Escuta na cela 5, a ilegalidade inaugural da Lava Jato

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A história da instalação de um grampo clandestino – e o empenho da PF em esconder tudo

Por Felippe Aníbal, compartilhado da Revista Piauí




O agente policial federal Dalmey Fernando Werlang tomava café com a tevê ligada, na manhã de 17 de março de 2014, no sobrado em que morava, no bairro Santa Cândida, em Curitiba. Atento ao noticiário, ficou espantado com o que assistia: uma operação de enorme dimensão deflagrada pela Polícia Federal e pelo Ministério Público Federal. A força-tarefa, dizia o telejornal, havia prendido várias pessoas, entre as quais quatro doleiros. Um deles era um velho conhecido das autoridades do Paraná: Alberto Youssef, que, anos antes, ganhara certa notoriedade ao firmar o primeiro acordo de delação premiada do Brasil, no âmbito do escândalo do Banestado. Impressionado com o tamanho da mobilização, Werlang exclamou para si mesmo: “Pô, puta operação!”

Quando chegou ao trabalho, na Superintendência Regional da PF no Paraná, também no bairro Santa Cândida, Werlang encontrou colegas empolgados com a magnitude da operação, que, até o final do dia, cumpriu 28 mandados de prisão, fez 19 conduções coercitivas e 81 operações de busca e apreensão. Era a primeira fase de uma investigação que atrairia todos os holofotes e convulsionaria a política nacional: a Operação Lava Jato, cujo nome brincava com o fato de que o posto de combustíveis, o ponto inicial das investigações, era usado para lavar dinheiro.

Lotado no Núcleo de Inteligência Policial (NIP) e reconhecido como especialista em escutas ambientais e grampos telefônicos, Werlang conta que sua sorte começou a mudar já naquela manhã de março, enquanto a operação se desenrolava em seis estados e no Distrito Federal. Em entrevista à piauí, a primeira que concedeu a um veículo de comunicação, Werlang disse que, por volta das dez da manhã, três autoridades entraram em sua sala: Rosalvo Ferreira Franco, o superintendente da Polícia Federal no Paraná, e dois delegados, Igor Romário de Paula e Márcio Adriano Anselmo, ambos da Lava Jato.

Na conversa, segundo Werlang, ele recebeu a ordem de instalar uma escuta ambiental na cela que viria a ser ocupada por alguns dos presos na operação recém-deflagrada. As gravações obtidas pela escuta ambiental deveriam ser repassadas, de tempos em tempos, ao próprio delegado Márcio Anselmo ou para a delegada Érika Mialik Marena, também integrante da força-tarefa da Lava Jato. Werlang não precisava saber a identidade dos presos, mas o delegado Igor Romário de Paula lhe passou a informação informalmente. “O Igor fez um croqui”, conta ele, referindo-se ao desenho da cela em que os presos ficariam. “Aí, ele abriu que era a cela que o Youssef ia ficar.”

Havia algumas horas para o trabalho, enquanto os alvos eram deslocados dos estados em que foram presos até a Polícia Federal em Curitiba. Youssef, por exemplo, recebera voz de prisão em um hotel de luxo em São Luís, no Maranhão. Werlang arregaçou as mangas. Preparou um áudio transmissor modelo AT-160 para ser instalado dentro da cela indicada. O dispositivo tem o tamanho aproximado de uma caixa de fósforos, mas sua espessura é de cerca de 1 cm. Acoplado a uma fonte que se retroalimenta e pode ser ligada à energia, a escuta capta o áudio do ambiente e transmite o conteúdo para um receptor conectado a um computador, gravando e arquivando tudo. Montado deste modo, o sistema trabalha de forma ininterrupta. “É o que a gente chama de grampo infinito”, diz o agente.

No início da tarde, em torno das 14 horas, Werlang recebeu uma ligação do agente Paulo Romildo Rossa Filho, responsável pela carceragem da PF. Bolacha, como o agente é conhecido, lhe informou que os presos – de outras operações – haviam sido removidos para um pátio e que estava tudo certo para fazer a instalação da escuta na cela. (Numa sindicância fajuta, Bolacha negou tudo. Outra sindicância, realizada para revisar a primeira, concluiu que a negativa era mentirosa.) Werlang e sua colega, a agente Maria Inês Malinowski de Paris Slussarek, vestiram um jaleco azul, disfarçando-se de funcionários da manutenção, e foram à carceragem. Ali, dirigiram-se à cela número 5 e, em menos de uma hora, a escuta ambiental estava instalada em uma abertura do teto, semelhante ao espaço onde se acopla um bocal de lâmpada.

Werlang explicou a rotina: “Fiz as instalações, os testes. A Mari [Slussarek] subiu lá [até a sala do computador ligado ao receptor], viu que estava chegando o sinal. E pronto. Deixei o dispositivo gravando [as conversas] num DVR. […] Lotou, eu pegava o cartão, baixava na minha máquina, pegava um pen drive e entregava para o Márcio Anselmo ou para a Érika [Marena].”

Na cela 5, a Polícia Federal alojou cinco presos da Lava Jato. (Outros dois, que já estavam detidos ali, foram removidos dias depois.) Além do doleiro Alberto Youssef e seu braço direito, Carlos Alexandre de Souza Rocha, o Ceará, havia outro doleiro, Luccas Pace Júnior, que viria a firmar a primeira delação premiada da Lava Jato. Completavam o quinteto o advogado Carlos Alberto Pereira da Costa, apontado como laranja de Youssef, e André Catão de Miranda, gerente de um posto de combustíveis onde se dava a lavagem de dinheiro. A escuta gravou as conversas na cela durante quase onze dias e rendeu mais de 260 horas de gravação, mas nem tudo funcionou exatamente como o planejado.

Na noite de 10 de abril, mais de três semanas depois da instalação da escuta, Werlang retornava de uma missão em Juiz de Fora, quando fez uma escala no Rio de Janeiro. No aeroporto, examinou seu celular e encontrou mensagens do delegado Igor Romário de Paula, um dos que deram a ordem para instalar o grampo. O delegado enviou a foto de um dispositivo e perguntou se aquele era o aparelho instalado na cela 5. Werlang reconheceu que sim, e a resposta do delegado veio em tom grave. “Ele disse: ‘Amanhã, no primeiro horário, quero conversar contigo.’”

No dia seguinte, logo que chegou ao trabalho, o delegado Romário de Paula foi até sua sala. Segundo Werlang, ele entrou, fechou a porta e, com semblante duro, ordenou que apagasse todas as gravações feitas pelo grampo da cela 5. Werlang não entendeu a razão da ordem e, segundo sua reconstituição, deu-se o seguinte diálogo:

– Mas o que houve, doutor? – estranhou Werlang, para, em seguida, levantar um motivo para aquela ordem peremptória. – Vocês não tinham autorização judicial para a escuta?

– Não – respondeu o delegado. – Nós não tínhamos pedido… – disse, sem concluir a frase.

– Porra! – exclamou Werlang. – Vocês fazem uma operação desse tamanho e não tinham autorização judicial?

Enquanto esse diálogo acontecia, a imprensa já veiculava uma fotografia, na qual Alberto Youssef, com a barba por fazer, aparecia mostrando, com as mãos estendidas, a escuta ambiental encontrada em sua cela. Naquela altura, ninguém sabia, mas a foto era a comprovação da primeira das inúmeras ilegalidades que a Lava Jato cometeria em seu curso. Mas, como uma mentira inicial costuma produzir mentiras em série, o caso do grampo – detalhado pela primeira vez nesta reportagem – é uma radiografia minuciosa de como a força-tarefa da Lava Jato agiu para ocultar ilegalidades e ilicitudes.

Odoleiro Alberto Youssef só chegou à carceragem da Polícia Federal em Curitiba depois das nove da noite daquele 17 de março de 2014, mais de catorze horas depois de ter sido preso no Maranhão. Passou pela sala de triagem e, em seguida, foi encaminhado para a cela 5, dividindo o espaço com outros detidos. No dia seguinte, os presos resolveram revistar o local para se certificarem de que estava tudo certo. O advogado Carlos Alberto Pereira da Costa era o mais alto deles e se encarregou de examinar os vãos no teto. Na mosca. Não demorou a encontrar o dispositivo da escuta ambiental.

Assim que o equipamento foi puxado para fora, Youssef, doleiro escaldado no ambiente carcerário, fez um sinal aos colegas de cela pedindo silêncio e, com gestos, orientou que o advogado colocasse a escuta de volta. (A reconstituição dessa cena foi feita pelo próprio Youssef, quando prestou depoimento, em junho de 2019, à Corregedoria-Geral da PF. A piauí teve acesso ao depoimento.) Ele contou que, dois ou três dias depois, recebeu a visita de um de seus advogados, no parlatório da PF. Como as conversas eram gravadas, o doleiro escreveu um bilhete, informando que encontraram o grampo. O advogado Luis Gustavo Rodrigues Flores escreveu em seu celular: “Deixa quieto.”

Terminada a visita, o advogado pôs em prática seu plano. Mandou um pedido de esclarecimento para o juiz responsável pelo processo da Lava Jato, Sergio Moro. Sem revelar a descoberta, perguntou se havia autorização judicial para a instalação de alguma escuta ambiental na cela de seu cliente. Dias depois, o advogado recebeu a resposta: não, a Justiça não autorizara interceptação ambiental. No dia 4 de abril, os presos removeram a escuta para que Youssef, durante nova visita dos advogados, se deixasse fotografar com o material nas mãos. Quando o doleiro voltou à cela, o dispositivo foi recolocado no mesmo local onde estava. Seus advogados agora tinham a prova visual da fraude – que, uma semana depois, foi vazada para a imprensa.

Com a divulgação da foto, os integrantes da Lava Jato ficaram apavorados. O episódio ilegal podia comprometer a operação. Preocuparam-se à toa. A imprensa divulgou a foto, mas não foi além disso. Afinal, Alberto Youssef era mesmo um doleiro e já até estrelara outro escândalo. Não seria uma escuta ilegal qualquer a atrapalhar uma faxina contra a corrupção. No dia seguinte à veiculação da foto, a Polícia Federal retirou todos os presos da carceragem de Curitiba e fez uma revista nas celas. Youssef contou em seu depoimento em 2019 que, quando voltou à cela 5, o grampo fora removido.

Apesar do apoio da imprensa e da opinião pública à Lava Jato, a Polícia Federal não podia ficar parada diante da evidência visual da escuta ilegal na cela 5. Cinco dias depois, em 15 de abril, instaurou uma sindicância – número 04/2014 – para apurar o caso. Conduzida pela superintendência da corporação no Paraná – que comandava a Lava Jato, ao lado da procuradoria do Ministério Público Federal no estado –, a sindicância colocava Werlang em dificuldades. Afinal, ele e sua colega haviam instalado a escuta, que ele supunha que tivesse sido autorizada pela Justiça. Afinal, recebeu ordem do próprio superintendente da PF, o delegado Rosalvo Franco. À piauí, ele conta que não se questiona uma ordem da chefia. “Não tinha chance de dizer: ‘Mas cadê o alvará da Justiça?’ Iam me dizer: ‘Qual é, Dalmey? Tá desconfiando da gente?’”, disse. “Para todos os efeitos, eu estava fazendo um serviço legal.”

Agora, havia uma sindicância que podia arrebentar sua carreira. Mas, de novo, era uma preocupação à toa. Nos corredores da PF, se dizia que a investigação seria feita de modo a blindar a Lava Jato, evitando a mácula da ilegalidade que poderia invalidar a operação. Era verdade. Werlang conta que o delegado encarregado da sindicância, Maurício Moscardi Grillo, logo o procurou e deu o caminho para o acobertamento. Disse que Werlang deveria fazer um memorando dizendo que o grampo havia sido instalado em outra operação – e, inadvertidamente, não foi removido. Que operação? Moscardi sugeriu que fosse algo no período em que o traficante Fernandinho Beira-­Mar ficou preso na cela 5, entre os dias 1º e 5 de abril de 2008, seis anos antes.

Werlang nem foi ouvido pela sindicância. Em seu memorando técnico, de três páginas, ele não faz referência a nenhuma outra operação. Limita-se a descrever qual era o tipo de escuta encontrada na cela. Em 19 de agosto de 2014, Moscardi concluiu a sindicância recorrendo à farsa de que o grampo fora esquecido na cela. Em seu relatório, ao qual a piauí teve acesso, disse: “Podemos certificar que o aparelho […] estava inoperante e teria sido colocado naquele local em outro momento investigado e com autorização judicial.” Menciona, então, a escuta instalada na época em que Beira-Mar estava detido em Curitiba.

Em sua conclusão, Moscardi faz a defesa da Lava Jato e ataca Youssef e seus advogados, acusando-os de difundir “o fato de maneira irresponsável na convicção de tumultuar e ocasionar alguma espécie de nulidade formal para a Operação Lava Jato”. Moscardi então sugere à Corregedoria Regional e à Superintendência da PF no Paraná a instauração de inquérito para apurar a prática de denunciação caluniosa por parte de Youssef e de falso testemunho por outro preso, ouvido ao longo da sindicância. O delegado encerrou o documento com uma frase de efeito: “Frisa-se, por fim, que o Departamento da Polícia Federal, como órgão de segurança pública com atribuição constitucional, não está à mercê do oportunismo de criminosos.”

O inquérito nunca foi aberto, mas a Lava Jato estava blindada.

Oepisódio do grampo ilegal parecia resolvido, mas o caso criou uma atmosfera pesada na Superintendência da PF em Curitiba, como se houvesse ali uma turma a favor da Lava Jato e outra turma trabalhando contra a operação. Dalmey Werlang começou a se sentir escanteado. Havia colegas que só lhe dirigiam a palavra quando estritamente necessário. “Começou um clima ruim. Eu me isolei bastante. Até para trabalhar, eu preferia trabalhar sozinho”, disse ele. Sob a justificativa de proteger o sigilo das investigações da Lava Jato, o NIP, onde Werlang atuava, foi orientado a não compartilhar informações com as superintendências da PF em outros estados, sobretudo com Brasília. “Curitiba virou uma caixinha-­preta”, diz Werlang. “E eu ali dentro: se correr o bicho pega, se ficar o bicho come.” Ele conta que a ligação com Brasília, antes umbilical, passou a ser abertamente desestimulada pelo delegado Romário de Paula e sua mulher, a também delegada Daniele Gossenheimer Rodrigues, chefe do NIP. “Eles começaram a podar. [Diziam:] ‘Não pode mandar nada para Brasília sem o nosso conhecimento.’”

O clima piorou quando, no segundo semestre de 2014, alguém vazou para a imprensa cópias de postagens de conteúdo político feitas pelos delegados da Lava Jato em perfis do Facebook, que estavam abertos apenas para amigos. Era período eleitoral, com uma disputa acirrada entre a petista Dilma Rousseff e o tucano Aécio Neves. As publicações dos delegados mostravam ataques ao PT e elogios ao tucano. Em uma das postagens, Márcio Anselmo chamava Lula de “anta”. Em outra, Moscardi compartilhou um conteúdo do PSDB, que dizia: “Contas do PT em paraísos fiscais. Lula e Dilma sabiam de tudo!” Os delegados Romário de Paula e Érika Marena também postavam conteúdos antipetistas. Começou uma caça interna aos “dissidentes”, como passaram a ser chamados os delegados contrários à Lava Jato.

Nesse contexto, Werlang foi chamado pela delegada Daniele Rodrigues, que ordenou a instalação de uma escuta ambiental no fumódromo da PF. A intenção era ouvir o que delegados e agentes conversavam ali. Werlang, ressabiado do caso da cela 5, questionou a legalidade da interceptação, mas a delegada disse que a medida se tratava de “segurança orgânica” e, portanto, não requeria autorização judicial. Ele cumpriu a ordem, mas o equipamento, por dificuldades técnicas, só captou conversas inaudíveis.

A ofensiva contra os “dissidentes” resultou na abertura de dois inquéritos. Um deles, número 768/2014, deveria investigar o vazamento para a imprensa de uma investigação que apurava o uso de celular na cela de Youssef. O outro, número 737/2015, era ainda mais direto: investigava os delegados e agentes sob a suspeita de que estavam produzindo um dossiê contra a Lava Jato. Para dar ares de imparcialidade, os dois inquéritos ficaram a cargo de um delegado de outro estado: Mário Renato Castanheira Fanton, então lotado em Bauru, no interior de São Paulo. Fanton, no entanto, fora escolhido por Moscardi, o titular da sindicância fajuta, de quem era amigo.

Mas aconteceu o imprevisto. Deslocado para fazer seu trabalho em Curitiba, Fanton não cedeu às relações pessoais, nem à proximidade com os lavajatistas, e cumpriu seu trabalho à risca. Suas conclusões são demolidoras. No inquérito 768/2014, sobre o vazamento da investigação a respeito do uso de celular de Youssef, Fanton descobriu que o celular usado pelo doleiro fora fornecido pela própria PF com objetivos escusos. Afirmou que o casal Romário de Paula e Daniele Rodrigues tentou “encobrir a própria responsabilidade no fornecimento de telefones celulares aos presos da Lava Jato na carceragem da Polícia Federal com o fim de produzir prova ilícita na operação ou nortear os caminhos da investigação de forma oculta”.

No outro inquérito, Fanton denunciou que o casal Romário de Paula e Daniele Rodrigues, associados ao delegado Moscardi, lhe faziam pressão para direcionar as diligências, adotando práticas “muitas vezes ilícitas, de forma que a apuração fosse uma farsa dirigida a interesses pessoais escusos”. Citou um exemplo. Disse que recebeu ordem para destruir o termo de depoimento da doleira Nelma Kodama, porque seu conteúdo comprometia uma servidora da PF ligada à delegada Daniele Rodrigues.

Fanton informou o juiz da Lava Jato, Sergio Moro, então titular da 13ª Vara Federal de Curitiba, sobre os desmandos internos da PF. “Vi interferência do Igor [Romário de Paula] e da mulher dele [Daniele Rodrigues]. O delegado Maurício Moscardi, que era meu amigo de longa data e que teria feito meu recrutamento, deu palpite”, relatou Fanton, ainda em 2015, ao ser ouvido na condição de testemunha em uma ação penal conduzida por Moro. “Era um clima de instabilidade. Não tinha liberdade. Eu estava sendo supervisionado”, definiu.

Como as investigações eram para valer, Werlang resolveu procurar Fanton. Relatou que instalara a escuta na cela 5 por ordem de dois delegados, Romário de Paula e Márcio Anselmo, na presença do superintendente Rosalvo Franco. Werlang lembra como terminou a conversa com Fanton. “Ele me disse: ‘Não tem mais saída. Eu não vou morrer com isso no meu colo.’” Fanton tomou o depoimento de Werlang, informou os fatos ao procurador Januário Paludo e fez uma sugestão – prontamente aceita – de que o caso fosse levado ao comando nacional da PF, já que envolvia a maior autoridade da corporação no Paraná. Afinal, na versão narrada por Werlang, o caso envolvia associação criminosa, falsa perícia, denunciação caluniosa e uso de documento falso – tudo isso, dentro da própria Polícia Federal.

No dia 4 de maio, pouco mais de dois meses depois de ser convocado em Bauru para fazer as duas investigações, Fanton foi afastado dos inquéritos. O superintendente da PF, Rosalvo Franco, usando sua prerrogativa de definir os titulares de inquéritos, tomou a decisão de afastá-lo. As investigações passaram a ser conduzidas pela delegada Tânia Maria de Matos Ferreira Fogaça, da Corregedoria-Geral da PF.

No mesmo dia, Werlang também foi afastado do NIP. Quando foi recolher seus pertences em sua sala, o agente acessou as pastas de seu computador onde havia um backup dos áudios gravados pela escuta ambiental instalada na cela de Youssef. Até aquele instante, Werlang não tinha ouvido nem por curiosidade as gravações. Decidiu, então, acessar os últimos áudios gravados – e não demorou a identificar o momento exato em que a escuta foi removida pelos presos. “Lá, eu procurei dentro do arquivo, eu procurei encontrar um ruído que fugia do padrão de voz. Aí, ouvi e tinha um barulho rrrrrrrrr”, contou o agente, imitando o ruído provocado pela retirada do dispositivo. “Eu falei: ‘Pô, ali arrancaram’”, acrescentou. Na mesma hora, informou que seu computador deveria ser apreendido para a sindicância.

Alertada pelo delegado Mário Fanton, a Corregedoria-Geral da Polícia Federal, em Brasília, resolveu investigar o assunto. Abriu uma sindicância, de número 04/2015. Werlang foi ouvido três vezes. Na primeira, em 12 de maio de 2015, poucos dias após a revelação da escuta e de sua remoção do NIP, sentiu a animosidade dos dois delegados que lhe tomaram o depoimento. “Me senti um traficante sendo ouvido ou coisa assim”, definiu. Dias depois, a perícia no seu computador no NIP encontrou as gravações da cela 5 – e as coisas começaram a mudar. Werlang foi reconvocado e ouvido novamente nos dias 27 e 28 de maio. Nesta ocasião, a atmosfera era outra. “Me chamaram: ‘Dalmey, você precisa ser ouvido de novo, porque aquilo que você tinha dito se comprovou com o resultado da perícia.’ Foi outro tratamento”, relatou.

piauí teve acesso ao relatório final da investigação da Corregedoria-Geral da PF. São 61 páginas e um conteúdo definitivo. A agente Maria Inês Slussarek confirmou que auxiliou Werlang na instalação do grampo na cela 5 e lembrou que seu colega mencionara que a demanda viera do “pessoal da cúpula”. A tese fabricada na sindicância comandada por Moscardi, de que se tratava de um grampo antigo, instalado nos tempos da prisão de Fernandinho Beira-Mar, desmoronou. A investigação mostrou que o equipamento de escuta na cela 5 fora adquirido pela PF apenas em setembro de 2008, cinco meses depois da passagem do traficante pela carceragem de Curitiba.

A perícia encontrou as mais de 260 horas de gravação no computador de Werlang e identificou que as gravações começaram desde o primeiro dia em que os presos chegaram à cela 5. (Como o grampo foi descoberto de imediato, especula-se que as gravações não captaram nenhuma conversa comprometedora, já que os presos sabiam que estavam sendo gravados. No entanto, a defesa de Youssef, representada pelos advogados Luis Gustavo Rodrigues Flores e Giovana Ceccilia Menegolo, até hoje – nove anos depois – não conseguiu acesso ao teor das interceptações.)

Quando foram ouvidos pelos investigadores da Corregedoria-Geral, os agentes federais negaram tudo. Os delegados Romário de Paula e Márcio Anselmo, bem como o superintendente Rosalvo Franco, negaram ter se reunido com Werlang e ordenado a instalação do grampo. A delegada Érika Marena negou que tenha recebido áudios da interceptação. Moscardi negou que tivesse procurado Werlang para falar do grampo e negou – neste caso, de maneira indireta – que tenha sugerido vincular o grampo à passagem de Beira-Mar por Curitiba. Daniele Rodrigues não foi ouvida.

Na conclusão, o delegado Alfredo José de Souza Junqueira, que conduziu a sindicância aberta em Brasília, informou que, na sindicância fajuta, os depoimentos de três suspeitos – os delegados Romário de Paula e Márcio Anselmo e o agente Paulo Romildo Rossa Filho, o Bolacha – continham frases idênticas, até com os mesmos erros de concordância nominal. Um trecho dizia que “se localizou no colchão utilizado pelo presos Alberto Youssef”. Junqueira levantou duas hipóteses: “Ou houve um direcionamento deliberado na colheita dos depoimentos ou houve um aproveitamento dos textos entre os depoimentos. De qualquer modo, tais coincidências demonstram que não houve o registro fiel do exato ponto de vista de cada um dos depoentes.”

O delegado concluiu que a escuta ilegal não fora instalada por Werlang “de maneira espontânea” e havia “indícios de que estava atendendo ordem superior”, mas não conseguiu apontar os mandantes, pois, sobre “a exata origem de ordem”, tinha apenas “provas testemunhais”. De todos os investigados, apenas um – o delegado Moscardi – respondeu a um processo administrativo disciplinar, diante das evidências de que forjou uma sindicância. Concluído o processo, Moscardi foi punido com uma pena levíssima: oito dias de suspensão.

Mas a entrada de Sergio Moro no governo de Jair Bolsonaro seria um presente para todos os investigados. Na sua gestão, o Ministério da Justiça anulou a condenação de oito dias de suspensão de Moscardi. Moro também promoveu o delegado Romário de Paula a diretor de Investigação e Combate ao Crime Organizado, um órgão do ministério. Rosalvo Franco, o superintendente da PF do Paraná, assumiu o cargo de secretário de Operações Integradas do Ministério da Justiça. A delegada Érika Marena tornou-se diretora do Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional. (Márcio Anselmo não precisou de Moro. Durante o governo de Michel Temer, ele foi promovido a coordenador-geral do Departamento de Repressão à Corrupção e Lavagem de Dinheiro da PF.) Com a saída de Moro do Ministério da Justiça, todos deixaram os respectivos postos.

(A nomeação de Érika Marena, ainda que por um período curto, deu curso à sua carreira, depois de um caso rumoroso – e dramático. Em 2017, ela comandava a Operação Ouvidos Moucos, que investigou supostas irregularidades em contratos feitos pela Universidade Federal de Santa Catarina. Em setembro daquele ano, a operação prendeu o reitor Luiz Carlos Cancellier de Olivo. Solto 36 horas depois, ele foi proibido de entrar no campus. Dezoito dias depois da prisão, suicidou-se, deixando um bilhete: “A minha morte foi decretada quando fui banido da universidade.” Neste ano, o Tribunal de Contas da União anunciou que não encontrou nenhuma irregularidade contra o reitor. Agora, seis anos depois, o Ministério da Justiça, ocupado por Flávio Dino, vai investigar os abusos da operação da delegada.)

Em 2015, enquanto corria a investigação da Corregedoria-Geral da PF, Werlang e Fanton foram ouvidos na CPI da Petrobras, instaurada na Câmara dos Deputados. Os dois também prestaram depoimento ao juiz Sergio Moro em um dos processos da Lava Jato, porque foram convidados como testemunhas de executivos da Odebrecht, a rainha do escândalo dessa operação. Tanto para os parlamentares quanto para Sergio Moro, os dois contaram do grampo ilegal e das manobras ilícitas para blindar a Lava Jato. Nem a CPI nem Sergio Moro tomaram qualquer providência sobre o episódio.

Todos eles – Rosalvo Franco, Romário de Paula, Daniele Rodrigues, Márcio Anselmo, os advogados de Moscardi e Érika Marena, e a direção da Polícia Federal – ergueram um muro de silêncio. Procurados pela piauí, informaram que não dariam entrevista, ou não responderam. A reportagem também perguntou ao hoje senador Sergio Moro se ele tomou alguma medida sobre as ilicitudes na Lava Jato, e pediu que, em caso positivo, especificasse quais medidas, e, em caso negativo, expusesse as razões da inação. Em nota, o senador não respondeu nem uma coisa, nem outra. Disse o seguinte: “A afirmada escuta ambiental colocada na cela de Alberto Youssef foi objeto de apuração em pelo menos três sindicâncias administrativas na Polícia Federal e ainda no inquérito policial 5003191-72.2017.4.04.7000, sendo este arquivado por decisão do juiz federal Luiz Antônio Bonat da 13ª Vara Federal, em 1º de setembro de 2017.” Na ocasião, lembre-se, a própria Polícia Federal se insurgiu contra a decisão de arquivamento e alegou que era preciso reabrir o caso, mas seu pleito não foi atendido.

O senador terminou a nota lembrando o desdobramento mais atual do caso e citando seu desafeto, o juiz Eduardo Fernando Appio, crítico dos métodos que Moro empregou na Lava Jato: “Recentemente, o juiz federal  Appio, depois afastado de suas funções por suspeita de grave irregularidade funcional, determinou a reabertura da investigação, que foi novamente arquivada por requerimento do MPF por ausência de provas.” Appio está afastado do cargo desde maio sob suspeita de acessar um processo judicial e colher dados telefônicos para ligar para um advogado, que vem a ser sócio de Moro e filho de um desembargador. Sobre o novo arquivamento, o motivo não foi a “ausência de provas”, já que a essência de qualquer investigação é justamente a busca de provas, mas porque se considerou que não havia “justa causa”. Ou seja: entendeu-se que, apesar das evidências no caso, não havia nada a apurar.

Mário Fanton também não quis falar com a piauí. Sua mulher, a advogada Elioena Asckar, que lançará em novembro um livro sobre as investigações do seu marido a respeito das violações da Lava Jato, disse que ainda há processos abertos contra Fanton, razão pela qual o delegado está evitando entrevistas. Depois que levou a denúncia do grampo à Corregedoria-­Geral da PF, Fanton tornou-se alvo de pelo menos nove processos, na PF e na Justiça. Em contrapartida, ajuizou outros tantos, inclusive contra a União, por danos morais. A pressão resultou em seu afastamento do trabalho, por razões médicas, por mais de dois anos. Em 2021, na pandemia, teve Covid e ficou 91 dias na UTI. No ano seguinte, sua mulher sofreu um aneurisma cerebral, que ela atribui ao estresse dos últimos anos. No processo administrativo aberto pela PF, a defesa de Fanton escreveu que ele “foi caluniado e difamado na imprensa centenas de vezes. […] Sua vida social e funcional simplesmente se desintegraram”. Em pelo menos duas ações, a União foi condenada a indenizar Fanton. Somadas, as indenizações chegam a 133 mil reais. Não se tem notícia de que tenham sido pagas.

Dalmey Werlang, depois de ter sido afastado do NIP em maio de 2015, foi designado para atuar em Paranaguá, no litoral do Paraná, a 90 km de Curitiba. O agente encarou o fato como uma punição. Com a experiência de 27 anos – ele estava na PF desde 1988 –, Werlang tem receio de represálias contra si ou sua família. Não quis requisitar viatura para se deslocar entre Paranaguá e Curitiba, preferindo usar ônibus de linha. Também temia alguma armadilha para incriminá-lo. “Eu diria que preocupação eu sempre tive. Pensava: ‘Vão quebrar minha casa, fazer alguma merda com a minha família, explodir o meu carro… A minha tensão era essa”, contou.

Em 2016, depois de um ano em Paranaguá, Werlang voltou a ser designado para Curitiba. O seu isolamento, no entanto, se intensificou. Nunca era recrutado para operações. Passou a recorrer a tratamento psicológico e psiquiátrico, em que lhe prescreveram ansiolíticos. Entre honorários e medicamentos, gastava cerca de 1,5 mil reais por mês, e suas contas apertaram. O sobrado em que morava – cujo financiamento estava terminando de pagar – teve que ser vendido, e a família se mudou para uma casa menor, no bairro Barreirinha, onde vive com a mulher e duas filhas, de 18 e 29 anos, além da neta. Werlang também tem um filho, que mora em Santa Catarina. “Meu patrimônio nunca foi muito grande. Sempre tive só o salário, mas acabei me desfazendo  do pouco que tinha para ter condições de sobreviver.”

Em setembro de 2021, aos 55 anos, Werlang se aposentou voluntariamente. Está grisalho, tem vida social restrita, com pouquíssimos amigos, e continua em tratamento psicológico. Enrolado com empréstimos consignados e com dificuldades financeiras, lançou uma vaquinha online. Até meados de agosto, tinha arrecadado 2,9 mil reais. Nas eleições passadas, lançou-se candidato a deputado federal pelo PT, mas não se elegeu: fez 1 923 votos. Vive remoendo os episódios que decorreram da instalação do grampo na cela de Youssef. Doeu-­lhe, especialmente, a punição por ter denunciado o grampo no fumódromo: dezoito dias de suspensão, sem receber salário. A delegada Daniele Rodrigues, que determinou a instalação da escuta e alegou que se tratava apenas de um teste, foi absolvida.

Esse conteúdo foi publicado originalmente na piauí_204 com o título “O grampo”.

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