Papo com o marido defunto sobre o filho ou filhe

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Mais um capítulo da coluna “A César o que é de Cícero”, do doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista. Neste, o cronista cria um monólogo deste para outro mundo, com a viúva dando uma de Dona Hermínia, desabafando pra cima do marido que já morreu. Ficam as perguntas: teria baixado o Paulo Gustavo no Cícero César? Será que uma Cappelli vira dona Hermínia ou está fazendo cena? Você decide.

“Uma Cappelli* virou dona Hermínia*? Se tu, Paolo, estivesse aqui, você iria fazer o quê? Que as coisas não estão dando certo no final das contas, que as contas não fecham, que eu não soube criar o Júnior, o que você me diria, meu Deus? Diria que nada do que fiz adiantou, que foi em vão tudo o que consegui com tanto esforço, dedicação, planejamento? Em uma palavra, sacrifício? Olha pra mim, Paolo, eu ainda sou bonita, eu tive os homens que quis, e posso ter muitos outros, eu não envelheço, eu não devo nada a você, a não ser uma parte do apartamento. Então, é devia, não devo mais. Estamos quites.




Paolo, tu é um bom filho da “peiga”, isso sim. Tu riria na minha cara se tivesse aqui, não é? Depois tu viria com aquele papinho de analista de botequim, falaria do meu sangue negro, das predestinações, pra me aporrinhar, porque tu, meu amigo, vamos combinar, tu sabia me aporrinhar como ninguém, seu canalha.


Fui dura com muita gente para chegar até aqui. Fui dura comigo mesma. Não passei a perna em ninguém, foi trabalho mesmo, incansável, doze, dezesseis horas por dia, contando com as aulas de Crossfit, porque, se nem todo mundo é de ferro, eu sou. E quem é de ferro precisa malhar, com ou sem silicone.

Eu sempre serei, minha heroína é a Xuxa. Nem tu com seu papo furado conseguiu tirar as minhas ambições da cabeça, meu amigo, admita. Tu só me enrolou porque eu comecei novinha, muito novinha na escola. Mas desde o primeiro momento uma coisa brotou em mim, sei lá, uma espécie de ambição, uma vontade de mostrar para o mundo que eu, Vivi, não vim a passeio. Eu cheguei até gestora, dali pro mundo ainda dá tempo. Só tem que saber apertar os botões certos.


Esse aí é uma besta. Dorme comigo, não paga nem todas as contas, apesar da fama de macho alfa. Ele é macho alfa de coçar o saco quando eu não estou por perto, mas sabe que se eu rosnar ele enfia o rabo entre as pernas. Além do mais, o filho não é dele, a gente não está nem seis anos juntos, quer dizer, não é tempo suficiente pra se ter criado uma relação paternal com o Júnior. Eles se tratam bem e tal, mas não passa disso, não passa de aparências a relação deles.

Eu não me cansei dele porque, cá entre nós, ou ele trepa mesmo muitíssimo bem ou eu tenho deixado as minhas muitas exigências de cama de lado com o tempo. Sabe como é que é, até eu dei pra envelhecer nos últimos anos, uma coisa estranha.


Paolo, Apolo desgraçado, sabe o que houve? Eu encontrei umas calcinhas e sapatilhas de balé nas coisas do Júnior. Não ria, não, não é piada, não vá me dizer que o Júnior está pegando uma bailarina. O Júnior não é de pegar ninguém, não puxou a você, cretino que não podia ver um rabo de saia. Ele deve ter puxado a outro pai. Teu pai que era assim, cheio dos segredos que todo mundo sabe, cabeça de avestruz enterrado na areia.


Eu vou procurar terapia pra mim e pra ele/ela/elex. Uma amiga do Crossfit me recomendou uma, eu andei, sabe como é que é, falando por alto com algumas pessoas a respeito desta caceta. Tive que falar,era isso ou eu explodia por dentro. Eu tenho as coisas pra gerenciar, ninguém vai fazer as coisas melhor do que eu. Eu preciso estar sempre lá de olho vivo, para ninguém me passar a perna.

Esse menino/menina/meninex tem muito a me dizer, faz tempo que a gente não tem uma conversa do tipo olho no olho, entende, conversa que nem confissão. Eu sou capaz de virar ele/ela todo/toda/tude do avesso se não me disser a verdade. Quer dizer, eu não sei se estou preparada para ouvir a verdade que eu estou achando que ele é bicha ou trans ou qualquer uma das outras letras do arco-íris.

Paolo, entenda o meu ponto de vista, uma coisa é o filho dos outros. Outra coisa são os nossos filhos, sangue do nosso sangue, com um por cento de sangue negro ou não. O que meus pais vão pensar, cara? Eles vão encher o meu saco mais que você me encheria, vão dizer que eu não soube educar, que eu não devia ter me divorciado de você, que no fundo tu era boa pessoa. Por acaso eles já deitaram com você? Agora, com tu morto e enterrado há tanto tempo, é impossível, né? Graças a Deus.


Já estou me vendo com cara de dona Hermínia.

Eu não sou liberal nessas coisas de costumes. Eu tenho que ser no trabalho, são atribuições do cargo, mas só pra inglês ver. Por fora a gente ri. É claro que eu convivo bem com qualquer pessoa, não sou de rotular ninguém e no fundo não interfere muito no trabalho, não. Pelo contrário, torna o ambiente até mais florido, leve. O que seria do mundo se todo mundo gostasse de amarelo?


Se a terapeuta me ajudar eu consigo segurar a barra, é o que acho. Cubro uma das grandes tatuagens com um par de sapatilhas, aceito o que vier, mas confesso que agora estou confusa, muito confusa. Não gosto de me sentir assim, me faz me sentir muito menina um tanto fora dos eixos.


E tem essa coisa do nome da família, não é mesmo? Com isso tu se preocupa, não é, seu escroque? Afinal o nome da família é o que conta, mesmo com todo mundo dizendo da boca pra fora que os tempos estão mudando, que as mudanças estão aí para ficar, que o que a gente tem que fazer mesmo é nos adaptarmos às novas orientações curriculares. O que a gente vai ver na Disney? O Minnie e a Mickey?

Eu sei que eu terei que ouvir o/a Júnior na terapia sem ficar balançando a cabeça o tempo todo. Seguro o tranco que a cria brotou aqui dentro de mim, me dando até estrias. Mas deixa eu extravasar, pelo menos, por enquanto.”

Cappelli – família de classe média, personagem da coluna

Dona Hermínia, personagem criada pelo ator Paulo Gustavo em “Minha mãe é uma Peça”.

Sobre o autor

Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.

Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019) e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.

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