Menos acesso a serviços de saúde piorou situação de pacientes com doenças crônicas na pandemia

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Por Marcella Fernandes, compartilhado de Huffpost Brasil – 

Cirurgias oncológicas e transplantes de órgãos foram reduzidos em comparação a 2019 e cartórios registram aumento de mortes por ‘causas cardiovasculares inespecíficas’.

O medo do contágio pelo novo coronavírus e uma redução na oferta de serviços de saúde levou a uma piora na condição de saúde de pessoas com  doenças crônicas, como hipertensão, asma ou as que provocam fibrose nos pulmões. Segundo relatos de médicos e dados de associações, houve uma redução nas consultas e nos exames de rotina.




Também há suspeita de que houve menos acesso a medicação de uso contínuo. Outros fatores que podem ter levado a um aumento nos infartos são ansiedade e depressão em razão da pandemia.

No caso de pacientes oncológicos, os dados do Datasus mostram uma redução nos procedimentos. Entre janeiro e julho deste ano, foram realizadas 80.235 cirurgias em oncologia. No mesmo período do ano passado, foram 91.153 registros. Outro indicador são os transplantes de órgãos, tecidos e células. Nos 7 primeiros meses de 2020, somaram 38.773, contra 46.276 em igual intervalo de 2019.

No Instituto do Coração (InCor), ligado à USP (Universidade de São Paulo), foi observada uma queda nos atendimentos no pronto-socorro tanto para cardiologia quanto de pneumologia, de acordo com o pneumologista Bruno Baldi. “Trabalhei na emergência até dois, três meses atrás e nitidamente, no período crítico da pandemia, o número de atendimentos reduziu bastante”, afirmou ao HuffPost Brasil.

De acordo com o integrante da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia (SPBT), ainda não há dados consistentes no Brasil, mas tanto a experiência de profissionais de saúde quanto estudos internacionais mostram esse fenômeno. “Conversando com cardiologistas e baseado em outros países onde já há essa informação de maneira mais consistente, [vemos que] de fato, os eventos cardiovasculares têm aumentado por conta da pandemia. Isso porque muitas vezes o paciente acaba tendo receio de sair de casa tanto para consultas habituais quanto para procura de pronto-socorro”, afirma.

O mais recorrente e grave são os infartos. “O maior número de mortes em casa vai estar relacionado principalmente a eventos coronarianos”, diz. De acordo com o médico, “boa parte poderia ter sido evitada”. “As pessoas acabaram atrasando a procura do pronto-socorro. Se vai mais cedo para o hospital, a chance de ter um desfecho melhor é fato. O que a gente também acha que pode ter acontecido é que, em alguns locais, as pessoas pararam de pegar medicação de uso rotineiro. A gente não tem dados ainda para provar isso. É uma percepção”, afirma Baldi.

Esse cenário agrava a vulnerabilidade de pacientes idosos, em que é mais comum algum tipo de comorbidade. “Em pacientes de idade, o temor [de se contaminar com o novo coronavírus] é maior. Param de fazer atividade física fora de casa. Agora que têm retomado uma rotina mínima, mas também têm medo de sair de casa para procurar pronto-socorro”, relata o pneumologista.

No caso de doenças respiratórias, pacientes com asma, doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC) e aqueles com as chamadas “doenças intersticiais”, como fibrose no pulmão, são o maior grupo de risco. Segundo Baldi, esses pacientes são os que “vão acabar sofrendo mais por não procurar serviço de saúde ou ficar sem medicação”.

RICARDO MORAES / REUTERS
Médicos relatam queda nos atendimentos em pronto-socorro tanto para cardiologia quanto de pneumologia.

Pacientes oncológicos com sintomas sofrem mais

Além do risco para pacientes com condições cardíacas ou pulmonares, outro impacto indireto da pandemia é no tratamento de pacientes com câncer. De acordo com pesquisa feita pela Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica (SBOC) com 120 associados, 74% dos entrevistados tiveram um ou mais pacientes que interromperam ou adiaram o tratamento por mais de um mês durante a pandemia.

Para 22,5% dos oncologistas, houve dificuldade em realizar os exames de seguimento e menos de 1% dos entrevistados afirmaram que nenhum procedimento sofreu consequências. Segundo 67,5% dos respondentes, a maior dificuldade foi seguir com as cirurgias que eram necessárias.

Na avaliação de Fátima Gaui, diretora da SBOC, o maior impacto foi naqueles pacientes que já aguardavam atendimento no SUS (serviço único de saúde) e os novos casos de doenças agudas hematológicas, como leucemia. “Existia um problema básico na rede pública com atendimento aquém do esperado, uma fila de espera de 8 meses. Já existia uma deficiência no Rio de Janeiro. Vários hospitais oncológicos haviam fechado. Alguns pacientes chegaram em fase avançada não por conta da pandemia, mas pela dificuldade de acesso. Com a pandemia isso se agravou”, afirma a médica.

A coordenadora do Comitê de Cuidados Paliativos da SBOC também ressalta que houve uma redução no programa Saúde da Família, que identifica e encaminha pessoas para tratamento, e que passou a ser mais recorrente a chegada em hospitais de pacientes oncológicos em fase quase terminal, em que só era possível oferecer cuidados paliativos. “O que está faltando é documentar isso”, afirma Gaui.

Normalmente o registro de câncer é coordenado pelo Inca (Instituto Nacional de Câncer). Cada hospital é obrigado a ter serviço em que informa os tumores e o estágio da doença, mas esse segundo dado ”é muito pouco informado”, de acordo com a especialista. ”É difícil a gente ter essa avaliação que seria ideal, que daqui a 6 meses a gente poderia ter um panorama melhor do que aconteceu registrando que esses pacientes chegaram em estágio mais avançado”, completa.

Quanto à mortalidade, a especialista afirma que “o atraso é de mais de um ano” nos dados oficiais, “então você não vai conseguir observar, nesse momento, um impacto” da pandemia. O que é possível mensurar são realidades locais. A médica deve concluir em outubro um estudo de avaliação de mortalidade no hospital da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).

VALERY MATYTSIN VIA GETTY IMAGES
O acesso mais restrito aos serviços de saúde pode ter impactado na mortalidade principalmente nos tipos de câncer mais agudos.

O acesso mais restrito aos serviços de saúde pode ter impactado na mortalidade principalmente nos tipos de câncer mais agudos. “Uma leucemia não pode esperar uma pandemia. É muito rápido. O diagnóstico tem de ser feito com muita agilidade e encaminhado para um serviço terciário. São poucos os serviços com estrutura para tratar doenças hematológicas”, afirma a médica.

Os novos protocolos incluem realização de exame molecular para SARS-CoV-2 em médicos e pacientes antes de cirurgias, separação de alas hospitalares e adoção da telemedicina, com a prescrição de medicamentos por meio de assinaturas digitais, por exemplo. De acordo com a médica, em alguns casos, a cirurgia foi substituída por quimioterapia ou hormonioterapia, por exemplo, e transplantes de medula foram adiados. “O que ficou prejudicado foi o exame físico. Conversando com o paciente, a gente percebia se tinha alguma coisa alterada”, conta.

Quanto à prevenção, o rastreamento é recomendado para câncer de mama (com mamografia), de cólon (com colonoscopia), de colo de útero (papanicolau), além de câncer de pulmão para fumantes e do câncer de próstata, de acordo com a diretora da SBOC. Na avaliação de Gaui, ainda que seja provável um aumento de doenças mais sérias, esse não é o grupo afetado mais gravemente dentro dos pacientes oncológicos, devido ao perfil menos agressivo desse tipo de tumor. ”É uma doença que tem essa janela de diagnóstico”, afirma.

Impacto na mortalidade 

Ainda não é possível avaliar com clareza o impacto da restrição de acesso aos serviços de saúde para pacientes com doenças crônicas na mortalidade. Na comparação entre os 5 primeiros meses de 2019 e de 2020 dos dados do Ministério da Saúde, os números deste ano são menores para neoplasias, doenças hipertensivas, doenças isquêmicas do coração (incluindo infarto) e doenças cardíaca pulmonar e da circulação pulmonar, como embolia. Ppesquisadores alertam que há um atraso nos registros oficiais.

Outra base de dados aponta um aumento nas chamadas “causas cardiovasculares inespecíficas”. De acordo com o Portal da Transparência do Registro Civil, foram 60.519 registros desse tipo até 10 de setembro 2020, contra 49.395 em igual período do ano anterior. O levantamento é feito a partir de informações de cartórios e também há um atraso entre a data do fato e a inclusão no sistema.

Esse tipo de óbito inclui registros com “menção de causa indeterminada, morte súbita ou parada cardiorrespiratória, associada com hipertensão arterial, diabetes mellitus, embolia pulmonar, insuficiência cardíaca, miocardiopatia dilatada, edema pulmonar, bloqueio atrioventricular, arritmia cardíaca, taquicardia supraventricular, taquicardia ventricular, fibrilação atrial, bradiarritmia”. Também é parte do grupo menção de “morte súbita” e de choque cardiogênico, associado com doença isquêmica.

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De acordo com os médicos, pacientes com doenças crônicas devem retomar as consultas regulares, caso o local tenha sido adaptado para evitar a contaminação pelo novo coronavírus.

Como retomar os cuidados com a saúde?

De acordo com os médicos, pacientes com doenças crônicas devem retomar as consultas regulares, caso o local tenha sido adaptado para evitar a contaminação pelo novo coronavírus. De acordo com a pesquisa da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica, 9 em cada 10 médicos afirmaram que a instituição em que atuam conseguiu adotar medidas eficazes para contornar as dificuldades impostas pela pandemia.

O pneumologista do InCor Bruno Baldi também afirma que é preciso procurar o serviço de emergência se houver ”qualquer sinal de alerta, seja falta de ar, dor no peito, tontura, ou desmaio”.

No longo prazo, também fica o alerta de que a redução de atividades físicas pode piorar a saúde de pacientes mais vulneráveis. “O fato de a pessoa voltar a ficar sedentária piora a qualidade de vida e pode ter impacto também de um risco maior de eventos cardiovasculares”, afirma o médico. “A pessoa pode ficar mais deprimida, ansiosa, uma série de consequências pela falta de atividade física.”

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