Mar de memória

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Por Ulisses Capozzoli, jornalista, Facebook

Tia Suzana tinha a tristeza de uma ave molhada, incapaz de alçar voo. Seus olhos tristes eram duas gotas de um azul desbotado recolhidas em alto mar, livres das impurezas que tingem de verde as águas costeiras. De sua boca pequena saiam poucas palavras, sons monossilábicos que tio Alberto tratava de prolongar, acrescentando pigarreados por efeito do fumo de corda.




Não eram um casal no sentido usual. Irmãos, amparados na solidão mútua. Tio Alberto foi casado por uma fatia fina de tempo, o suficiente para vivenciar uma traição que minha avó sempre lamentou. Minha avó materna, a mais amada, das três que tive neste mundo inconstante, era de outro feitio. Ao menos comparada a tia Suzana. Com as mesmas pálpebras triangulares de tio Alberto, uma marca de família, e, como ele, também refinada contadora de histórias.

Tia Suzana, como disse, era de raras palavras. A ela custava esforço articular um “bom dia” que fosse. Tenho a memória de um ligeiro arfar da pele branca de seu pescoço para produzir esse par convencional de palavras sem nenhuma convicção, nenhuma vontade, nenhum desejo.

Tia Suzana deixou esse mundo virgem como uma estátua de mármore, com sua pele branca do mármore que Michelangelo amava esculpir: “vi um anjo num bloco de mármore”, disse ele num dos relatos de suas visões “e fui esculpindo até libertá-lo”. Tia Suzana era outra coisa: uma ave molhada, incapaz de alçar voo. Por curto que fosse.

Eram gente de outra espécie, esses meus tios-avôs, gravitando em torno de minha avó como é frequente em relação a uma estrela de grande massa. Cada um deles um mundo à parte e tia Suzana o mais afastado, o menos material, quase se desmanchando no espaço por falta de coesão gravitacional.

Devo acrescentar a figura risonha de meu tio Zé Justino, outro dos irmãos, com a mesma pálpebra triangular, a miniatura de uma barraca de campanha, como abrigo para os olhos. Tio Zé Justino com os olhos azulados, mas de um azul profundo, convincente.

Dele tenho a imagem de um homem sorridente montando um cavalo malhado, com um dente de ouro reluzindo ao sol que se levantava no Leste, divertindo-se com a ideia de que Stella, uma de suas filhas, havia ido “consertar o dente” na cidade.

Meu tio João, como minha avó e tio Alberto, tinha olhos castanhos claros, com raias quase imperceptíveis de um ligeiro esverdeamento, que só as lentes grossas dos óculos de leitura permitiam vislumbrar.

Quando morreu, esse meu tio João teve todo o quarteirão da rua em que morava tomado pelo povo. Ele havia sido, por todo tempo de que tenho memória, comerciante de armarinhos, numa loja de prateleiras uniformes onde se destacavam peças de tecido xadrez com que se costumava costurar camisas para os mais jovens.

Os mais velhos, e não falo de velhos, se vestiam mais discretamente. Traziam mortos na memória e demonstravam respeito por eles vestindo roupas mais discretas.

Meu tio João, e a única filha dele, uma moça de refinada inteligência, foram médiuns poderosos. Ainda hoje acho graça, mas não refuto, observações incrédulas quanto a essas possibilidades.

Me habituei à atmosfera da casa com perfume de biscoito de farinha que minha avó assava em um imenso forno de barro em tardes ensolaradas, com a sonoridade da marreta de um ferreiro a uns poucos quarteirões, malhando ferradura para cavalos.

Essa minha prima era ainda mais habilidosa que meu tio João: ela antecipava os acontecimentos e essa experiência me acompanhou até uns poucos anos atrás. Meu tio João amenizou o sofrimento de muita gente e isso explica a rua tomada pelo povo quando ele deixou esse mundo.

Minha prima era mais restrita. Mais fechada e especialmente mais crítica. Ela conhecia, como o ferreiro que malhava de sonoridade as tardes ensolaradas, a matéria que trabalhava, mas guardava uma ponta de ceticismo adorável: dizia que, ela mesmo, tinha “memória fraca”.

Naveguei, nas últimas semanas, o mar sólido das Minas Gerais.As ondas elevadas e os vales profundos da Mantiqueira e a memória dessa gente toda espalhou-se por minhas lembranças como a água que desce das cachoeiras para formar poços de mergulho.

Andei por estradas poeirentas, de barrancos elevados, o que atesta suas idades. A poeira mais vermelha ou branca, dependendo do teor de ferro ou alumínio no solo.

Nesses últimos dias procurei refúgio na memória como abrigo para uma desintegração do que antes parecia real, mas era mágico.

Podem me criticar por isso, devo admitir, como uma forma de alienação propositada. Não vou discordar. Mas também não vou concordar.

Não tenho como tomar essa posição.

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