Do outro lado da avenida

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Por Thelma Kay, jornalista – 

Essas duas fotos foram tiradas no mesmo lugar, o cruzamento da Faria Lima com a Gabriel. Foram tiradas no mesmo horário. Cada uma de um lado da avenida. E com intervalo de 2 anos, 2 meses e 24 dias entre elas. A primeira foto é de 23 de outubro de 2015. Não me esquecerei da data, por ter ficado marcada como um daqueles sinais que o destino às vezes dá. No meu caso, o dia 23 de outubro marcou exatamente o fim de um ciclo e, de uma maneira por demais coincidente para ser realmente apenas coincidência, o início de outro.

Em 2015, naquele dia e horário, eu estava do lado ímpar da avenida. Tinha o coração leve como pluma, por ter resolvido uma situação pessoal que durante mais de 10 anos havia magoado uma pessoa muito querida, além de mim mesma. De certo modo, alguém se foi naquele dia. Não alguém físico; mas uma persona, criada em um contexto cruel, era derrotada, pegava suas coisas e saía de cena. Talvez justamente por isso, uma porta possa ter ficado aberta. Pouco depois, no mesmo dia, uma pessoa chegou e creio que viu a porta aberta. Nesses 2 anos, 2 meses e 24 dias, passei poucas vezes pela Faria Lima – e estranhamente, não pelo tal cruzamento.




Hoje, por uma outra coincidência dessas muito estranhas, pela manhã me aconteceu de novo o encerramento de um ciclo. Uma última pendência resolvida e mais uma vez senti meu coração leve como pluma. Peguei um ônibus que passaria pela Faria Lima, mas juro que no momento não me lembrei do cruzamento. Estava absorta nos meus pensamentos, ouvindo música e observando a vida e as histórias, como gosto de fazer. Mas o destino realmente gosta de chamar a atenção da gente.

O ônibus parou em um semáforo e me deixou cara a cara com o local onde estive em 2015. Nos minutos em que permaneci ali, pensei com uma certa tristeza na incrível coincidência de a vida ter me trazido ao local exato em que meu último ciclo foi iniciado, exatamente no dia em que ele agora se encerra. E dessa vez, eu estava do lado par da avenida. Tirei a segunda foto, a de baixo. O semáforo abriu e o ônibus seguiu, mas essas palavras ficaram martelando-me a mente: “Estou do outro lado”.

Como um professor que repreende seu aluno que se recusa a aprender a algo, ali estava o destino me chamando: “Ei, preste atenção, isto não é à toa, tenho algo importante para você ver”. Pensei na metáfora da porta. Na persona cruel que havia saído por ali e deixado uma criatura abandonada e sozinha no quarto. Pensei na pessoa que entrou pela porta, encontrou essa criatura, e em tudo que aconteceu depois. E pensei que agora essa pessoa também havia saído pela mesma porta. “Estou do outro lado”.

Percebi que a criatura havia atravessado a rua – uma metáfora que usei muito nos últimos anos, a incapacidade dessa criatura estar sozinha por não saber sequer atravessar uma rua sem pegar na mão de alguém. Mas aqui estava ela agora, do outro lado. E sei que não teria sido possível se uma pessoa não tivesse entrado por aquela porta. O trabalho havia terminado e estava a contento: a criatura de dois anos atrás estava modificada de maneira irreversível e necessária.

E constatando ter finalmente chegado ao outro lado, ter saído do quarto, a criatura virou-se. Fechou e trancou a porta que havia ficado mais uma vez entreaberta, olhou para o lado novo da avenida, cheio de coisas desconhecidas deliciosas e horríveis, respirou fundo e seguiu.

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