Eu sou de Jorge?

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E a coluna “A César o que é de Cícero”, do doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista, faz a pergunta acima no seu texto que viaja pelas crenças com todo o respeito. César, respondo, você é de Jorge, é de todos e todas santos e santas. No final do texto, Racionais Mcs cantam Jorge da Capadócia, com e de Jorge Benjor. Amém (Washington Luiz de Araújo, também de Jorge)

“Para Sônia Ferreira, minha grande amiga do peito.





Aquela seria a última noite naquele apartamento de Vila Isabel, tanto que o menino dormia apenas no colchão, uma vez que sua cama fora desmontada. No meio da noite, o menino acorda e vê a imagem de um soldado romano: retém para si para sempre o rubro da capa.


Em uma cidade cada vez mais neopentecostal há de se respeitar um feriado dedicado a São Jorge, que é o padroeiro informal da cidade, além de santo de devoção tanto de inúmeros policiais quanto de inúmeros criminosos. Um santo em tal condição é um fenômeno que chama a atenção de historiadores, como é o caso de Luis Antonio Simas, a quem devo o bizu.


São Jorge, seu Jorge. Quando visitei o velho Mercadão de Madureira, o de antes do incêndio, já não era mais menino, mas adulto. Ainda assim, impressionaram-me as estátuas de gesso, se não me engano, em tamanho natural dos santos de nossa afro-religiosidade.

Guardei para mim a imagem de um cavaleiro sobre o cavalo que era composta em duas partes: de um lado um soldado romano; do outro, uma caveira. Parecia a personagem “Duas Caras”, arqui-inimigo do Batman, mas eu a entendi de outra maneira. A imagem, para mim, representava os tempos sobrepostos a partir da sobreposição das entidades.


Madureira, Avenida Suburbana (recuso-me a chamá-la pelo outro nome, o mais recente: nada contra o Dom Hélder Câmara, diga-se. É que Suburbana tem um peso enorme, como se fosse um comboio de 638s, linha de ônibus que percorre grande parte da avenida). É lá onde a religiosidade suburbana mora. Passa por lá para ver a multidão de evangélicos, passa. São muitos, muitos mesmo. Alguns dispostos, por indução, a expulsar o demônio das pessoas e seus próprios fantasmas. E eles não são o espírito do subúrbio?


Perto da Suburbana, na rua Goiás, ainda está de pé firme e forte o Centro Espírita Caminheiros da Verdade. Já bati cabeça lá, se “bater cabeça” é algum sinal inconteste da religiosidade. Sou um sujeito muito aberto a apelos sugestivos: meu corpo não pode ouvir um atabaque nem sentir o cheiro forte de incenso nem ouvir palavras ritmadas nem de ficar em silêncio que já quer decolar (como foi o caso da minha visita a um templo budista no Rio Grande do Sul).


Voltando ao Caminheiros da Verdade, o que me lembro mesmo é do tablete do doce de leite e da garrafa cacarecada de Grapette. Esta combinação, que para tantos é modesta, é para mim de se comer nas nuvens.


Pessoas que são religiosas sem serem propriamente fanáticas também me atraem. Pessoas que fazem o bem a não sei quem também sempre me atraíram. Como prática, a fé das pessoas das pessoas deve ser respeitada custe o que custar. Não tem esse papo de somente a minha religião está certa e quem não a seguir é erê herege.


Tem muito caroço nesse angu, por óbvio. Entretanto, em suma, para mim é o que o Cristo mandou fazer e pronto. Falo de Cristo mesmo. Talvez o Brasil se torne um país presominante evangélico em breve; de acordo com as estatísticas, isso é muito provável. Não deixará o país de ser cristão.


Eu, entretanto, sou de outro tempo. Ou pelo menos pareço ser, tomando o maior sufoco para digerir as mudanças de rumo dos novos ventos do progresso. Sou do tempo em que os excluídos da sociedade fechavam seus corpos com rezas de benzedeira? Sou e não sou. Talvez a prática, que nunca foi oficializada, que sempre foi perseguida, ainda esteja mais entre nós do que supunha a nossa vã observação. Tem que saber procurar, né?


Eu sou passado e ultrapassado, enfim. Pegando uma carona em uma canção velha chamada “Tiro de Misericórdia”, da dupla João Bosco e Aldir Blanc, ainda vejo muito menino com o corpo fechado por babalaôs. Só que eles não sabem disso.


Quando eu me for, já não terei mais medo do meu guardião de capa vermelha que me levará aos campos do Senhor. E aí eu irei ganhar das mãos de meu pai um doce de leite ou de amendoim e para acompanhar uma ou um Grapette.


Salve, Jorge.

Em tempo: enquanto escrevia este texto, recebi a triste notícia do falecimento do tio Jorge, vulgo Pardal. Tio da minha mulher, irmão da minha sogra, ele viu o esplendor da escola de samba Beija-Flor no tempo de Joasinho Trinta. Eu gostava de conversar com ele sobre essas coisas. Que Deus o receba de braços abertos.”

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