primeiros passos. Ensinaram-lhe a vontade de sobreviver. O Mutante precisava passar por mais uma mutação: do desengano em direção à vida.

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“Os médicos e amigos repetiam: ‘Arnaldo vai morrer’ ”, relembra Sônia Abreu. “Mas nós acreditávamos no milagre. Tentávamos conversar com o Arnaldo. De nada adiantava. Ele nem sequer abria os olhos, mesmo depois de sair da UTI. Ainda assim não desistíamos.”

Num lance de sensibilidade — ou de desespero —, as garotas levaram o tal toca-fitas e as caixas de som para o quarto do hospital. E foi assim que reencontraram uma ponte de comunicação com Arnaldo. Parece incrível, mas, ouvindo velhas canções, ele começou a reagir. Esboçando um sorriso em meio à audição de “Charles Anjo 45”, de Jorge Ben (Jor), Arnaldo, pela primeira vez, deu mostras de que nem tudo estava perdido. Havia a música como linguagem comum.

Durante meses, a música brigou contra a morte. Conseguiu vencer. E num sábado de sol, abatido, com o rosto comprido e amarelado, amparado pelos médicos e pelos sete anjos da guarda, Arnaldo saiu do hospital. Era 7 de maio de 1982. A partir daí, começava a terceira tarefa da remodelagem de um homem.

Era necessário trazê-lo de volta para o mundo.

Seu primeiro paradeiro foi o apartamento da mãe, dona Clarisse, no aristocrático bairro de Higienópolis. Logo, porém, a solidão começou a levá-lo para o arcabouço da depressão, uma velha amizade íntima. A mente de Arnaldo, outrora brilhante, não é a mesma dos feéricos tempos da Tropicália e dos Mutantes. Não bastassem os muitos anos de contínua corrosão por drogas pesadas — que Arnaldo andou consumindo em excesso —, não bastassem as dores amorosas causadas por sua tortuosa separação de Rita (por coincidência o ex-Mutante tentou o suicídio no dia do aniversário de Rita), ele sofreu, na queda, graves lesões. Sônia e Lucinha conseguiram, então, convencer dona Clarisse de que o melhor seria tirar o cantor/compositor do apartamento. E assim foi feito.

“Posso fumar mais um cigarro?”

As duas mulheres não concedem. É preciso esperar mais alguns minutos. No apartamento do bairro de Pinheiros, Sônia e Lucinha, temerosas de que Arnaldo prejudicasse sua recuperação com os cinco maços que vinha fumando por dia, se transformaram em suas guardiãs. Em suas sombras. Seguem-no por todos os cantos. Cuidaram de submetê-lo a um tratamento de fisioterapia, que conseguiu em alguns meses recuperar o braço esquerdo, paralisado após o acidente. Compraram um miniórgão Minami, com pedal e dois teclados, para que Arnaldo volte à música. Dedicaram-se à divulgação de Singin’ Alone, o LP que o ex-Mutante gravou pouco antes do fatídico 31 de dezembro de 81. Levaram Arnaldo para tratar-se num intensivo regime de psicoterapia de grupo com o analista Sérgio Rigoratti — que, segundo Lucinha, “está desbundado com a incrível recuperação do paciente”. Em suma: Sônia e Lucinha abdicaram de suas próprias existências em favor da de Arnaldo.

Lucinha já não tem tempo de cuidar de sua loja de roupas (Por um fio) e deixa esse encargo para a irmã. Sônia, uma sempre esfuziante e irrequieta discotecária, produtora de shows e divulgadora, transformou-se no alter-ego de Arnaldo, levando-o para passeios, abrindo o contato do amigo com o mundo exterior.

“Gostei muito do disco do Dusek”, diz Arnaldo, dando baforadas em mais um cigarro, 20 minutos depois do anterior.

Sônia intervém: “Ele também adorou o disco do Lobão.”

Se um lampejo de total lucidez iluminasse, um instante que seja, a mente de Arnaldo, ele seria capaz de avaliar o quanto o seu trabalho influenciou, diretamente, músicos como Eduardo Dusek e Lobão (ex-baterista da Blitz). Num país em que poucos artistas conseguiram filtrar a música de rock para uma visão brasileira, em vez de simplesmente imitar e armar pastiches de grupos e cantores estrangeiros, a figura de Arnaldo Dias Baptista é singular. Cérebro dos Mutantes, foi quem deu as primeiras lições de do que poderia ser um rock ao mesmo tempo aberto às influências de fora, mas calcado numa tradição brasileira — num perfeito arranjo tropicalista.

Bem-nascido, filho do falecido secretário particular do ex-governador Adhemar de Barros, César Dias Baptista, Arnaldo foi um típico garotão urbano dos anos 60, que amava os Beatles e os Rolling Stones e subia a rua Augusta a 120 por hora. Tocando contrabaixo elétrico, montou, em 65, com o guitarrista Sérgio, seu irmão, um grupinho chamado The Wooden Faces (os Caras de Pau). No ano seguinte, a formação foi acrescida de Rita Lee Jones, uma garotinha sardenta e alegre, filha de um dentista americano do bairro classe média de Vila Mariana. Com a chegada de Rita, os Wooden Faces mudaram o nome para O Conjunto e, depois, O’Seis. Gravaram um compacto de estreia, “O Suicida”, que tratava de um sujeito que se atira do Viaduto do Chá (uma triste ironia com Arnaldo, que tentaria o suicídio 15 anos depois).

O grupo chegou à TV Record dos bons tempos, que o incluiu no cast do programa vespertino de Ronnie Von. Fã da literatura de Ray Bradbury e outros mestres da ficção científica, Ronnie sugeriu a Arnaldo que mudasse, de novo, o nome da banda, desta vez para Os Mutantes.

Sérgio, Rita e Arnaldo gravavam os vocais de apoio para um disco de Nana Caymmi. Quando Gilberto Gil (na época, casado com Nana) topou pela frente com aqueles três garotos criativos, irreverentes e muitíssimo bem-humorados, resolveu logo apadrinhar Os Mutantes e soerguê-los para círculos, digamos, mais sérios da MPB. A esse encontro seguiu-se a memorável participação do grupo no antológico “Domingo no Parque”. O resto é história. Ou seja: à frente dos Mutantes, o garoto Arnaldo Dias Batista colocou seus conhecimentos musicais e seu privilegiado sendo de humor a serviço de canções como “Ando meio desligado”, “Don Quixote”, “Caminhante noturno”, “Mande um abraço para a velha”, “Top-top” e muitas outras. Entre 68 e 72, o grupo gravou cinco Lps repletos de boas ideias e altíssimo astral. E, em 72, ainda, Arnaldo produziu um ábum brilhante para Rita Lee, “Hoje é o primeiro doa do resto da sua vida” — na realidade, um disco dos Mutantes.

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Logo depois, entretanto, a barra começou a pesar. Primeiro, muitas drogas. Depois, a perda da linha musical — comprometida pelas influências da terceira geração do rock britânico, como Yes e Emerson, Lake & Palmer, notadamente. Em seguida, a gota d’água. Rita Lee deixa os Mutantes (ou é deixada por eles). Barra pesada. Rita Lee deixa Arnaldo. Barra pesadíssima.

Dois anos depois, Arnaldo Batista gravou seu primeiro disco-solo, Loki? (sintomaticamente, uma gíria paulista para louco ou mané). O LP, com capa do artista plástico Antônio Peticov e alguns arranjos do mago Rogério Duprat, passaria para a história da MPB como um dos álbuns mais pessoais e estranhos já gravados. Loki? é ainda hoje tão instigante quanto o foi na época. O clima do disco (“Será que eu vou virar bolor? Será que eu vou morrer de dor?”) forçou uma comparação com The Madcap laughs (O Louco ri), um dos dois álbuns-solo de Syd Barret, um guitarrista que revolucionou a ideia de canção popular no final dos anos 60, mas escondeu-se nos labirintos da loucura na década seguinte, abandonando (forçosamente) a carreira e o contato social. Loki? Acaba de ser relançado numa tiragem de três mil discos.

Arnaldo, inteirado na conversa, emenda: “Loki? é muito mais engraçado do que o segundo disco que gravei, Singin’ Alone. Syd Barret? Não. Loki? vai muito mais para o lado do Frank Zappa.”

Depois de Loki?, casado novamente, com Marta, quase sósia de Rita Lee e mãe de seu único filho, Daniel, hoje com seis anos de idade, Arnaldo Baptista refugiou-se num sítio da serra da Cantareira. Tentou novos projetos musicais com o grupo Patrulha do Espaço e outros. Mas nunca mais seria o mesmo. Descasou. Casou-se de dovo. Nunca mais o incrível bom humor nas letras. Um segundo álbum-solo, um novo alento. Mas nunca mais a irreverência, o riso solto. Suas obsessões passaram a ser os livros de física moderna. E a morte.

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De cigarro em punho, no apartamento de Pinheiros, o riso vitrificado e estranho, o sensível Arnaldo Dias Batista fala do seu salto para a morte no dia 31 de dezembro, o horrível dia 31:




“Tenho a consciência de que pulei para fugir do manicômio. Tinha uma visão de que era muito difícil sair de lá. Dormia cercado por quatro loucos e duas enfermeiras. Os remédios… Aí… Fugi… E nunca mais voltei.”

O sorriso continua grudado na boca. Sônia Abreu tenta mudar de assunto, poupar Arnaldo. Mas ele está disposto a falar sobre a sua nova vida.

“É um reaprendizado. Tenho de reaprender o que já sabia… Aí vou me casar com a Lucinha…”

Sobre a alegria de viver:

“A alegria depende do nível de criatividade da pessoa. A arte é a melhor profissão que há no mundo. A vida está tão ruim que só a arte se salva e é uma voisa boa. Até nas guerras os artistas vão para entreter. E não para lutar e matar.”

Sobre o seu dia a dia:

“Levanto, toco órgão, faço tratamento e depois saio um pouco. Entro em contato com o punk rock, a new wave. No fundo, é tudo consequência do rock ‘n’ roll, não é mesmo?”

Sobre Rita Lee:

“Rita me incentivava o lado do humor… Acho que com o Roberto [Carvalho], ela foi mais para o lado romântico. Acho que “Flagra”, uma música que adoro, foi feita para mim.”

Sônia interrompe. Conta, alegre, que Arnaldo está de volta à música e até já deu um show no TUCA, terça-feira passada. Sônia percebe o significado terapêutico que isso vai ter.

E aí está, mais uma vez com vocês, Arnaldo Baptista. Tentando e tentando de novo.

“Posso acender mais um cigarro?”

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